Mabel Assis, uma rosa negra semeando a primavera.

AutorGonçalves, Renata
CargoHOMENAGEM DE VIDA

Nas primeiras horas de dezembro de 2019, Mabel Isabel de Assis, nossa Mabel Assis, passou à condição de ancestral. Ela, que sempre foi nosso porto seguro, nossa fortaleza no combate ao racismo e à violência patriarcal, fez a passagem para ocupar um lugar majestoso reservado às deusas no Orun, deixando-nos a lembrança de seu sorriso largo e acolhedor. No interior do Serviço Social, era nossa referência no que tange à introdução de autores/as negros/as e uma bibliografia especializada sobre relações étnico-raciais no processo de formação da categoria. Com ela, aprendia-se sobre as mazelas do racismo à brasileira, institucionalizado e naturalizado, que teimam em controlar e cada vez mais em aniquilar vidas negras. Vinha dela o esforço diário de discutir a dinâmica racial no exercício da profissão. Mabel refletia pura vivacidade. Era um espelho em que nós, sobretudo as mulheres negras, nos reconhecíamos. Num mesmo movimento, também nutríamos por ela uma profunda admiração. E não podia ser diferente. A dona do riso solto, do andar faceiro, da voz firme e imponente teve uma trajetória de vida semelhante à de muitas mulheres negras, não fosse sua irreverência. O traço rebelde de nossa flor de ébano a fez trilhar caminhos distintos até a encruzilhada, que se tornou ponto de partida (ou ponto de encontro) teórico e político com (e para) muitas de nós. Mas como ela chegou até lá, até aqui, até nós?

Mabel Assis é a décima filha de pai e mãe que apenas sabiam assinar o nome. Fugindo da violência dos coronéis das terras de Minas Gerais, a família largou tudo e se instalou na Brasilândia, uma das regiões periféricas mais empobrecidas da cidade de São Paulo. Dos catorze filhos, treze sobreviveram. A história se repetia para a família de Mabel como reflexo direto do racismo nas famílias negras, em especial na vida das mulheres negras. Diante da impossibilidade do emprego formal, restavam à sua mãe os precários empregos de faxineira, lavadeira, cozinheira. Certamente, um resquício incrustrado da violência da casa grande.

A condição das mulheres negras guarda estreita relação com o passado escravista, com a organização patriarcal e com a exploração capitalista de classe. Sob o capitalismo, tanto o racismo como o sexismo se tornaram parte de uma engrenagem que reforça desigualdades que, num círculo virtuoso, retroalimentam o sistema do capital. Lélia Gonzalez (2018) examinou a neurose da cultura brasileira e criticou a divisão sexual e racial do trabalho em que a "mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, cobradora de ônibus ou prostituta". A autora indaga: "Por que será que ela só desempenha atividades que não implicam em 'lidar com o público'? Ou seja, em atividades onde não podem ser vistas? Por que os anúncios de emprego falam tanto em 'boa aparência'?"(GONZALEZ, 2018, p. 202). E o que significa ter uma boa aparência? O valor da brancura na sociedade do capital assume contornos inimagináveis para eliminar quem dele se distancia.

Foi assim que o racismo também tentou empurrar nossa rosa negra para a invisibilidade. Desenvolta, foi indicada por um vizinho para um trabalho como ascensorista, um posto que a colocaria em contato com muitas pessoas. Era seu primeiro emprego e, logo na chegada, a puseram nos porões da faxina. Ela insistiu mais dois dias para ter certeza de que não era um engano da empresa. Irreverente, não aceitou ser invisível. Naquele emprego, descobriu um pouco mais sobre os tentáculos do racismo e aprendeu com a mãe que, se não gostava de obedecer a ordens e nem de limpar, teria de estudar muito.

Apesar da infância na pobreza, Mabel fazia questão de relatar que foi imensamente feliz. O pai, que não sabia ler nem escrever, tocava violino e cavaquinho como ninguém. Sem dinheiro suficiente para comprar uma televisão (o que a maioria dos lares almejava), a família transformava as noites em momentos de música. A mãe, que também tinha seus dons artísticos, tocava violão e cantava. Cuidadosa, explicou aos filhos que aquelas músicas tocadas em casa, jamais poderiam ser cantadas em outro ambiente. Só mais tarde Mabel compreendeu o contexto e percebeu que a restrição era para protegê-los da violência da ditadura militar. Sua família encontrou na música uma maneira de resistir e manter as memórias e as histórias coletivas. E assim nossa querida amiga foi sendo educada para a vida. Naqueles momentos, sentavam-se à volta do fogão de lenha e a mãe ia cantando, ia contando os "causos", como manda a tradição oral da ancestralidade africana.

Educar para a vida não substituía a educação formal que, aos olhos de sua família, possibilitaria que as filhas e filhos ascendessem socialmente ou ao menos permitiria que saíssem da invisibilidade dos postos de subserviência. Porém, no ambiente escolar Mabel viveu suas primeiras experiências dolorosas com o racismo. Professores que deveriam acolhê-la como qualquer criança, ao contrário, incitavam estudantes a puxarem seus cabelos. A cada dia, a escola se tornava um lugar insuportável e seu maior pavor era a palmatória, não pela dor física que sentiria, mas pela reação que sabia que poderia ter, pois jamais toleraria tamanha violência e seu senso de justiça com certeza a levaria a revidar. O temor se justificava pelo fato de seu pai ter conseguido um emprego de jardineiro na escola onde ela estudava e, portanto, ser demitido por causa de algum revide da filha. Ela também não contava para a mãe, pois sabia que esta não pensaria duas vezes para defender a filha e que o professor corria um sério risco de levar uns tabefes. Numa família empobrecida é preciso se agarrar à única fonte de sustento.

Mais tarde, compreendeu que não era a única a sofrer aquela violência. Encontrou duas colegas de escola e soube que uma foi expulsa porque resistiu às ofensas racistas, a outra se evadiu porque não suportou a dor do racismo (ASSIS, 2018). Ainda hoje são muitos os relatos de crianças que sofrem com o racismo...

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