Limites, possibilidades e consequências da extensão do contraditório ao inquérito policial (Reflexões sobre o PLS 366/2015)

AutorEduardo Cambi - Gerson Ziebarth Camargo
CargoPromotor de Justiça no Estado do Paraná - Mestrando em Direito (UNIPAR)
Páginas91-109

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1. Introdução

O direito processual brasileiro sofreu mudanças profundas nos últimos tempos, principalmente relacionadas à emergência de um novo paradigma, tanto na teoria jurídica quanto na prática dos tribunais, o que tem sido denominado de neoconstitucionalismo e neoprocessualismo (Cambi, 2016).

Essas transformações, que se alargaram sob a égide da Constituição Federal de 1988, envolvem vários elementos diferentes, mas mutuamente implicados, que podem ser assim sintetizados: a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do direito; b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou "estilos" mais abertos de raciocínio jurídico - ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; c) constitucionalização do direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; d) reaproximação entre o direito e a moral, com a penetração cada vez maior da filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.

No contexto da constitucionalização do processo penal, do garantismo penal e da processualização de procedimentos, as garantias do contraditório e da ampla defesa são invocadas em favor do réu para que se assegure o devido processo legal. Assim, percebe-se que há um modelo processual estabelecido na Constituição Federal e que serve como alicerce para todas as espécies do direito processual, não podendo ser ignorado e muito menos ultrajado.

Por isso, todo e qualquer estudo que se refira à matéria processual deve partir desse modelo constitucional, que se encontra sedimentado, sobretudo, nos direitos e garantias fundamentais processuais.

As relações entre o processo e a Constituição são relações dialógicas, de recíproca implicação. Há, na doutrina jurídica contemporânea, um diálogo constante entre o direito processual penal e civil e o direito constitucional, a ponto de poder se identificar, de um lado, uma teoria processual da Constituição e, de outro, uma teoria constitucional do

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processo, como desdobramento da força normativa da Constituição, especificamente canalizada para o campo das liberdades públicas. Desse modo, há uma processualização da Constituição, a par de uma concomitante constitucionalização do processo ("materialização do direito processual").

Apesar da aproximação entre o processo civil e o processo penal na constitucionalização do processo, nota-se que no âmbito processual civil a garantia do contraditório ganhou maior repercussão e mereceu mais atenção e desenvolvimento a ponto de ser visualizado como um trinômio "informação-reação-poder de influência", formando-se um amálgama com a ampla defesa. Já no âmbito processual penal o alcance do contraditório se limitou ao binômio informação-reação, não sendo compreendido em conjunto com a garantia da ampla defesa. talvez por isso o contraditório se tornou mais robusto na defesa de direitos patrimoniais, tendo alcance mais tímido na defesa da liberdade. Essa timidez no processo penal é oriunda da dicotomia entre os sistemas inquisitivo e acusatório, os quais se diferem, entre outras razões, pela garantia do contraditório no segundo sistema.

Discussões à parte sobre a dicotomia entre os sistemas inquisitivo e acusatório e a própria caracterização de ambos, como bem anota Guimarães (2016), é mister o favorecimento do "papel que merece ser reservado às garantias processuais de ampla defesa e contraditório e a função do juiz no processo penal brasileiro" (Guimarães, 2016, p. 266).

Nessa perspectiva, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 366/2015, que altera o Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, para assegurar contraditório relativo no inquérito policial. Referido projeto é de autoria do senador Roberto Rocha (PSB-MA) e atualmente se encontra na relatoria da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania3.

Trata-se substancial alteração relativa ao inquérito policial, que tradicionalmente não admite a manifestação do contraditório. tal mudança, oriunda da ampliação da garantia do contraditório, pode ensejar uma releitura do processo penal, principalmente no que se refere à investigação, à produção de provas, à razoável duração do processo, à ampla defesa do investigado e ao papel do magistrado. Afinal, em eventual adoção do contraditório em sede policial, o juiz deixaria sua inércia e

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evitaria um efeito de ausência de efetividade das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Nessa análise, colide a atividade inquisitiva desempenhada pela polícia judiciária, que em tese traz mais segurança para a investigação, com a necessidade de o indiciado participar efetivamente da colheita preliminar de elementos de prova.

Assim, surge a questão: quais são os limites, as possibilidades e as consequências da aplicação do contraditório em sede de inquérito policial?

2. Extensão do contraditório à fase pré-processual

De acordo com o art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados, em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerente". A garantia do contraditório abrange, pois, o processo judicial ou administrativo. O inquérito policial não é processo, mas mero procedimento, razão pela qual não incide tal garantia processual (Cambi; Cambi, 2006, p. 58-82).

No entanto, o PLS 366/2015 visa à extensão da garantia do contraditório à fase pré-processual, ao sugerir a inclusão dos seguintes parágrafos no art. 14 do CPP: "§ 1º É direito do defensor, no interesse do investigado ou indiciado, ter acesso aos elementos de prova que, já documentados nos autos do inquérito policial ou outro procedimento de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa, excetuados os registros relativos a diligências em andamento e medidas cautelares sigilosas, cujo acesso possa prejudicar a eficácia das investigações. § 2º Em caso de indiciamento pelo delegado de polícia, em ato fundamentado nos elementos de prova que comprovem a materialidade delitiva e indícios de autoria, o indiciado, por meio de seu defensor, terá vista dos autos, podendo tomar nota, obter cópia e requerer diligência, suspendendo-se o prazo do inquérito, se for o caso, observado o disposto no caput" (BRASIL, 2015).

Além disso, o PLS 366/2015 propõe a alteração do art. 155 do CPP, que passaria a vigorar com a seguinte redação: "O juiz formará sua con-

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vicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos de prova colhidos no inquérito, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis, antecipadas ou produzidas sob crivo do contraditório, com a participação da defesa técnica" (BRASIL, 2015).

Percebe-se, com isso, que o PLS 366/2015 prestigia o sistema acusatório no processo penal, que se caracteriza pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial (Lima, 2015, p. 39).

Mais importante do que esse prestígio é vislumbrar um cenário de contenção de poder do Estado representado, no inquérito, pela autoridade policial, por meio da efetividade de um conjunto de garantias para o cidadão acusado.

Contudo, a jurisprudência do Supremo tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que o inquérito policial é peça meramente informativa, não suscetível de contraditório, e sua eventual irregulari-dade não é motivo para decretação da nulidade da ação penal4.

De qualquer modo, a utilidade da extensão do contraditório à fase pré-processual deve ser discutida, já que, com a intervenção da defesa, pela apresentação e/ou indicação de material probatório suficiente, desde que não se revelem prejudiciais à eficácia das investigações, a atividade persecutória do Estado poderia ser reduzida, inclusive com o melhor dimensionamento das ações penais (Oliveira, 2011, p. 55; tourinho Filho, 2012, p. 75).

Com efeito, não se trata de privilegiar o sistema acusatório em detrimento do inquisitivo ou mesmo de insistir nessa dicotomia, mas sim de consagrar garantias constitucionais para proibir excessos por parte do Estado e, simultaneamente, proibir proteção estatal ineficiente em face à inviolabilidade de direitos fundamentais do cidadão investigado.

O PLS 366/2015 prestigia o sistema acusatório no processo penal

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3. limites à extensão do contraditório na fase de inquérito policial

De início, mister se faz a ressalva do cenário político-criminal brasileiro, no qual os investigados e réus sequer possuem uma defesa técnica qualificada, seja pelas dificuldades financeiras de se contratar um advogado, seja pelos problemas estruturais na implantação e manutenção das defensorias públicas no Brasil.

Por outro lado, não há que se fechar os olhos a projetos de lei penal e processual penal que "surgem" ou "são desenterrados" em um contexto revanchista, impulsionado por delações premiadas trazidas no bojo da operação Lava-Jato, envolvendo personalidades influentes da política nacional, para, a pretexto de tornar o processo penal mais democrático, criar óbices à investigação da polícia judiciária e do Ministério Público.

Esses dois cenários, por si sós, exigem cautela. Entretanto, os limites a partir de agora traçados, neste texto, se concentram em questões de dogmática processual.

O sistema...

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