Jurisdição da liberdade: a ideia de garantia constitucional

AutorLucas Moraes Martins
Ocupação do AutorAdvogado. Professor. Doutor em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Páginas183-195

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1. Introdução

O acesso à justiça, evidentemente, pode ser realizado buscando-se proteger os mais variados direitos. No entanto, ao se tratar de direitos fundamentais, notadamente os de primeira geração, deve-se valer de meios específicos para sua proteção.

A mera inscrição dos direitos fundamentais no texto constitucional como forma de assegurar sua aplicação - pretensão romântica fruto da Revolução Francesa - não propicia o desenvolvimento da cidadania como forma de participação, inclusive, na defesa da Constituição. Tal pretensão romântica já foi amplamente refutada pelas experiências históricas e, principalmente, pelo atual convulsionado mundo propulsor de litígios, muitos deles perpetrados pelo próprio Estado.

Se os esforços jurídicos se dirigem rumo à construção de uma sociedade democrática que preza pelo acesso à justiça, não bastariam que os reclames sociais se fizessem no meio público, sem os princípios (Contraditório, Isonomia e Ampla Defesa) do Processo. A concretização da cidadania também significa estabelecer meios jurídico-processuais para que o cidadão possa se valer em caso de violação de seus direitos fundamentais.

Ademais, o acesso à justiça, no tocante à proteção da Constituição, deve acontecer de acordo com a citada principiologia processual, porquanto a atuação da jurisdição sem um norte processual poderia, ao invés de proteger o cidadão, solapá-lo sob a escusa de que busca a solução dos litígios.

As Garantias Constitucionais sãos os meios que o cidadão pode utilizar para salvaguardar a cidadania e a Constituição perante a Jurisdição, que nunca poderá agir arbitrariamente, mas somente dentro das normas do Processo (Devido Processo Legal e Devido Processo Constitucional).

Desta forma, cabe desenvolver a ideia de cidadania e processo em uma sociedade democrática, para, posteriormente, adentrar nos conceitos de garantia constitucional - meio de acesso à justiça - que protegerá o cidadão e a Constituição contra as eventuais violações estatais.

2. Cidadania e processo em uma sociedade aberta
2. 1 Sociedade aberta

Os estudos desenvolvidos por Cappelletti, buscando por reformas processuais que encarnassem as três "ondas" de acesso à Justiça (assistência judiciária para os pobres1, representação dos interesses difusos e representação em juízo)2 são muito importantes,

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pois expõem soluções para tão espinhoso problema que a sociedade e o Estado deve enfrentar.

A alteração dos procedimentos judiciais também se insere dentre as medidas que buscam a melhoria do sistema processual, a fim de estruturar formas eficazes de cuidar das demandas, cada vez maiores, que chegam ao judiciário. Esta esperança de elaboração de procedimentos, menos burocráticos e mais céleres na administração da justiça, foi depositada, em grande parte, no Processo Oral3.

Ninguém nega as contribuições de Franz Klein4 na elaboração do Processo Oral, nem os esforços de Chiovenda5, como forma de simplificar as formas processuais, a fim de tornar o acesso à jurisdição mais eficaz.

Cumpre ressaltar, no entanto, que ainda não se teve o cuidado de realizar um estudo acurado sobre a relação dos meios de acesso à justiça com os tipos de estruturas do judiciário e a finalidade de cada modelo processual.

Neste sentido, um estudo stricto sensu sobre o acesso à justiça perderia grande parte de sua eficácia prática, porquanto a implementação de meios para o acesso à atividade jurisdicional deveria levar em conta as seguintes características: a) os tipos de Estado e como isso influencia a administração da justiça (Reactive State6 e Activist State7), b) os tipos de justiça ou os fins do processo jurisdicional (Conflict-Solving Type of Proceeding8 e Policy-Implementing Type of Proceeding9) e c) a distribuição da organização da autoridade judiciária (Coordinate officialdom10 e Hierarchical Officialdom11).

Como tais características dificilmente se encontram em estado de pureza dentro de um sistema legal12, mas sim misturadas nos mais variados

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graus, seu estudo se torna mais complicado, mas não impossível.

Como se pode observar, as correlações ultra-passam a tradicional classificação doutrinária em Processo Autoritário e Processo Liberal13, no caso do Direito Processual Civil, e Processo Inquisitivo e Processo Acusatório14, em se tratando do Direito Processual Penal. Para o presente estudo, tal análise não será feita porque ultrapassaria o principal enfoque que é apresentar um esboço sobre o acesso à justiça via garantias constitucionais. Ademais, fica o convite à reflexão.

Mesmo sem um estudo aprofundado, pode-se afirmar que, ao se tratar sobre o Acesso à Justiça, não se pode negligenciar a importância que a organização do Judiciário adquire, porquanto a ausência de independência e de uma estrutura judiciária coesa implica em prejuízo ao exercício dos meios de acesso à atividade jurisdicional.

Ademais, o pressuposto para o amplo acesso à atividade jurisdicional é um Estado Democrático cuja Jurisdição está submetida às regras do Processo, pois apenas este estabelece normas de proceder. Jurisdição sem Processo seria arbítrio estatal, pois o contraditório, a isonomia e a ampla defesa poderiam ser arrebatados a pretexto da solução dos litígios.

Por isso, toda reforma ou interpretação da lei está submetida ao princípio da cidadania, que, dentre suas múltiplas facetas, é também exercido via ações constitucionais ou infraconstitucionais. Poder Judiciário (ou Função Jurisdicional) deve estar permanentemente interligado ao princípio da cidadania, pois este é um passo importante rumo a uma sociedade democrática que preze a qualidade da prestação jurisdicional.

Note-se que a ideia de princípio denota aquilo que está posto para evitar um regresso ao infinito ou uma cadeia argumentativa circular. O físico Hans Albert, em seu Tratado da Razão Crítica, expõe o problema da fundamentação com clareza. Ao se exigir uma fundamentação para todos os argumentos, passa-se também a reclamar, consequentemente, uma fundamentação para os pressupostos básicos, também denominados de postulados ou axiomas que estão na base de toda senda argumentativa. Este raciocínio conduz a três soluções insustentáveis que podem ser agrupadas sob a denominação de Trilema de Munchhausen15.

A primeira solução consiste em um regresso ao infinito na cadeia de argumentos. Ao se buscar sempre uma fundamentação última, necessariamente, deve-se buscar os fundamentos dos fundamentos e, assim, não existiria uma base segura. A segunda solução levaria a uma cadeia circular, em que os fundamentos buscam suas respectivas consistências entre si, não conferindo segurança. Seria algo como A é verdadeiro se somente se B for verdadeiro; e B é verdadeiro se somente se A for verdadeiro. Por fim, a terceira solução seria uma interrupção arbitrária na cadeia de fundamentação provocada por um dogma, cuja verdade seria autoevidente e, portanto, carente de fundamentação16.

A solução de Albert para o referido trilema, em uma clara referência popperiana, é a mudança da metodologia clássica para a metodologia crítica do conhecimento, substituindo a ideia de fundamentação última - ou fundamentação suficiente - pela de verificação crítica, renunciando a certezas auto-fabricadas.

O que pretende Albert é renunciar ao conceito de infalibilidade ou dogmatismo, que afirma a impossibilidade do erro, defendendo a possibilidade de falibilismo perante o qual as hipóteses - e não mais dogmas - seriam verificáveis segundo o mundo real, o que possibilitaria a permanência ou rechaço das teorias postas a teste17.

O raciocínio de Albert pode ser cuidadosamente aplicado ao campo da linguagem "Direito Positivo", como objeto da metalinguagem "Ciência do Direito". O ordenamento jurídico brasileiro estabelece alguns postulados - ou princípios - que são inabaláveis de

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forma objetiva, ou seja, nunca poderão ser retirados da Constituição. Por exemplo, o princípio da demo-cracia contido no art. 2º, o princípio da dignidade da pessoa humana contido no inciso III do art. 1º, o princípio da legalidade do inciso II do art. 5º, todos da Constituição da República Federativa do Brasil.

Se diferentemente fosse, o sistema democrático ruiria e, como certa feita disse Bertrand Russel, os méritos da democracia são mais propriamente negativos que positivos, uma vez que o referido regime não assegura um bom governo, mas evita certos males18.

Como leciona Bobbio: "As normas constitucionais não são exatamente as regras do jogo, são na verdade regras preliminares que possibilitam o desenrolar do jogo."19.

O fato de certos postulados constitucionais não serem factíveis de abolição, não implica que seriam destituídos de significado, mesmo se alguém aventasse que, por isso, seriam acientíficos ou meta-físicos. Tampouco seriam insuscetíveis de discussão crítica ou racionalidade. A única exigência feita é que os princípios constitucionais, dentre os quais se encontra o princípio da cidadania, mesmo que irrefutáveis e não empíricos, sejam atrelados a uma situação-problema que pretendem resolver20.

Dentro desta perspectiva, o que se cogitaria como falíveis - e não como dogma intocável - são as possíveis interpretações dos princípios constitucionais frente a um determinado caso concreto ou problema. Os princípios ou postulados somente se perfazem na interpretação e, portanto, vale ressaltar, a Hermenêutica Constitucional ganha novos contornos.

A "sociedade aberta" implica uma distinção racional21 em relação à "sociedade fechada", ou seja, naquela, as decisões são construídas com base na discussão intersubjetiva que permite criticar as...

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