Situação da língua portuguesa em Timor Leste e responsabilidade política do Brasil

AutorCarlos Eduardo Vasconcelos
CargoProcurador Regional da República e Professor Assistente de disciplinas penais na Universidade de Brasília.
1. Pluralidade lingüística

A convivência com tradutores e intérpretes e o diálogo em línguas diferentes não constituem uma novidade trazida pelas Nações Unidas para Timor Leste. Na verdade, desde tempos imemoriais, toda a ilha foi sendo ocupada por povos mercadores, oriundos tanto da Ásia quanto do Pacífico. Como eram comerciantes, eles se comunicavam, mas cada um manteve, mais ou menos, suas instituições sociais, inclusive as respectivas línguas. Insisto em línguas e não dialetos, embora estes também existam, para evitar o hábito etnocentrista de qualificar a "nossa" de língua e degradar a dos outros, os "nativos", à posição de "dialetos". Num país do tamanho de Sergipe, aludem os estudiosos à existência de pelo menos doze línguas, com denominações tais como Tétum, Daiwan, Makassae e Fataluku1. Por ser falado pela maioria da população2, particularmente em torno da capital Díli, o Tétum é considerado como língua franca de toda a ilha e por isto mais conhecido e estudado no estrangeiro. A estrutura social de alta complexidade dessas tribos, que compreende o amor pela liberdade e a solidariedade, determinou que vivessem durante séculos mais ou menos autônomas, mas, ao mesmo tempo, unidas na defesa do território contra intrusos e nas estratégias de convivência e/ou sobrevivência frente aos colonizadores e os invasores.

2. Herança lusófona

Quem fala Português em Timor Leste atualmente?

Estimativas não passíveis de verificação indicam que não mais que uma faixa de 15 a 25% da população são capazes de se expressar na língua do colonizador. O certo é que este seleto grupo se constitui das pessoas acima de 40 anos, além dos religiosos e das elites culturais, políticas e econômicas, que se exilaram ou tiveram oportunidades de estudar no exterior, e agora retornam à pátria. As principais lideranças políticas timorenses contemporâneas manejam em diferentes graus de proficiência o idioma Português. Palavras portuguesas estão definitivamente incorporadas ao Tétum, às demais línguas nativas e ao Indonésio falado no território. No entanto, o grosso da juventude, que teve um papel fundamental na resistência ao invasor e na luta pela independência, ainda é incapaz de falar nossa língua.

Durante a ocupação indonésia, o Português foi banido dos espaços públicos, das escolas e dos escassos meios de comunicação. A novela brasileira "A Escrava Isaura" foi vista pelos timorenses dublada em Indonésio. O uso do Português na comunicação privada, se não era reprimido com violência sempre que possível, poderia configurar indício de filiação a movimentos de insurreição. Na tentativa de conquistar os corações e mentes das futuras gerações, já que as antigas, aparentemente, pareciam "perdidas" para uma sujeição à Indonésia, esta estendeu a escolaridade básica a todos os recantos do território e facilitou o quanto pôde o acesso dos timorenses à educação universitária, tanto em Díli, que chegou a ter uma universidade, quanto em outras ilhas do arquipélago.

Saliente-se que o esforço de unificação lingüística não é uma marca da opressão indonésia apenas em Timor. Lembremo-nos de que o critério territorial para se delimitar um país chamado Indonésia (aliás, uma palavra grega3) foi apenas o fato de se ter pertencido ao império colonial holandês, que se desfez após a Guerra do Pacífico4.

Dentro desse território de cerca de 17 mil ilhas convive uma infinidade de etnias, religiões e línguas, nem sempre mantendo entre si relações amistosas. Os estudiosos reconhecem certos traços específicos no sistema político indonésio, que compreendem uma dominação política, cultural, econômica e militar das elites de Java, a ilha mais populosa, sobre os demais povos, dominação esta exercida com extrema violência e corrupção de uma casta econômica e militar. Sua língua oficial, pomposamente chamada de Bahasa Indonesia, é imposta a ferro e fogo sobre todo o arquipélago, como um dos pilares da unidade nacional, que se deseja construir sobre um conglomerado de povos - cerca de 240 milhões de pessoas. Esses povos teimam em se desintegrar politicamente, e só não o fazem graças a um sistema de vigilância política e repressão policial ou militar, que permeia toda a sociedade, e é particularmente violento em Timor Leste.

A brutalidade do sistema político indonésio5, especialmente de sua casta militar, encontra seu ápice no assassinato de cerca de 800 mil pessoas em 1965, que se seguiu ao golpe branco sobre o presidente Sukarno e inaugurou a era Suharto, a pretexto de uma perseguição sem tréguas ao comunismo. Razões óbvias determinaram que um massacre dessa dimensão, sem precedentes desde a 2ª Guerra Mundial, não tenha causado grande comoção no Ocidente: o alinhamento quase automático do governo indonésio com os interesses das grandes potências ocidentais na Guerra Fria, o controle de uma população potencialmente explosiva numa região de grande turbulência e a eficiente diplomacia indonésia, que compreendeu certa retórica terceiro-mundista e anticolonialista no Movimento Não-Alinhado, totalmente inócua dentro da própria casa. No período de ocupação de Timor Leste (1975- 1999), estima-se que 200 mil pessoas, numa população que já se aproximou do milhão, morreram em decorrência da resistência6.

Assim como a nacionalidade, a língua oficial da Indonésia também tem uma origem "artificial". Trata-se do malaio7, utilizado durante séculos pelos mercadores nativos, como "língua internacional" entre os portos das várias ilhas. Os colonizadores europeus, principalmente holandeses, não tardaram em ver nela um veículo extremamente útil de dominação, e contribuíram para disseminá-la, além de lhe emprestarem palavras e regras gramaticais provenientes do Holandês, do Inglês e do Português. Com variações que não prejudicam sua compreensão, é falada também na Malásia (onde recebe o nome de Bahasa Malaysia) e no sultanato de Brunei.

A sobrevivência do Português no Timor sob ocupação indonésia muito fica a dever à Igreja Católica. Essa é a religião da esmagadora maioria dos timorenses orientais, circunstância que os torna exóticos num mar de Islamismo, Hinduísmo, Budismo e práticas animistas. Seus templos e seminários serviram não apenas como ambiente propício ao fomento das idéias "independentistas", como também de refúgio da própria língua e janela para mundos e aspirações mais distantes. Assim, se for verdade, como geralmente se aceita, que a rejeição da opressão indonésia determinou um crescimento da fé católica sem precedentes durante a colonização portuguesa, também é lícito especular que tal inusitado fervor religioso tenha concorrido não só para o cultivo como também para a disseminação da língua.

Todavia, é preciso reconhecer que Portugal, enquanto pôde, não se interessou muito pela difusão da educação e da sua língua entre os timorenses. Mesmo nos últimos anos da colonização, só uns poucos milhares de privilegiados nativos eram fluentes em Português8. Além de Timor ser uma colônia distante e dispendiosa, se comparada com os territórios africanos, a modalidade de colonização ali praticada não exigia a sujeição completa de seus habitantes à cultura e dominação portuguesas. Nessa opção, talvez, resida o segredo, por um lado, da duração da presença portuguesa, da pouca ou nenhuma resistência por parte dos nativos e, por outro lado, da sobrevivência quase intacta das instituições sociais autóctones. Para os interesses portugueses, bastava distribuir algumas benesses, tais como bolsas de estudo, cargos nos escalões inferiores da administração civil, da polícia e das forças armadas a um punhado de chefes tradicionais, a exemplo dos liurais9,e com isso obter a aquiescência passiva dos respectivos súditos. A seu turno, os vários reinos timorenses viam suas lideranças tradicionais fortalecidas (em certas situações até defendidas em armas) pelo próprio colonizador, o que lhes permitia gerir seus assuntos mais imediatos, como a distribuição da autoridade no seio do grupo, os ritos religiosos, a administração da justiça e o uso da própria língua. Tal modelo permitiu que a presença de metropolitanos em Timor fosse inexpressiva em todo o tempo. Nunca houve um fluxo migratório português para Timor. O serviço do estado se manteve com uns poucos milhares de portugueses, como militares, policiais, chefes de repartições públicas, professores, ou membros de ordens religiosas, geralmente em caráter temporário. Portanto, malgrado tentativas isoladas de governadores e educadores, o modelo de colonização português em Timor prescindiu de um sistema escolar universal. As poucas escolas existentes eram quase sempre mantidas pela Igreja Católica, que eventualmente oferecia bolsas de estudo na Metrópole aos alunos mais talentosos e promissores para seus projetos evangelizadores.

Aqui, é oportuno estabelecer um paralelo entre o Português e o Indonésio no território de Timor Leste. O manejo do Português pelos nativos, por mais inexpressivo que fosse, tinha uma conotação de ascensão política e cultural, de superação da ignorância, de cidadania. O...

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