Memória e liminaridade entre discursos biográficos da História, do Jornalismo e da Literatura

AutorJuracy Ignes Assmann Saraiva - Claudia Schemes - Denise Castilhos de Araujo
CargoPós-doutora em Teoria Literária, Doutora em Letras, professora do curso de Letras e do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais e pesquisadora do grupo de pesquisa Linguagens e Manifestações Culturais da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS) - Doutora em História, professora dos cursos de História e Moda e do Mestrado em Processos e ...
Páginas126-158
DOI:10.5007/1984-8951.2011v12n100p126
Memória e liminaridade entre discursos biográficos da História, do
Jornalismo e da Literatura
1
Memory and liminality among biographical discourses of History,
Journalism and Literature
Juracy Ignes Assmann Saraiva
2
Claudia Schemes
3
Denise Castilhos de Araujo
4
Realizo interiormente todas essas ações, no grande palácio da
memória. Encontram-se aí, à minha disposição, céu, terra e mar,
com aquilo tudo que neles colher com os sentidos, excetuando-se
apenas o que esqueci. É aí que encontro a mim mesmo, e recordo
as ações que realizei, quando, onde e sob que sentimentos as
pratiquei. estão também todos os conhecimentos que recordo,
seja por experiência própria ou pelo testemunho alheio. (Santo
Agostinho)
RESUMO
O artigo enfatiza a importância da memória na constituição das identidades e, para
tanto, visualiza sua manifestação em discursos biográficos da História, do Jornalismo e
da Literatura. Por meio de uma análise interdisciplinar, expõe concepções que
orientaram a valorização da biografia nesses campos das Ciências Humanas e
estabelece aproximações e distanciamentos entre eles, enfocando, particularmente, a
relação entre ficção e realidade. A opção pelo biografismo justifica-se pela relevância
que esse gênero textual assume na reconstrução de realidades e na preservação da
memória e por provocar reflexões sobre os limites entre a narrativa histórica, jornalística
e literária.
Palavras-chave: Biografia. Memória.História. Jornalismo. Literatura.
1
Artigo produzido no âmbito de projetos de pesquisa que têm apoio da FAPERGS e do CNPq.
2
Pós-doutora em Teoria Literária, Doutora em Letras, professora do curso de Letras e do Mestrado em
Processos e Manifestações Culturais e pesquisadora do grupo de pesquisa Linguagens e Manifestações
Culturais da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). juracy@feevale.br
3
Doutora em História, professora dos cursos de História e Moda e do Mestrado em Processos e
Manifestações Culturais e pesquisadora do grupo de pesquisa Cultura e Memória da Com unidade da
Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). claudias@feevale.br
4
Doutora em Comunicação Social pela PUCRS. Mestre em Semiótica pela Unisinos/RS. Pesquisadora
do Grupo de Estudos Memória e Cultura da Comunidade da Universidade Feevale. Professora do
Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, e dos cursos de Comunicação Social e Design, (Novo
Hamburgo/RS). deniseca@feevale.br
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não Adaptada.
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Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, v.12, n.100, p.126-158, jan/jul 2011
ABSTRACT
The article emphasizes the memory importance in the identity constitution and, for this,
visualizes its manifestation in biographical discourse of History, Journalism and
Literature. Through an interdisciplinary analysis, exposes conceptions that guide the
biography valorization in these Human Science fields and establishes similarities and
differences among them, focusing, in particular, the relation between fiction and reality.
The option for biographism is justified by the prominence that this textual gender
assumes in the reality reconstructions and in the memory preservation and by provoking
reflections about the limits between the historical, journalistic and literary narrative.
Key-words: Biography. Memory. History. Journalism. Literature.
1 MEMÓRIA E IDENTIDADE
Ao enaltecer a capacidade de tornar presentes ações, experiências, sentimentos,
conhecimentos, revividos por meio de imagens sensoriais, Santo Agostinho enfatiza o
poder da memória de instituir a própria subjetividade ao afirmar: “é aí que encontro a
mim mesmo” (s.d. p. 274-276). O sentimento de perda ou de dispersão, que
acompanha o ser humano e continuamente denuncia sua finitude, encontra, na
evocação do passado, uma forma de resistência contra a perda da identidade ou, em
outras palavras, contra o esquecimento que, em certo sentido, equivale à morte.
Sob esse aspecto, o Bispo de Hipona recupera a importância atribuída pelos
gregos ao culto da deusa Mnemosyne, já que, para eles, a instalação da identidade
coletiva e individual depende da memória. Ao conferir aos poetas e historiadores o dom
de voltar ao passado, a deusa lhes transfere a função de enunciar feitos heróicos e de
instituir o campo da alétheia ou da verdade que, embora seja concebido por meio de
formas simbólicas, é aceito como se correspondesse ao próprio real (MEDEIROS,
XXX). Assim, o canto poético ou a palavra do historiador têm o poder de construir, por
meio da memória, a identidade de um povo, de dominar a fugacidade do tempo, de
representar a totalidade e de preservar as vozes dos enunciadores do esquecimento,
graças ao poder sobrenatural de Mnemosyne, cujas qualidades se transferem àqueles
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Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, v.12, n.100, p.126-158, jan/jul 2011
a quem a deusa distingue com seus dons, porque suas obras os tornam memoráveis e
imortais.
“A memória é a mais épica de todas as faculdades,” afirma Walter Benjamin
(1985, p. 210) ao defender a importância da relação de proximidade entre o narrador e
seu ouvinte e distinguir a experiência como condição que confere autoridade a quem
narra, ao mesmo tempo em que deplora a falta dessa condição em narrativas da
modernidade. Entretanto, a sabedoria, gerada pela memória e pela experiência, e o
desejo de resguardar o vivido se mantêm no mundo contemporâneo; nele preserva-se,
igualmente, a importância de diferentes modalidades de narrativas e o estabelecimento
de uma memória comum que elas transmitem. Essa memória garante aos indivíduos os
vínculos que lhes possibilitam integrar-se à história humana e situar-se diante de sua
própria finitude; além disso, ela forja uma identidade coletiva, em face da qual a
identidade individual desenha seus contornos próprios.
Portanto, a força inspiradora de Mnemosyne que motivou a criação e a
preservação da identidade dos gregos e o poder do “palácio” da memória – que
permite a Santo Agostinho reconhecer sua individualidade , não desapareceram com
as transformações da história humana e do modo de narrar. Eles se manifestam,
sobretudo, nas narrativas de caráter biográfico ou autobiográfico, ainda que sejam
provenientes do campo da História, do Jornalismo ou da Literatura. Assim, embora
preservem suas especificidades, essas narrativas recorrem à função antropológica da
memória para conceber a representação de um mundo que deve parecer verídico ou
para instalar um universo romanesco que, todavia, deve ser convincente. Dessa forma,
a rememoração serve de subterfúgio para a instalação de gêneros distintos, em relação
aos quais é possível identificar vínculos de semelhança e de diferenças.
2 HISTÓRIA E BIOGRAFIA
Durante muito tempo, pressupunha-se que a História só poderia ser considerada
séria e confiável se relatasse as trajetórias de vida de personagens ilustres,

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