A luta pelos direitos ciganos no Senado Federal/The struggle for gypsy rights in the Federal Senate.

Autore Silva, Phillipe Cupertino Salloum

Introdução

Desde os primeiros anos da colonização portuguesa, há registros de pessoas e famílias ciganas ocupando o território hoje conhecido como Brasil. Entre os séculos 16 e 18, uma série de instrumentos normativos foram emitidos pelo Reino de Portugal, que basicamente criminalizavam a existência cigana, proibindo práticas relacionadas à cultura deste povo, como o uso da própria língua, das vestimentas e das formas de organização social. As penas impostas variaram entre a prisão em galés, as agressões físicas, o degredo e a morte. As elites políticas, que passaram a governar o Brasil com a independência, em 1822, deram continuidade, em diferentes medidas, às políticas anticiganas, incorporando aos códigos criminais condutas associadas à cultura cigana; assim como naturalizando práticas discriminatórias nas atividades do Sistema de Justiça.

A contribuição dos povos ciganos para a formação sociocultural e econômica do Brasil, assim como as demandas por políticas públicas desta minoria étnica, encontram escassos espaços no debate público, seja no âmbito institucional, como também nos espaços acadêmicos. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, a partir do início da década de 2000, percebe-se uma aproximação entre o Estado e a agenda por direitos reivindicada pelos movimentos e associações ciganas.

O presente artigo pretende analisar a tramitação do Projeto de Lei do Senado no. 248, de 29 de abril de 2015, que propõe a criação do "Estatuto do Cigano", de autoria do Senador Paulo Paim (PT/RS). O texto inicial do PLS 248/2015 apresenta 19 artigos, que abordam as seguintes temáticas: o direito à saúde, à educação, à cultura, à saúde, à moradia, o acesso à terra, e a promoção da igualdade racial (BRASIL, 2015). Entre os anos de 2015 e o primeiro semestre 2020, esta proposta legislativa foi aprovada em duas comissões permanentes do Senado, a Comissão de Educação, Esporte e Cultura (CE), em 27/03/2018, e a Comissão de Assuntos Especiais (CAS), em 09/05/2018, ambos com a relatoria do Senador Hélio José (PMDB-PROS/DF). Desde então, o projeto aguarda ser discutido e aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), "em decisão terminativa" (1).

Parte-se do seguinte problema de pesquisa: de que modo a análise do processo legislativo do "Estatuto do Cigano" no Senado Federal possibilita pensar as relações étnica-raciais e de gênero, a partir da questão cigana? Nesse sentido, dividiu-se este trabalho em duas partes. No primeiro tópico, buscou-se refletir a condição cigana, em constante transformação e ressignificação, levando em conta como a tramitação do PLS 248/2015 tem abordado a questão da moradia e do acesso à terra, transcendendo a dicotomia nomadismo versus sedentarismo. Em seguida, no segundo tópico, discutiu-se como a problemática de "gênero" se manifestou neste processo legislativo, diante de mudanças no texto da proposta de lei que versam sobre o "direito à educação" e o "direito à saúde".

Analisar o processo legislativo do "Estatuto do Cigano" é uma oportunidade para compreender como se dá a produção de uma lei envolvendo uma minoria étnica no Brasil. A maneira como a condição cigana é manejada no Senado Federal, ao longo da tramitação do PLS 248/2015, é atravessada pelos marcadores sociais de raça, etnia e gênero, que, em certa medida, reproduzem perspectivas estigmatizantes e pejorativas presentes no imaginário social da sociedade brasileira. A proposição, discussão e tentativa de aprovação deste projeto de lei são atravessados por uma série de disputas, que se dão dentro e fora do Congresso Nacional; que vêm mobilizando diferentes agentes públicos, estatais ou não.

Adotou-se, neste artigo científico, recursos metodológicos inspirados na pesquisa etnográfica, intercalando técnicas como a observação participante dos autores, a análise de documentos, escritos e audiovisuais, disponibilizados pelo Senado Federal, e a realização de entrevistas, abertas e semiestruturadas, com os agentes públicos atuantes na tramitação do "Estatuto do Cigano".

Trata-se de uma pesquisa empírica que busca compreender a atuação do Estado em face da questão cigana, percebendo que a criação de uma lei pode ser atravessada por disputas epistemológicas e negociações políticas que mobilizam agentes públicos dentro e fora do Poder Legislativo. A inovação deste trabalho em relação a outros artigos já publicados, sobretudo na presente revista, dá-se justamente pelo fato de não haver precedentes de estudos no campo da Sociologia do Direito e da Antropologia Jurídica que pensem a produção do direito cigano no Brasil e que ao mesmo tempo reflita as implicações das essencializações em face de supostos aspectos culturais, que são associados a identidade desta minoria étnica, nas formulações das políticas públicas, em especial no aspecto da territorialidade e de gênero.

A pesquisa que foi empreendida deslizou o horizonte do trabalho antropológico para o universo do Estado. Mobilizou-se uma abordagem etnográfica dos documentos, inspirado nas pesquisas de Eva Muzzopappa e Carla Villata (2011), assim como uma perspectiva de pesquisa antropológica "para cima", buscando compreender como funciona o Congresso Nacional (NADER, 2020). A opção feita neste artigo científico por realizar um trabalho antropológico, consistindo numa pesquisa empírica e qualitativa, possibilitou aos autores observar outros fatores que são fundamentais nas negociações pela aprovação de um projeto de lei, elementos que não poderiam ser identificados por meio de uma pesquisa tradicional do fenômeno jurídico, que se restringe ao "dever ser".

  1. O direito à territorialidade cigana

    Um dos primeiros desafios para analisar a produção legislativa do "Estatuto do Cigano" é identificar quem são os principais agentes públicos, pessoas, associações e instituições, envolvidos na tramitação do PLS 248/2015. A compreensão das práticas estatais, em especial no âmbito do Poder Legislativo, é um dos interesses da Antropologia Jurídica, que no caso deste artigo, permite compreender como se dá a aprovação de uma lei e, indiretamente, a gestão da condição cigana pelo Estado brasileiro. Nesse sentido, a pesquisadora Ciméa Bevilaqua (2003) advertiu para a permanência do problema tradicional da identificação dos informantes, que ressurge de modo particularmente agudo e desconcertante quando o objeto de estudo se situa no universo estatal ou quando diz respeito às diferentes formas de interlocução entre os cidadãos e agentes do Estado.

    Desde o ano de 2018, os autores deste artigo tentaram, sem sucesso, entrevistar os parlamentares diretamente relacionados ao PLS 248/2015, isto é, o autor do projeto de lei, o Senador Paulo Paim, e os relatores da matéria no Senado Federal, os parlamentares Hélio José e Telmário Mota. Segundo Laura Nader, sobre fazer pesquisa "para cima", quando envolve as práticas estatais, "o obstáculo mais comum é fraseado em termos de acesso. Os poderosos estão fora de alcance em vários planos diferentes: eles não querem ser estudados; é perigoso estudá-los; eles são pessoas ocupadas; eles não estão todos em um só lugar, e assim por diante" (2020: p. 346). Portanto, buscou-se alternativas para viabilizar a pesquisa acerca da produção do "direito cigano" no Senado Federal.

    A respeito das questões metodológicas que envolvem os desafios de transformar esses obstáculos em dados, que podem ser objeto de uma análise, integrando as maneiras pelas quais acessamos documentos, as pesquisadoras Eva Muzzopappa e Carla Villata afirmaram que:

    uma abordagem etnográfica dos documentos produzidos pelas instituições estatais pode ser complementada com outras ferramentas e técnicas de investigação - como entrevistas com agentes que trabalham ou trabalham nessas instituições - ou aproveitar as experiências do próprio processo de pesquisa e conhecimento sobre as rotinas operacionais das instituições estatais. (2011: p. 38) Há uma série de informações sobre processo legislativo do "Estatuto do Cigano" que podem ser acessadas nos websites oficiais do Senado Federal, que disponibiliza diversos documentos, como, por exemplo, o texto de lei inicial proposto e os relatórios legislativos aprovados nas comissões permanentes em que o PLS 248/2015 é examinado, assim como as gravações audiovisuais das votações e audiências públicas. Todavia, foi necessário acessar outros espaços, não restritos a análise de documentos e gravações, para compreender o que está por trás das negociações pela criação e positivação do direito cigano no Brasil.

    A tramitação do "Estatuto do Cigano", assim como ocorre em outros processos legislativos, não corresponde a uma somatória de procedimentos formais. Além disso, trata-se de uma negociação que transcende o trabalho dos parlamentares. Diante da dificuldade de conversar pessoalmente com os Senadores envolvidos nesta trama política, os autores fizeram esforços para obter acesso aos assessores parlamentares que igualmente atuam no processo legislativo em tela. Primeiramente contatos por telefone, em seguida, deslocou-se, fisicamente, para o gabinete dos Senadores, e assim, foi realizada uma entrevista semiestruturada com o assessor do autor do projeto de lei que acompanha o "Estatuto do Cigano". Nesta ocasião, tomou-se conhecimento que o Ministério Público Federal tem atuado ativamente nas negociações em torno do texto final que será aprovado no Congresso (2).

    A atuação do Ministério Público Federal neste processo legislativo tem se dado por meio da 6a Câmara Cível de Revisão, órgão da Procuradoria Geral da República, que fica situado em Brasília (3). Segundo as informações que foram obtidas com a entrevista com a assessoria do autor do projeto de lei, desde o princípio, antes mesmo do processo tramitar formalmente, o MPF tem proposto audiências públicas, assim como realizando reuniões para discutir a criação do "Estatuto do Cigano". Além disso, observou-se que este órgão encaminhou ao Senado Federal a "Nota Técnica no...

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