Liberdades de consciência e crença

AutorAlexandre Agra Belmonte
Páginas55-76

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6.1. Liberdade de consciência

A consciência é a dimensão interna de conhecimento do homem, que abrange o autoconhecimento e a consciência ética, permitindo ao indivíduo, a um só tempo, não apenas pensar e refletir, como também criar as próprias normas de conduta interna destinadas à conformação de sua atuação no convívio com os semelhantes. É a autodeterminação existencial e ética do homem. É a capacidade interna de formar a própria concepção ou visão explicativa do homem, do mundo e da vida, de ter as próprias convicções filosóficas e ideológicas, de criar a própria identidade e formar conceitos, juízos e ideias.46

Já o direito de exteriorizar, livremente, as próprias opiniões filosóficas, científicas, políticas e/ou religiosas, diz respeito a outro direito fundamental, qual seja, a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV, CF).

A liberdade de consciência, prevista no art. 5º, VI, CF, consiste, portanto, na relação intrínseca do homem de pensar o que quiser, sem coação, de forma a permitir-lhe perceber, refletir e fazer as opções que julgar mais adequadas. Trata-se de liberdade que não apenas “constitui o núcleo básico de onde derivam as demais liberdades do pensamento”47, como também pressupõe o direito de atuação rumo

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às demais liberdades, ou seja, rumo à regência de sua conduta conforme as regras por ele próprio definidas.

Enfim, a liberdade de consciência permite ao ser humano fazer, internamente, as escolhas de ordem político-filosófica e de crença, adotando a ideologia com a qual mais se identifique como substrato à liberdade de manifestação do pensamento, prevista no art. 5º, IV, da CF e demais atos concretos de exteriorização da vontade privada.

Nos termos do art. 5º, VI, da CF, a liberdade de consciência é um direito fundamental inviolável, sendo que ninguém será privado de direitos por motivo de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII, CF).

6.1.1. Liberdade de consciência e objeção de consciência nas relações de trabalho

O estado de subordinação ínsito ao contrato de emprego, decorrente do poder patronal — que integra o conteúdo essencial da liberdade de empresa — de dirigir a prestação do trabalho rumo aos objetivos do empreendimento, não elimina as convicções pessoais do trabalhador. Pelo contrário, se tem direito à cidadania perante o poder público, não se justificaria que não o tivesse dentro da empresa. O trabalhador é um ser integral e a Constituição deve ser interpretada como unidade.

A indagação que se faz é até que ponto os direitos fundamentais podem ser exercidos no âmbito da relação de trabalho, ou seja, qual é o limite de exercício da liberdade de consciência no ambiente empresarial?

De início, observa-se que os direitos fundamentais não admitem restrição. O trabalhador não renuncia aos seus direitos fundamentais no âmbito da relação de trabalho. Devem estes direitos, isto sim, em virtude do estado de subordinação na prestação do trabalho e da boa-fé e lealdade contratuais, adequar-se ao contrato de trabalho, importando essa adequação em ajuste que, naturalmente, limita ou inibe o exercício desses direitos.

Por outro lado, se existe necessidade de ajuste, é porque o poder diretivo, por seu turno, também sofre limitações e essa barreira é a dignidade do trabalhador, para cuja preservação servem exatamente os direitos fundamentais.

Logo, esse ajuste decorre de uma solução ponderada, proveniente da avaliação, em cada situação concreta de tensão entre os direitos fundamentais do trabalhador e do poder diretivo do empregador em relação à execução do contrato de trabalho. Daí resulta que, em decorrência da boa-fé e lealdade contratuais, o exercício, pelo trabalhador, da liberdade de consciência não pode, por exemplo, ofender a boa imagem da empresa perante o público. De igual sorte, o empregador não pode rejeitar a promoção ou repreender o trabalhador em virtude de suas inclinações ideológicas, políticas ou filosóficas.

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São inúmeras e muitas vezes imprevistas as possibilidades de ocorrência de conflitos relacionados à liberdade de consciência no trabalho, a exigir a referida avaliação, considerando os objetivos do contrato e o respeito ao trabalhador enquanto pessoa humana dotada de sentimentos e convicções pessoais.

Raquel Tavares dos Reis apresenta algumas hipóteses, para efeito de reflexão: o médico contratado por um hospital que se recusa a praticar a interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher grávida, quando autorizada por lei, mas contrária à sua consciência; a de um jornalista que, invocando um desvio significativo na linha de orientação do órgão de comunicação social em que trabalha, em consequência da mudança de direção, pretende ver o contrato rescindido; a de um comandante de aviação, que se recusa a realizar qualquer atividade laboral aos sábados, de acordo com a sua religião; a de um trabalhador agnóstico, que se opõe à assistência a cerimônias de culto, obrigatórias para todos os trabalhadores da entidade em que trabalha.48

Relativamente ao assunto, Mário Antonio Lobato de Paiva faz referência à análise de certa decisão da Corte Argentina. O caso concreto apreciado diz respeito a um trabalhador argentino que invocou a liberdade de consciência para negar- -se a atender um passageiro de uma companhia aérea argentina, que integrou a ditadura militar daquele país. A empresa pretendeu puni-lo pela atitude, tendo o trabalhador sustentado que conduta diversa não lhe poderia ser exigida, porque a sua personalidade e dignidade ficariam extremamente abaladas caso realizasse o referido atendimento.49

O voto do juiz argentino, dr. La Fuente, deu-se no sentido de que o trabalhador, com base na liberdade de consciência, poderia realmente negar-se a atender pessoalmente o passageiro, mas que a boa-fé contratual e a lealdade para com a empresa não lhe permitem não dar à companhia e à empresa alguma alternativa, que seria, no caso, solicitar a outro colega que realizasse o atendimento ou o remetesse a um superior, que providenciaria a melhor solução para o caso. Concluiu que o procedimento do trabalhador afetou a prestação do serviço e a imagem pública da companhia.

Mário Lobato faz ainda referência ao voto do juiz Rodolfo Capón Filas, que confirmou a sentença recorrida, que determinava a anulação da sanção imposta pela empresa ao trabalhador. Sustentando que a liberdade de consciência legitimava a conduta do trabalhador, recordou-se que, em episódio semelhante, ocorrido durante a ditadura militar na Argentina, um maleiro de um hotel parisiense recusou-se a levar as malas de um ditador e que o Tribunal de Paris o reintegrou no emprego,

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sob o argumento de que, em um país livre como a França, é cabível a recusa ao atendimento de um ditador.50

A questão apresentada é por deveras interessante, na medida em que, sustenta-se, não se admite o exercício da liberdade de consciência a ponto de prejudicar os objetivos do contrato.

Digamos que a hipótese apresentada por Mário Lobato, por envolver um fato político, não tenha o condão de sensibilizar o intérprete para as reais nuances do problema da liberdade de consciência em relação à execução do contrato de trabalho. Imaginemos então uma outra hipótese, suscetível de contextualizar, em outros termos, o dilema do empregado: a de uma trabalhadora que se vê na contingência de precisar atender um passageiro que a estuprou. Poderia se recusar a realizar o atendimento com fundamento na liberdade de consciência ou tal recusa ensejaria a aplicação de pena disciplinar pelo empregador?

A Constituição brasileira, ao assegurar a inviolabilidade da liberdade de consciência (art. 5º, VI), pretendeu a realização concreta desse direito fundamental inclusive nas relações de trabalho e a consequente objeção de consciência, permitindo a recusa justificada às ordens atentatórias dessa liberdade. Mas se, por outro lado, também assegurou a liberdade de iniciativa, da qual o poder diretivo constitui conteúdo essencial no contrato de trabalho, o ajuste dessas liberdades revela-se essencial.

Note-se, no entanto, que a objeção de consciência é um direito de caráter excepcional, não servindo, de modo geral, como causa da recusa da prestação laboral. A sua atuação está condicionada à verificação de uma justificativa pertinente e insuperável nas circunstâncias.

Segundo Raquel Tavares dos Reis, o “direito à objecção de consciência é o direito fundamental de não ser obrigado a cumprir obrigações, a desenvolver atividades ou a praticar atos em desacordo com as convicções e/ou crenças que fazem parte da consciência de cada um e revela a pretensão de quem a faz valer de que o ordenamento jurídico libere a pessoa, por via de exceção, da norma geral, ou que lhe permita substituir o cumprimento da norma geral por outra alternativa, ou, pura e simplesmente, que lhe permita não cumprir a norma, sujeitando-se às consequências jurídicas sancionatórias previstas pelo ordenamento jurídico”.51

Ora, de um lado está a liberdade de empresa, com a necessidade de que os clientes sejam bem tratados para a manutenção da clientela e que as vendas sejam impulsionadas inclusive para o pagamento dos trabalhadores, entre eles, a referida atendente, sendo, pois, os atendimentos, obrigação contratual; de outro, a liberdade de consciência do trabalhador, que se vê, diante do caso concreto, impossibilitado de cumprir o contrato. A ponderação de valores deve buscar o

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ajuste entre esses dois direitos fundamentais...

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