Direito de retirada: um limite ao princípio majoritário na sociedade anônima

AutorJosé Alexandre Tavares Guerreiro
Páginas13-21

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1. Tradicionalmente afirma-se que a instituição do direito de retirada na disciplina das sociedades anônimas corresponde a uma solução de compromisso entre a necessidade de fazer atuar o princípio majoritário, de um lado, e, de outro lado, a necessidade de atenuar o rigor desse mesmo princípio.1 Entra em cena, com freqüência, a reiterada disposição de proteção das minorias acionárias não apenas contra as ilicitudes porventura perpetradas pela maioria como, principalmente, contra o exercício abusivo de seus poderes. Na raiz desse argumento existe a presunção da lei no sentido de que a maioria sempre estará sempre propensa não apenas a praticar ilícitos como, igualmente, a cometer abusos. Dito de outro modo, a tensão entre maioria e minoria na sociedade anônima revelaria a estrutura da companhia: um organismo dotado de um poder tido como "forte", que precisaria ser contido, e, de outro lado, um grupo de sujeitos havidos como "mais fracos", que poderiam sofrer as conseqüências das atitudes do outro grupo. Em suma, a sociedade anônima seria a composição de partidos inevitavelmente desiguais, sempre em potencial desequilíbrio, mas, por isso mesmo, objeto de uma série de providên-cias legislativas de caráter tutelar destinadas a restabelecer, na medida do possível, o necessário balanço. Daí a expressão consagrada "proteção da minoria", que revela, doutrinariamente, a preocupação com a permanente hipótese de um poder majoritário capaz de ameaçar de modo ilegítimo os direitos e interesses dos acionistas não-con-troladores ou minoritários.

2. O princípio majoritário na sociedade anônima, tal como previsto no art. 129 da Lei 6.404/1976, tem função central na organização da entidade O princípio formou-se historicamente como exceção das regras arcaicas relativas às relações deplu-res ut singuli. Na verdade, a sociedade anônima, tanto quanto a comunhão - e isso sem falar nas demais sociedades comerciais -, não pode simplesmente funcionar sem a transformação prática da maioria de-liberante em força tendente a unificar as relações internas da pessoa jurídica. Mas essa unificação, no plano interior da pessoa jurídica, torna-se imprescindível para a ela conferir, no plano externo, a eficácia de suas deliberações coletivas, como sujeito de direitos e obrigações Para quem queira conhecer, em resumo, a evolução do princípio majoritário, do direito canônico ao direito das primeiros Parlamentos do Ocidente, e daí por diante às sociedades modernas, a leitura da obra de Otto von Gierke será amplamente ilustrativa e esclarecedo-

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ra.2 De qualquer modo, o que a maioria representa no contexto da organização da sociedade anônima é o oposto da unanimidade - vale dizer, vem a traduzir o reconhecimento de deliberações tomadas por maioria com o mesmo efeito daquelas que pudessem contar com a aprovação explícita de todos e de cada um dos membros ou sócios. Natural, assim, que a lei sancione o exercício do poder majoritário (e bem assim o poder de controle) com as conseqüências advindas das práticas excessivas, ilícitas ou abusivas. A maioria somente se legitima quando orientada para a função de ordenação da pessoa jurídica e quando seu exercício se dê, sempre e inevitavelmente, no sentido do interesse social.

3. O princípio majoritário vem a ser, como se sabe, um dos elementos distintivos entre os contratos de sociedade e os demais contratos, na medida em que aqueles se qualificam como contratos de organização. Quanto aos outros contratos, as deliberações por maioria são pelo menos infreqüentes, quando não totalmente impossíveis, segundo a verificação da prática e da experiência. Tullio Ascarelli atentou, exatamente, para a existência, por assim dizer, "natural" de limites aos poderes da maioria na gestão da entidade organizada contratualmente: aí achamos - escreveu Ascarelli - a possibilidade (naturalmente em limites diversos nos vários casos) de uma deliberação por maioria, assinalando, ainda, que uma tal possibilidade corresponde justamente à existência de uma organização que visa a uma finalidade comum a todos os participantes. A possibilidade da deliberação majoritária (muito embora limitada) é, por isso - segundo a conclusão de Ascarelli -, tanto maior quanto mais nítida é, nos vários tipos de contratos plurilaterais, a distinção entre os inte-resses "comuns" e os interesses "particulares" de cada participante.3

4. É importante ressaltar, no entanto, que nem sempre a limitação imposta (por vezes) à atuação majoritária deve-se à dualidade de interesses, sendo alguns comuns e outros particulares, nos contratos de organização. Recai nessa última hipótese, precisamente, a vedação aos conflitos de interesse no exercício do direito de voto (art. 115), que se baseia na oposição entre ambas as sortes de interesses. Na retirada, entretanto, a regra do jogo, em busca de um equilíbrio a priori na estrutura do poder na sociedade anônima, existe a predominância do interesse de uma classe de acionista (do acionista majoritário ou controlador), mas o direito outorgado à outra classe (a do acionista minoritário ou não-controlador) não resulta se não de uma preordenação, operada pela própria lei, entre interesses legítimos, harmonizados aprioristicamente pelo texto legal, sem oposição entre uns e outros, do ponto de vista de sua legitimidade. A limitação à maioria, nessa hipótese, resulta da própria estrutura da sociedade, e não de conflitos atuais entre uma esfera e outra: nos dois campos há interesses acolhidos pela lei, com peso igual.

5. Não há necessidade, portanto, de invocar a distinção entre o que há de "comum" e o que há de "particular" no voto preponderante do acionista controlador naquelas matérias capazes de desencadear o exercício do direito de recesso. A questão acha-se resolvida ex ante pelo próprio legislador, mediante a normatização prévia de situações perfeitamente claras na vida da sociedade em que se devem harmonizar todos os interesses em jogo, em igualdade de condições. A tipificação dos casos de retirada é, por isso, rigorosa e insuscetível de ampliação para além das figuras expres-

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samente consignadas na lei. O recesso e, pois, o reembolso do valor das ações (art. 45) inscrevem-se nessa linha de resolução, não propriamente de uma antítese entre o lícito e o ilícito, ou entre o regular e o abusivo, ou entre o interesse comum da sociedade comum e o interesse particular do acionista. A solução da lei não leva em consideração senão o que já se contém em abstrato na estrutura formal da sociedade.

6. Nessas condições, há um primeiro e essencial limite ao exercício de quaisquer poderes provenientes da maioria: a observância da lei e do interesse social, que vêm a ser condicionantes das deliberações coletivas, orientadas pelo art. 129. Esse limite encontra-se exatamente como pressuposto de validade da maioria deli-berante. Dentro desse campo, em que se põe claro limite ao poder majoritário, deve-se igualmente considerar os casos em que a própria lei consigna determinadas hipóteses de redução do...

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