A liberdade sindical no direito do trabalho brasileiro: do mito à realidade
Autor | Maria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira |
Páginas | 318-326 |
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O trabalho tem como objetivo apresentar propostas reinterpretativas da estrutura sindical brasileira, em especial a possibilidade de aplicação plena do princípio da liberdade sindical estabelecido no art. 8º da Constituição da República de 1988 e na Convenção n. 87 da Organização Internacional do Trabalho — OIT. Serão analisados o papel e a importância do sindicato na construção e desenvolvimento do Direito do Trabalho em confronto com a atual crise do sistema sindical brasileiro, crise esta desencadeada a partir da década de 90, essencialmente, pela reestruturação produtiva, pelas tendências flexibilizatórias impostas pelo neoliberalismo e pela inflexibilidade estrutural dos sindicatos — decorrente da não aplicação plena do princípio da liberdade sindical — em contraponto à liberdade das empresas de se auto-organizarem. Serão abordadas a doutrina e jurisprudência majoritárias que, não obstante a nova roupagem constitucional do direito sindical brasileiro, continuam pregando um sistema hibrido, não-pleno e estagnado pelas tendências fascistas da década de 30, o que contribui, diretamente, para o enrijecimento dos sindicatos e, claro, para a manutenção da crise que hoje enfrentam. A partir disso, far-se-á uma análise da Convenção n. 87 da OIT na busca por sua aplicação plena, mesmo sem sua formal ratificação, seja do ponto de vista do Direito Constitucional, seja do ponto de vista do Direito Internacional, propondo-se, assim, um novo caminho para o enfrentamento da crise de identidade que acomete o sindicalismo brasileiro, permitindo uma reconfiguração externa do sindicato para que possa reassumir seu papel histórico de ator — e não apenas de mero espectador — na reconstrução do Direito do Trabalho.
Não se pode negar que a Constituição da República de 1988 inaugurou um novo paradigma: o Estado Demo-crático de Direito. Nele, a forma de se perceber o Direito, por meio da própria Constituição, faz com que a estrutura normativa até então concebida seja revista e reinterpretada, especialmente por meio dos princípios constitucionalmente assegurados.
Um novo pilar do Direito Coletivo do Trabalho também foi inaugurado pela nova Constituição: a liberdade sindical. Esta novidade passa a exigir do intérprete uma releitura da estrutura legislativa sindical brasileira, seja para adequá-la, seja para descaracteriza-la ou, até mesmo, para ignorá-la, especialmente em relação aos pontos conceituais da legislação que foram construídos e concebidos na fase do corporativismo sindical.
O primeiro passo para esta releitura é a percepção do papel que o sindicato possui na construção e afirmação do Direito do Trabalho e seu papel, a posteriori, na manutenção de tais conquistas. Para tanto, deve-se confrontar a lógica da liberdade intrínseca à formação dos sindicatos com as premissas limitadoras de sua atuação criadas pelos pilares corporativistas, especialmente a unicidade, o sistema confederativo e o sistema de agregação exclusivamente por categorias que retiram do sindicato aquilo que lhe é inerente: a plasticidade e a adaptabilidade, segundo os critérios da representatividade e da eficiência mencionados pelo próprio texto consolidado.
O segundo passo é a construção de um caminho para a superação da crise que acomete o sindicalismo brasileiro, crise esta corroborada pela interpretação majoritária
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de que o sistema de liberdade sindical brasileiro não seria pleno. Para tanto, deve-se analisar a adequação normativa consolidada com os preceitos constitucionais, além de outros elementos legais que direcionam à conclusão de que a liberdade sindical estaria, sim, em plena eficácia no Brasil.
No sistema liberal o trabalho se concretizou por meio das locações de trabalho, forma jurídica primeva de relação trabalhista. Sua formatação básica se dava pela autonomia da vontade entre os contratantes, consistindo no respeito total à liberdade volitiva do trabalhador e do tomador dos serviços que se obrigavam, sem outras implicações, a prestação dos serviços e ao pagamento de uma contraprestação.
Fica claro, portanto, que esta “liberdade” se deu como forma de superação dos modelos rígidos das corporações de ofício, que impunham regras de preço, qualidade, quantidade, margem de lucro, forma de trabalho e propaganda, tudo a partir de uma divisão hierarquizada de labor. Foram elas extintas pela Revolução Francesa em razão das máximas de igualdade, liberdade e fraternidade, mas, em seu lugar, nada se colocou. Permitiu-se que os homens regulassem direta e individualmente suas relações contratuais de trabalho, sem qualquer organismo intermediário, ficando as relações laborais no campo civilista do Direito.
No entanto, como a igualdade entre trabalhador e do tomador dos serviços era, por óbvio, meramente formal (não havia liberdade ou bilateralidade na estipulação das condições de labor) e como o tomador detinha, além dos meios de produção, todo o controle sobre a vida do trabalhador que dele dependia para sobreviver, por certo que esta relação “livre” não resistiria muito tempo.
As primeiras formas de produção capitalista eram disseminadas, descentralizadas. O empregador, assim, distribuía a matéria-prima e as máquinas aos trabalhadores que laboravam em suas próprias residências. O mercado, porém, exigia uma produção controlada, barata e regular. Com isso, o empregador reuniu seus funcionários em um mesmo local de trabalho.
Esta reunião fez com que os trabalhadores desenvolvessem consciência coletiva e a solidariedade do grupo passa a se colocar contra a exploração demasiada nas fábricas, com a conscientização de que apenas coletivamente poderiam lutar por melhores salários e condições de trabalho, e isto não obstante fosse juridicamente proibida a união dos trabalhadores, já que desequilibraria a balança do liberalismo, onde empregados e empregadores eram considerados iguais perante a lei. Isso, claro, não passava de mais uma falácia do sistema liberal:
Todo esse processo desvelava a falácia da proposição jurídica individualista liberal enquanto modelo explicativo da relação empregatícia, eis que se referia a ambos os sujeitos da relação de emprego como serem individuais singelos. [...] O movimento sindical, desse modo, desvelou como equivocada a equação do liberalismo individualista, que conferia validade social à ação do ser coletivo empresarial, mas negava impacto maior a ação do trabalhador individualmente considerado. Nessa linha, contrapôs ao ser coletivo empresarial também a ação do ser coletivo obreiro. (DELGADO, 2008, p. 90-91.)
A partir desta consciência coletiva, os trabalhadores é que conquistaram, pela força da união e autonomamente1, melhorias, mesmo que tímidas, nas condições de vida e labor. Assim, as conquistas trabalhistas, coletivas e individuais, passaram a se efetivar por meio das uniões sindicais dos trabalhadores em tratativas diretas com as empresas, especialmente porque estas não conseguiam seguir com seu desenvolvimento produtivo sem o trabalho.
Portanto, quase que intrinsecamente ao Direito do Trabalho, nasceu o poder das partes de construírem suas próprias condições de trabalho, por meio das negociações e lutas organizadas. Sob este aspecto, “pode afirmar-se que surgiu, primeiro, um Direito Coletivo impulsionado pela consciência de classe e, em seguida um Direito Individual do Trabalho” (GOMES; GOTTSCHALK, 2006, p. 2-3)
Somente depois das grandes lutas operárias é que o Estado capitalista passou a regulamentar as condições de trabalho2 trazendo, para o seu controle, por meio do ordenamento jurídico, as conquistas trabalhistas já realizadas pela classe operária, em uma legislação social afastada do ramo civilista. Note-se, portanto, que grande parte do movimento de construção normativa, culminado com a intervenção do Estado nas relações de trabalho, veio de “baixo para cima” e não de “cima para baixo”:
A origem das negociações coletivas é atribuída à fase na qual o Estado era omissivo diante da questão social, diante de sua política liberalista, com o que surgiu a espontânea necessidade de organização dos trabalhadores em torno das organizações sindicais. Com a força da greve, os trabalhadores conseguiram levar seus empregadores a concessões periódicas, especialmente de natureza salarial, estendendo-se para outros tipos de pretensões, hoje as mais generalizadas. Formou-se assim um direito do trabalho autônomo. (NASCIMENTO, 2008, p. 255.)
Sendo assim, desde o surgimento do Direito do Trabalho — e para o seu próprio surgimento — os atores sociais tiveram participação essencial na regulamentação de suas condições de vida. Desta forma tem-se como marco diferencial e peculiar do ramo trabalhista sua função normativa, possibilitando a construção autônoma — pelos próprios sujeitos da relação — de normas jurídicas, na tentativa de cumprir a máxima constitucional (art. 7º, caput, CR/1988)
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de melhoria das condições de trabalho. No entanto, como este objetivo só pode ser alcançado por meio das organizações sindicais, o poder normativo3 deve estar atrelado a um sindicalismo forte e livre, capaz de assumir seus compromissos históricos de luta em prol da classe trabalhadora e da capacidade de mobilização dos trabalhadores.
Ocorre que na década de 30, o sistema sindical brasileiro se deparou com um grave obstáculo. Trata-se do modelo intervencionista implantado por Getúlio Vargas, concebido como “um meio de elaborar uma regulação detalhada das condições de trabalho, a fim de tornar desnecessária a atuação sindical e, por...
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