A licença-maternidade como representação de uma ideologia velada ? a divisão de tarefas por gênero e o dever de cuidado parental

AutorJuliana Cleto
CargoPós-graduanda em Direito Constitucional (Academia Brasileira de Direito Constitucional) Graduada pelo Centro Universitário Curitiba Integrante do Grupo de Pesquisa em Biodireito e Bioética ? Jus Vitae
Páginas28-33

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1. Introdução

Não é novidade o fato de que, há algum tempo, as mulheres vêm exercendo dupla (senão múltipla) jornada de trabalho, que as sobrecarrega nas figuras de mãe, esposa e trabalhadora. Porém, não obstante as funções domésticas sejam majoritariamente exercidas por mulheres, o que se traduz numa construção social (e não natural), observa-se que a divisão de tarefas por gênero encontra-se ultrapassada, bem como os papeis sociais vêm se imiscuindo.

No entanto, existe ainda uma resistência às novas formas de se viver em âmbito privado – o homem é visto como sujeito da relação, competente e relevante no espaço público, enquanto a mulher desempenha um papel importante, mas inferiorizado, no espaço privado. Pretende-se, então, des- construir essa visão estigmatizada de homem-ativo e mulher-passiva no cenário familiar, social e trabalhista.

Portanto, destina-se o presente artigo a demonstrar a ideologia velada na visão “natural” da conduta doméstica feminina: aborda-se a questão do protecionismo dirigido à mulher versus a desigualdade de gênero que se perpetua quando não se estendem os mesmos direitos ao homem, bem como se questiona se este se encontra privado de uma garantia ou favorecido com a continuação no trabalho.

Posteriormente, adentra-se especificamente nas concepções de igualdade e como elas influenciam e são influenciadas pela sociedade – as desigualdades biológicas impedem a igualdade de gênero jurídica? Além disso, exercem elas ingerência na criação dos filhos e na prática do poder parental?

Na sequência, aborda-se a temática cultural e se realiza uma comparação entre o ordenamento jurídico interno e o que dispõe a legislação estrangeira acerca da licença-paternidade.

Por derradeiro, coloca-se em pauta o porquê de muitos pais dispensarem a licença-paternidade, mesmo quando esta é devidamente remunerada. Haveria alguma relação entre o estereótipo masculino e o afastamento do trabalho? O homem ainda é visto como um ser essencialmente público, enquanto a mulher se vincula ao ambiente doméstico?

2. Objetivos

Primeiramente, como objetivo geral, busca-se estudar as nuanças que envolvem o direito de licença-paternidade, relacionando-as a uma visão pré-estabelecida de que a criação inicial dos filhos seria competência exclusiva das mulheres.

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Posteriormente, na condição de objetivos específicos, pretendese: i. demonstrar que as diferenças biológicas entre homens e mulheres não impedem a igualdade de gênero material; ii. expor que a responsabilidade parental envolve a criação dos filhos igualmente por ambos os pais, na individualidade e habilidade de cada um; e iii. propor medidas para a conscientização da importância do pai tanto na criação dos filhos quanto na recuperação da mulher após o parto.

3. Metodologia

O trabalho em questão será fundamentado primeiramente em obras doutrinárias e em pesquisa legislativa, a fim de se analisar as previsões legais acerca da licençamaternidade e licença-paternidade, assim como averiguar os conceitos pertinentes à igualdade, em sentido amplo e restritamente à questão de gênero.

Posteriormente, o estudo se revolverá a uma comparação entre o ordenamento jurídico interno e as legislações estrangeiras – por meio de informações obtidas virtualmente junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), avaliar-se-ão os períodos de licença-paternidade nos demais países, sempre relacionando às situações decorrentes.

Ao final, será levantado um questionamento acerca dos motivos pelos quais alguns homens preferem não usufruir a licençapaternidade, bem como as implicações que se impõem e possíveis soluções para o problema.

4. Fundamentos da licençamaternidade – ideologia e lei

Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei1 para alterar a Consolidação das Leis do Trabalho, com o objetivo de se regulamentar a licença-paternidade. O benefício, que conta atualmente com cinco dias, passaria a totalizar dias com a alteração.

Demais modificações também constam do projeto, dentre as quais: a fixação do início da contagem da licença quando esta for concomitante ao período de gozo das férias, bem como o direito da licença ao pai adotante, independentemente da idade do adotado – esses são pontos sobre os quais ainda não se havia pacificado um entendimento e que continuavam a gerar dúvidas à classe trabalhadora.

Para o fim de se compreender as razões pelas quais se estabeleceu um período de licença-maternidade substantivamente maior do que a licença-paternidade, é preciso reconhecer que ainda vige na sociedade brasileira a ideia de que homens e mulheres detêm funções distintas, que se fixariam de acordo com o gênero. Convencionou-se, então, o exercício de determinadas atividades a um ou outro sexo, sendo que o indivíduo que transcenda esse limite será considerado como espécie de usurpador do papel social alheio.

As relações entre gêneros vêm acompanhadas de uma ideologia velada, que promove a discriminação e a separação de vocações e obrigações – cria-se o indivíduo para que este atue de forma pré-estabelecida por construções sociais, assim como se esperam dele atitudes condizentes com o seu gênero.

Em outras palavras, alegar que a mulher detém um período de licença consideravelmente maior em comparação ao homem base-ando-se pelo critério biológico é contribuir para a manutenção da ideologia corrente e ao mesmo tempo negá-la, ao se afirmar que tudo decorre de uma questão natural – a criação inicial dos filhos seria, portanto, nesta visão, atribuição exclusiva da mãe.

A mulher brasileira ainda é “entendida com-relação-a, isto é, como mãe com relação a seus filhos e filhas e como esposa com relação a seu marido”2. Muito embora os movimentos feministas tenham reconstruído a imagem da mulher perante a sociedade, ainda se denota uma superposição do homem como sujeito em detrimento da mulher-objeto.

No entanto, faz-se necessário reconhecer que mudanças também se operam continuamente no espaço familiar – não obstante o mode-lo composto por genitor, genitora e descendentes ainda subsista, não se traduz em regra. O fato de o homem ser “concebido como o provedor do pão e cujo âmbito de atuação é o público, enquanto a mulher é definida como cuidadora que desenvolve suas funções no âmbito privado”3, já não representa de forma absoluta a sociedade brasileira.

O legislador, talvez em sua ânsia de proteger a mulher, acabou por prejudicá-la, quando não estendeu o direito de licença de mesmo período ao homem – este, então, não participa da criação inicial do filho na mesma proporção da mãe. A maternidade ainda é tida como “um lastro na carreira da mulher”4, a qual se encontra restrita aos cuidados domésticos e parentais, quando em verdade a criação dos descendentes é obrigação de ambos os pais.

Não se destina o presente artigo a investigar as causas pelas quais o legislador infraconstitucional decidiu por bem conceder período de licença-maternidade maior do que aquela disposta aos homens. Independentemente de o motivo ser uma convenção social baseada na concepção de que somente a mãe deve criar os filhos, ou de ser uma espécie de benefício ao empregador (que não arca com uma licença-paternidade maior),

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ou mesmo de ser uma redação legislativa negligente, os fatos sociais não são mais os mesmos, razão pela qual necessária a revisão dos dispositivos legais acerca do tema.

Em 1965, o Brasil ratificou a Convenção 1035 da OIT, que dispõe em seu artigo III o direito de licença-maternidade de no mínimo doze semanas, sendo que parte desse período deve ser usufruído obrigatoriamente após o parto. Trata-se de um direito amparado por uma norma de caráter público, indisponível à mulher6, perfazendo-se inclusive uma garantia a nível constitucional (art. 7º, inc. XVIII, CF/88).

Não obstante, o direito à licença-paternidade também se encontra protegido pela lex legum, em seu art. 7º, inc. XIX –...

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