O 28º Regime - Um Passe de Mágica ou uma Abordagem Proativa de Harmonização Legislativa na União Europeia

AutorJ. Pegado Liz
CargoAdvogado membro do Conselho Económico e Social Europeu (CESE). Presidente da Comissão Consultiva para as Mutações Industriais (CCMI), Bruxelas
Páginas79-102

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1. Introdução

Legislar melhor e, se possível, legislar menos é um dos componentes essenciais do grande projeto europeu da realização de um mercado único sem fronteiras, iniciado na segunda metade dos anos 80 por esse grande europeísta que foi Jacques Delors, à altura presidente da Comissão Europeia. Todas as iniciativas e diligências levadas a cabo no âmbito do programa "Legislar melhor" pela Comissão Europeia e pelo Parlamento Europeu e inteiramente apoiadas pelo Comité Económico e Social Europeu (CESE), em vários dos seus pareceres, visaram encontrar as melhores formas de tornar o ambiente legislativo mais convivial e mais facilmente compreendido pelas empresas, pelos trabalhadores e pelos consumidores.

Uma ideia relativamente nova sobre uma forma melhor e mais consistente de legislar sobre questões importantes a nível da UE surgiu pela primeira vez num parecer do CESE sobre o contrato de seguro europeu2, de que o signatário foi relator, em 2005. Esse parecer propôs que a legislação sobre o contrato de seguro europeu se baseasse num regime uniforme, opcional e alternativo à harmonização dos diversos direitos nacionais.

Posteriormente, o Grupo de Projeto Restatement of European Insurance Contract Law, no âmbito do QCR (quadro comum de referência), desenvolveu e apresentou à Comissão a única proposta estruturada de um modelo de instrumento opcional na UE até à data.

Nos últimos anos, juristas, eminentes consultores da Comissão e do Conselho Europeus, representantes do mundo académico parlamentares europeus e representantes de várias partes interessadas da sociedade civil, sugeriram, em diferentes eventos e em importantes relatórios, que este método poderia ser uma alter-nativa útil ao método tradicional de harmonização em domínios específicos, tais como o regime voluntário de pensões3ou os serviços financeiros4ou mesmo para a harmonização dos contratos a nível europeu, na perspectiva e como primeiro passo para um Código Civil europeu. A própria Comissão tem vindo a referir-se à possibilidade de utilizar o método do "28.º regime" em vários domínios, o que já mereceu o apoio do CESE numa série de pareceres5.

Contudo, até recentemente não se havia elaborado sobre uma definição precisa do conceito, natureza e âmbito de aplicação do que se tem comummente designado por "28º Regime" de forma a demonstrar que tal regime não só é exequível como comporta inegáveis vantagens quando a finalidade é "legislar melhor" e lograr um quadro regulamentador mais simplificado, compreensível e convivial.

Foi esse o objetivo de um parecer de iniciativa que o signatário teve oportunidade de elaborar, sustentar e ver aprovado no Comité Económico e Social

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Europeu e de que se dá conta neste artigo6.

2. O conceito de "28 regime"
2. 1 A noção de "28º regime"

As expressões "28.º regime" e "instrumento opcional", amiúde usadas como sinónimos, procuram transmitir a ideia de um direito europeu que não estaria acima dos direitos nacionais mas constituiria, antes, uma alternativa aos mesmos, ao deixar a sua aplicação ao critério das partes contratantes. E, no entanto, estas expressões, embora frequentemente usadas em vários documentos das instituições da UE e na maior parte dos artigos publicados sobre a matéria, a podem induzir em erro, já que podem ser interpretadas como constituindo um regime de direito "estrangeiro", por oposição aos 27 direitos "nacionais" dos contratos, ou mais um regime a acrescentar aos 27 normativos que fariam parte da legislação "interna".

Assim, parece mais correto falar-se de um "2.º regime"7do direito privado em todos os Estados-membros. Esta designação deixa claro que um instrumento opcional europeu fará parte da legislação interna dos Estados-membros como qualquer outra fonte do direito comunitário.

Em suma, um "2.º regime" assim concebido dá a todos os cidadãos interessados, em especial aos contratantes, uma opção entre dois regimes do direito nacional dos contratos, um adotado pelo legislador nacional e eventualmente resultante dos processos de integração de normas comunitárias e outro, alternativo, proposto pelo legislador europeu, como opção.

Uma referência a um instrumento opcional deste tipo pode ser encontrado no considerando 14 do Regulamento Roma I, que reza assim: "Caso a Comuni-dade venha a aprovar num instrumento jurídico adequado regras de direito material dos contratos, (...), esse instrumento poderá prever a possibilidade de as partes optarem por aplicar essas regras."

2. 2 Natureza e características

Uma vez que um instrumento opcional é um verdadeiro 2.º regime do direito dos contratos na legislação de cada Estado-membro, poderá ser prevista a possibilidade da sua utilização mesmo em casos puramente "internos". Dessa forma, os empresários poderiam basear todas as suas transações (nacionais e internacio-

AS EXPRESSÕES "28.º REGIME" E "INSTRUMENTO OPCIONAL", AMIÚDE USADAS COMO SINÓNIMOS, PROCURAM TRANSMITIR A IDEIA DE UM DIREITO EUROPEU QUE NÃO ESTARIA ACIMA DOS DIREITOS NACIONAIS

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nais) no 2.º regime, permitindo-lhes reduzir os encargos jurídicos da transação.

Uma outra característica de um "2.º regime" é que os tribunais não podem tratar um tal instrumento opcional como uma lei "estrangeira" escolhida. Por conseguinte, aplicam-se-lhe princípios como o iura novit curia e o acesso aos supremos tribunais nacionais não será limitado, o que frequentemente não é o caso quando se aplicam princípios gerais ou uma lei estrangeira. Do mesmo modo, as instituições que preveem a resolução extrajudicial de conflitos e mecanismos de reparação extrajudiciais não podem recusar-se a dirimir uma questão invocando o argumento de ela se reger por uma lei estrangeira.8Por último, mas não menos importante, um instrumento opcional adotado pelo legislador europeu está sujeito a decisão prejudicial do TJUE, que assegura uma aplicação uniforme pelos tribunais nacionais da UE.9Um "2.º regime" desta natureza pode ser usado pelas partes contratantes para transações comerciais em toda a União Europeia. Desta forma, as partes não têm que lidar com 27 regimes jurídicos nacionais diferentes em matéria de contratos e podem basear as suas transações num regime europeu único comum de direito privado, não sendo nenhuma das partes contratantes obrigada a aceitar a aplicação de legislação que considere estrangeira.

2. 3 Vantagens e inconvenientes

Um instrumento opcional desta natureza permite às partes contratantes, antes de mais, efetuar transações na União Europeia com base num único regime jurídico. As barreiras ao mercado interno, tal como os riscos e os custos para os consumidores ou para as empresas derivados de ordenamentos jurídicos nacionais discrepantes, são assim superadas.10Além disso, em comparação com a unificação ou a harmonização dos direitos nacionais, um instrumento opcional tem reconhecíveis vantagens.

Desde logo porque um instrumento opcional deixa ao mercado a decisão quanto à sua aplicação, sendo certo que só será aplicado se as partes o considerarem vantajoso. Os instrumentos opcionais serão provavelmente utilizados por atores de mercado internacionais, ao passo que os agentes locais pouparão os custos de transposição, especialmente com a reformulação das suas cláusulas contratuais para as ajustar a um novo regime europeu.

Em segundo lugar, a cultura jurídica de cada Estado-membro é mantida intacta, o que tenderá a facilitar a aceitação do instrumento opcional na esfera política. O mesmo argumento aplica-se aos juristas de cada Estado-membro, que normalmente serão inclinados, por tradição e conservadorismo, a estar contra a substituição das regras jurídicas tradicionais por um direito inovador europeu dos contratos, mas não terão razões para se oporem a um instrumento opcional que

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deixe inalterado o direito nacional.

Por outro lado, um "2.º regime" deste tipo revela-se particularmente vantajoso nos domínios em que o direito privado internacional (Roma I) proíbe ou restringe a seleção do direito a aplicar pelas partes contratantes, como é o caso dos contratos de transporte (art. 5.º, Roma I), dos contratos celebrados por consumidores (art. 6.º, Roma I), dos contratos de seguro (art. 7.º, Roma I) e dos contratos individuais de trabalho (art. 8.º, Roma I).

O instrumento opcional poderia inclusivamente ser aplicado às regras inter-nacionalmente obrigatórias (art. 9.º, Roma I), contanto que sejam tidos em conta os interesses gerais protegidos que essas regras visam proteger11. Dessa forma, um "2.º regime" permitiria que todas as transações comerciais na União Europeia se baseassem num único regime de direito dos contratos, mesmo nos domínios em que o direito privado internacional prevê a aplicação obrigatória das regras que protegem a parte mais fraca.

Além disso, mesmo sem terem sido designados como tal12, já estão em vigor "2.os regimes" em múltiplos domínios do direito comunitário, o que demonstra claramente que o direito constitucional nacional não cria...

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