O livro de reclamações online ? A reforma 'cosmética' do 'simplex+ 2016'

AutorMarisa Dinis/Susana Almeida
Páginas184-210

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Ver Nota12

Excertos

“O livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu”

“Cremos que são sobejamente conhecidos os riscos acrescidos que representa, para o consumidor, a contratação através de meios digitais, podendo haver maior predisposição para que os fornecedores de bens e prestadores de serviços violem a lei pelo fato de se encontrarem fisicamente longe do consumidor”

“Sempre que a reclamação é feita em formato físico, cabe ao fornecedor de bens ou prestador de serviços remeter o original da folha de reclamação para a entidade competente”

“Apenas nas reclamações apresentadas eletronicamente, exceção feita às reclamações apresentadas no âmbito de serviços públicos essenciais, se obriga o fornecedor de bens ou prestador de serviços a responder ao consumidor”

“O livro de reclamações tem sido entendido como uma fundamental ferramenta ao serviço dos consumidores, permitindo que estes exerçam o seu direito de reclamação face ao incumprimento ou cumprimento defeituoso da relação contratual que encetaram”

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I Considerações iniciais

O artigo 3º da denominada lei de Defesa do Consumidor, a lei 24/96, de 31 de julho, elenca nas suas diversas alíneas os direitos do consumidor, referindo, na alínea a), que estes têm direito à qualidade dos bens e serviços. no artigo seguinte, concretiza este direito afirmando que “os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”. este direito substantivo foi depois preenchido desenvolvidamente pelo Decreto-lei 67/2003, de 8 de abril, que regula a venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. É precisamente nesta sede que a atuação do livro de reclamações é essencial. na verdade, esta ferramenta tem sido entendida, desde sempre, como um aliado do consumidor cujo objetivo principal reside no fato de, desta forma, simples, célere e pouco onerosa, se poderem denunciar incumprimentos ou cumprimentos defeituosos que põem em causa a boa execução dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços. assim, pretende-se, igualmente, repor a igualdade material dos intervenientes nas relações jurídicas de consumo, tal como demanda o n. 1 do artigo 9º da predita lei de Defesa do Consumidor.

A evolução jurídica do livro de reclamações tem sido evidente. Com efeito, apesar de o respectivo regime jurídico vir regulado no Decreto-lei 156/2005, de 15 de setembro, a sua existência no plano jurídico português remonta à década de 60 do passado século. Desde então, o regime jurídico aplicável foi sofrendo diversas alterações e foi vendo o seu âmbito de abrangência alargado até abarcar praticamente todas as atividades, como melhor veremos adiante. neste escrito, pretendemos, de forma sucinta, dar conta da mais recente alteração legislativa que se fez sentir neste particular e que adveio da entrada em vigor do Decreto-lei 74/2017, de 21 de junho. a análise que segue, pese embora, como se referiu, abreviada, não se exime às críticas que se entende formular, já que, em nosso entendimento, a reforma que se operou é, na verdade, “cosmética” e parca em soluções substanciais.

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II Do livro de reclamações – génese e funções

Mencionámos supra que a existência do livro de reclamações no plano jurídico português remonta à década de 60 do séc. 20. Com efeito, assim é. Foi em 1969 que se instituiu, pela primeira vez, a obrigação de os estabelecimentos hoteleiros, de restauração e de bebidas, facultarem aos seus clientes o livro de reclamações. em 1973, esta obrigação dirigiuse aos operadores turísticos, em 1985 aos titulares de salas de jogo do bingo, em 1992 aos titulares de lojas de mediação imobiliária, em 1993 aos titulares de unidades privadas de saúde, em 2001 aos titulares de agências funerárias, em 2003 aos titulares de campos de férias, em 2004 aos titulares de estabelecimentos termais e, finalmente, em 2005 aos titulares de estabelecimentos de bronzeamento artificial. Foram, pois, diversos os diplomas que, sucedendo uns aos outros, permitiram alargar paulatinamente a obrigação do livro de reclamações a um elevado número de atividades. Porém, esta diversidade legislativa conduziu a que, na prática, coexistissem diferentes modelos de livros de reclamações e consequentemente diferentes procedimentos. ainda em 2005, o legislador entendeu que tinha chegado a altura de, por um lado, alargar a obrigatoriedade do livro de reclamações a outras atividades que, apesar do processo de extensão verificado, continuavam excluídas e, por outro lado, uniformizar o modelo do livro de reclamações e os procedimentos a adotar em caso de reclamação. o principal objetivo do Decreto-lei 156/2005, de 15 de setembro, foi efetivamente, como decorre do próprio preâmbulo, “tornar obrigatória a existência do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens e prestadores de serviços que tenham contato com o público”, aproveitando-se, porém, o ensejo para tratar da sua uniformização. Foi, pois, desta forma, que se construiu, pela primeira vez, um regime jurídico unitário do livro de reclamações aplicável a praticamente todas as atividades, exceto aos serviços e organismos da administração pública que continuaram (e continuam) a reger-se pelo disposto nos artigos 38º e 35º-a3 do Decreto-lei 135/99, de 22 de abril.

Para além dos supramencionados objetivos, expressamente declarados no diploma, o preâmbulo apresenta afirmações que

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encerram importantes concepções a respeito da pertinência, da ratio e das funções do livro de reclamações. Com efeito, cremos que é relevante o fato de o legislador afirmar perentoriamente que “o livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu” e que “a criação deste livro teve por base a preocupação com um melhor exercício da cidadania através da exigência do respeito dos direitos dos consumidores”. não temos dúvidas, pois, que ao livro de reclamações está cometida uma importante função na defesa dos direitos dos consumidores, permitindo que estes reclamem, de imediato, de forma célere, económica e simples, sempre que vejam os seus direitos afetados e sempre que a conduta do agente económico seja contrária à lei. Por outro lado, não podemos depreciar que a mera possibilidade de os consumidores fazerem uso do livro de reclamações permite, não raras vezes, que o conflito que se gerou, entre o consumidor e o agente económico, seja resolvido de imediato, sem a intervenção de terceiros e sem as delongas que uma resolução judicial (e mesmo extrajudicial) acarretaria. trata-se, assim, de um forte instrumento na prevenção de conflitos. no entanto, estas consequências, sem dúvida importantes e de elevado relevo, não são suficientes para que possamos afirmar que o livro de reclamações é um instrumento absolutamente eficaz na defesa dos direitos dos consumidores. na verdade, ainda há algumas medidas a tomar para que, na prática, o livro de reclamações cumpra de forma eficaz as funções que lhe se atribuem.

O Decreto-lei 156/2005 sofreu, até à presente data, seis alterações, produzidas cronologicamente pelos seguintes diplomas4:

Decreto-lei 371/2007, de 6 de novembro, Decreto-lei 118/2009, de 19 de maio, Decreto-lei 317/2009, de 30 de outubro, Decretolei 242/2012, de 7 de novembro e Decreto-lei 74/2017, de 21 de junho5. esta última alteração, a que naturalmente nos importa mais nesta análise, surge, segundo se afirma no preâmbulo do diploma, com o objetivo de reforçar os direitos dos consumidores, de facilitar a relação entre consumidores e agentes económicos e de relançar a economia, objetivos que, aliás, resultam do próprio Programa do XXi governo Constitucional. Do preâmbulo resulta ainda que é essencial

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modernizar e simplificar o livro de reclamações, em especial no que toca à sua desmaterialização e à desmaterialização dos procedimentos inerentes às reclamações. a medida “livro de reclamações online” consta do programa simplex+ 2016 e traduz-se, de forma muito sintética e desprendida (ainda) de considerações críticas, na possibilidade de os consumidores apresentarem reclamações sobre os fornecedores de bens ou prestadores de serviços de forma eletrónica em vez de o fazerem, como até agora, em suporte de papel, no livro de reclamações disponibilizado, nos termos legais, para o efeito. acresce à possibilidade de o consumidor apresentar eletronicamente a sua reclamação a faculdade de, desta forma, submeter pedidos de informação e de consultar o estado em que se encontra o tratamento da reclamação apresentada. trata-se, com certeza, de uma boa medida que, por um lado, facilita o acesso à queixa por parte do consumidor e, por outro, permite – ou pelo menos assim o dita o preâmbulo do diploma – um tratamento mais célere e eficaz por parte das entidades de controlo. trata-se, repetimos, de uma boa medida. Veremos, adiante, se bem implementada.

III Do Decreto-Lei 74/2017, de 21 de junho – o antes e o depois
1. Do âmbito de aplicação

Dispõe o n. 1 do artigo 2º do Decreto-lei 156/2005, nas suas duas alíneas, que ficam obrigados a disponibilizar o livro de...

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