Limites Atuais à Negociação Coletiva, a Doutrina Social Cristã e os Direitos Fundamentais no Pós-Reforma Trabalhista

AutorLorena de Mello Rezende Colnago
Páginas43-57

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1. Introdução

Há tempos que alguns economistas e governos, durante as crises econômicas, apontam o Direito do Trabalho como entrave máximo ao crescimento econômico, reiterando a pressão política para que as normas trabalhistas adaptem-se ao crescimento e revolução tecnológica para melhor atender aos anseios de “progresso” do setor econômico, sob o fundamento de que as normas trabalhistas dificultam a competitividade das empresas, e por isso, são o fator ensejador de tanto desemprego. Com as reformas trabalhistas tramitando no Congresso Nacional desde o fim de 2016, como promessa de solução para a crise econômica brasileira, reavaliar os institutos mais fundamentais do Direito do Trabalho torna-se uma tarefa árdua, mas extremamente necessária.

O presente estudo parte da uma análise da doutrina social cristã a partir da Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII até a Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, resgatando seus ensinamentos que influenciaram e influenciam o Direito do Trabalho, sem analisar outros contrapontos inerentes aos atos praticados ao longo dos séculos pela Igreja Católica.

Após essa análise, buscou-se revisitar os princípios da proteção, matriz do Direito do Trabalho, e da indisponibilidade, distinguindo, ainda que brevemente, a renúncia da transação, para finalmente avaliar qual seria o conteúdo mínimo trabalhista infenso à negociação coletiva ou à alteração legislativa, pois esse conteúdo tem influência em todas as produções de fontes no

Direito do Trabalho e constituiria o chamado núcleo duro desse ramo jurídico.

Por fim, ainda que superficialmente, foi analisado o Projeto de Lei n. 6.787/2016 sob a perspectiva da adequação da negociação coletiva e dos seus instrumentos normativos decorrentes à proteção do mínimo indisponível trabalhista, ou núcleo duro do Direito do Trabalho Brasileiro, mas também a efetiva alteração da negociação coletiva com a Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017.

Assim, a pesquisa utilizou o método dedutivo, a partir de dados bibliográficos e documentais, e em menor medida dados jurisprudenciais para encontrar o início da delimitação do núcleo duro do Direito Material do Trabalho, na tentativa de balizar as reformas trabalhistas e futuras negociações coletivas tão necessárias à superação da crise politica e econômica brasileira.

2. Apontamentos sobre a doutrina social cristã com enfoque na encíclica rerum novarum e sua releitura a em maio de 2015 pela encíclica laudato si

A doutrina social cristã consiste nos ensinamentos retirados do Evangelho pela Igreja Católica sobre a chamada “questão social”, que envolve não somente as questões ligadas aos trabalhadores, mas também aquelas pertinentes ao bom convívio entre seres humanos em sociedade e com seu meio ambiente. A parte que mais interessa nesse estudo é a trabalhista, uma vez que se extrai das encíclicas um norte com caráter

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jusnaturalista de aplicação ao Direito do Trabalho envolvendo a necessidade de cooperação entre capital e trabalho, a prevalência do trabalho sobre as questões do capital, a necessidade de os governos e empresas observarem um valor salarial que permita uma vida digna ao trabalhador – manutenção da vida -, bem como a observância entre a proporção do trabalho e sua remuneração.2 A partir dessa introdução, destaca-se a centenária encíclica Rerum Novarum, a primeira a preocupar-se efetivamente com a questão do trabalho, com apontamentos e atualizações que a ela se seguiram nos papados subsequentes.

A encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII continua muito atual ao proclamar a necessidade do fim da luta de classes (capital x trabalho) e declarar que o capital não vive sem o trabalho e vice-versa3, mormente nesse início de ano (2017) em que o Brasil encontra-se imerso numa crise econômica forte, necessitando de inúmeras reformas, sendo uma delas a das normas trabalhistas.

Nesse contexto de denúncia aos abusos no trabalho industrial, sem, contudo, excluir a defesa à propriedade privada, mantendo a crítica ao sistema socialista, que defendia e defende a distribuição dos bens pelo Estado e defesa de um Estado laico, a Igreja Católica reconheceu que a situação dos operários era grave, “não sendo a vontade de Deus tal situação” (§ 3º da Encíclica de 1973).4

Pode-se afirmar que ao lado das inúmeras revoluções sociais, greves e reivindicações5 por melhores condições de vida e trabalho, a Igreja Católica contribuiu fortemente para o surgimento do Direito do Trabalho tal como hoje é conhecido, pois um de seus maiores pilares é o princípio da proteção do trabalhador como membro mais frágil dessa relação jurídica. Ademais, foi em meio a uma crise mundial causada pela 1ª Guerra (1914-1918) que os homens perceberam a sua igual-dade na luta e na morte, não havendo justificativa humana para tanta disparidade econômica e legislativa existentes naquele momento.6

Ao enunciar que o trabalho não é mercadoria7 (§ 23 da Encíclica que defende a proteção da alma humana e a igualdade entre os homens) a Igreja Católica defendeu a necessidade de intervenção do Estado por meio de leis que pusessem fim ao “caos” causado pelas greves, abundantes na época – lembrando que a mesma encíclica condenou a greve como algo ruim para a sociedade por promover lutas e discórdia (§ 22) – criando uma alternativa doutrinária para o surgimento do Direito do Trabalho, distinta das teorias marxistas e da doutrina socialista que avançava por toda a Europa à época. Vale lembrar que os movimentos sindicais internacionais eram muito abundantes e começaram a ganhar espaço político inclusive no governo, o que incomodava bastante as estruturas sociais estáticas existentes8.

Não há como dissociar o surgimento do Direito do Trabalho do surgimento do princípio da proteção, pois uma vez que são criadas leis para impedir a exploração da classe industrial quanto ao uso da força humana, essas leis necessariamente nasceram sob a égide da proteção da dignidade humana.

A encíclica Laborem Exercem de 1981 do Papa João Paulo II enriqueceu a visão personalista do trabalho (§ 3), indicando que o trabalho é a “chave essencial” para as relações sociais condicionando o desenvolvimento econômico, moral e familiar em sociedade, de todo o gênero humano. Já a Encíclica Caritas Veritate de Bento XVI, proclamada em 2009, enunciou que apesar da globalização o trabalho e a empresa devem ser vistos como acta personae – ações dependentes de

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pessoas, elucidando ainda o conceito de colaboração na atividade econômica, em contraponto com interesses econômicos e concorrência desenfreada9.

Retomando a atualidade da encíclica Rerum Novarum, em maio de 2015 o atual Papa Francisco proclamou a encíclica Laudato Si’, ainda mais abrangente que a Rerum Novarum, valendo citar a literalidade dos seus §§ 18 e 128:

§ 18. A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objectivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade.
§ 128. Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a acção do homem se pode voltar contra si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho «tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensável em qualquer convivência civil». Em suma, «os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos». Renunciar a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade.10

O primeiro alerta importante advém da exploração degradante do meio ambiente por meio do avanço da tecnologia em detrimento das relações sociais. A partir desse ponto, o Papa Francisco desenvolve não só o tema da ecologia com menção aos alertas dos pontífices anteriores, João Paulo e Bento, mas também adverte para as degradações humanas decorrentes do modelo de produção e consumo. O enfoque é duplo: humano e ambiental (bioético).

Destaca-se o vocábulo: rapidez. Aceleração do desenvolvimento: rapidación.

Não se condena o consumo, mas o consumo exagerado, destituído de consciência, que leva a indústria de um modo geral a permanecer na corrida pelo aumento desenfreado da produção e, via de consequência, da criação de necessidades nos...

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