A manutenção da perquirição da culpa no direito de família

AutorClaudio Ferreira Pazini
Páginas223-243

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Ver Nota1

Introdução

Tema objeto de grande polêmica entre os estudiosos e operadores do Direito de Família refere-se à averiguação da culpa nas violações de condutas nas relações familiares. O ordenamento jurídico estabelece uma série de normas regulamentadoras das relações familiares, que visam, especialmente, a proporcionar ambiente favorável ao desenvolvimento da personalidade de cada integrante da família. São normas surgidas para evitar injustiças, iniquidades, opressões e a dominação de interesses tiranos no seio da célula mais importante da sociedade. A ordem jurídica visa a assegurar o desenvolvimento das potencialidades do ser humano no aspecto intelectual, moral, cultural, social, físico e psíquico.

Esse foco de proteção legislativa das relações familiares tem sua base na principiologia constitucional. A Constituição Federal estabelece como fundamento da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III). Entre os objetivos fundamentais da República está a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I). A igualdade é direito fundamental do ser humano (art. 5º, caput e inc. I). É fora de dúvida que tais princípios também se aplicam às relações familiares, embora não somente a elas.

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A Constituição ainda conta com regramento especíico dirigido às relações de família (art. 226) – juntamente com normas de proteção da criança, do adolescente, do jovem, do idoso e do portador de deiciências – entre outros dispositivos esparsos em seu texto (v. g., arts. 5º, inc. LXIII e 203, inc.
I). O art. 226, caput, da Carta Magna estabelece que a família tem especial proteção do Estado.

Na esteira da principiologia constitucional descrita, a legislação infra-constitucional foi elaborada (e reelaborada) de modo a proporcionar digni-dade, liberdade, justiça, solidariedade, igualdade, assistência, respeito, enim, aquilo de que o ser humano mais necessita para seu desenvolvimento material e moral.

E é justamente para assegurar um ambiente familiar propício ao desenvolvimento de cada integrante da família, atendendo-se, dessa forma, aos referidos comandos constitucionais, que a legislação infraconstitucional estabelece deter-minadas normas de conduta.

O Direito de Família conta com normas que regulamentam as relações matrimoniais, as uniões estáveis e as relações de parentesco, com destaque para as relações entre pais e ilhos.

O presente estudo abordará as relações entre cônjuges e entre os conviventes em união estável. As relações parentais, especialmente entre pais e ilhos, têm nuanças muito diferentes, o que suscita abordagem especíica e apartada do presente estudo, que se restringirá, portanto, a tratar das relações entre cônjuges e entre companheiros.

1 Deveres entre cônjuges

O Código Civil prescreve os deveres entre os cônjuges. São deveres, em grande medida, inspirados em posturas morais, religiosas e no senso comum de responsabilidade.

O art. 1.566 enumera os deveres conjugais nos seguintes termos:

Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:

I – idelidade recíproca;

II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência;

IV – sustento, guarda e educação dos ilhos; V – respeito e consideração mútuos.

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São normas de ordem pública. Isso implica não se admitir afastar sua incidência nem mesmo por acordo entre os cônjuges. Tais normas promovem respeito, honestidade, cooperação e coniabilidade entre os cônjuges, de modo a assegurar um ambiente familiar propício ao desenvolvimento de cada um dos membros da família (inclusive dos ilhos). Destarte, tem-se que essas normas não podem deixar de ser consideradas de ordem pública, dado o interesse público envolvido na preservação da família. Deveras, manter o ambiente familiar livre de injustiças, iniquidades, tirania, egoísmo e desonestidade é medida que cria melhores condições para o desenvolvimento do ser humano, possibilitando a assimilação de valores morais nobres e o culto da boa conduta e da boa índole. Vale dizer, quanto melhor é a família, melhor é a sociedade, pois a família projeta nela seus membros, com as características e tendências assimiladas no seu seio. Sendo assim, considerando-se que assegurar um ambiente familiar digno, solidário e honesto é medida que promove, além do desenvolvimento dos indivíduos, interesse público e social, tem-se que as normas que visam a garantir esse ambiente, inclusive as que ixam deveres entre cônjuges, são de ordem pública.

Entretanto, em caso de violação dos deveres conjugais, o cônjuge inocente tem o direito de optar por pleitear ou não a imposição das consequências legais cabíveis (item 4). Assim, por exemplo, se um dos cônjuges viola o dever de idelidade (CC, art. 1.566, inc. I), o outro, caso queira, pode deixar de pleitear a imposição de qualquer consequência jurídica, em razão do intuito de perdoar a falta do consorte ou por qualquer outro motivo que queira considerar. Quer-se dizer que, embora os direitos entre cônjuges sejam irrenunciáveis por serem de ordem pública, seu exercício não o é.

Vários ordenamentos jurídicos estrangeiros ixam direitos e deveres entre cônjuges de forma semelhante à legislação brasileira. O Código Civil espanhol, por exemplo, prevê:

Artículo 67. Los cónyuges deben respetarse y ayudarse mutuamente y actuar en interés de la família.

Artículo 68. Los cónyuges están obligados a vivir juntos, guardarse idelidad y socorrerse mutuamente. Deberán, además, compartir las responsabilidades domésticas y el cuidado y atención de ascendientes y descendientes y otras personas dependientes a su cargo.

Jesús Valdés leciona:

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Os contraentes adquirem inafastáveis compromissos de ordem pessoal e patrimonial. Obrigam-se para com o outro cônjuge à coabitação, à convivência, à ideli-dade, ao mútuo auxílio, à contribuição para levantamento de recursos familiares para a futura prole, sua manutenção e educação.2(Tradução livre)

Pelo princípio constitucional da isonomia conjugal, os direitos e deveres do casamento são idênticos para o homem e para a mulher. O art. 5º, caput, da Lei Maior, estabelece que todos são iguais perante a lei e o inc. I determina que ho-mens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição. E, ainda, o art. 226, § 5º, da Carta, determina: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Dessa forma, o art. 1.566 do Código Civil, ao ixar os direitos e deveres entre os cônjuges, enuncia: “São deveres de ambos os cônjuges” (grifo nosso).

2 Deveres entre companheiros

Os direitos e deveres entre companheiros estão previstos no art. 1.724 do Código Civil: “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos ilhos”. Não devem ser confundidos com os requisitos para caracterização da entidade familiar. A união estável só se caracteriza diante da presença de certos requisitos, estando alguns deles expressos no art. 1.723 do Código Civil (diversidade de sexos3, publicidade, durabilidade e continuidade da união, o objetivo de constituir família e ausência de impedimentos matrimoniais) e outros implícitos (vontade dos companheiros e afectio maritalis).4Se ausente qualquer desses requisitos, tem-se que a união estável não se caracteriza. Já a falta de lealdade, respeito ou assistência entre os companheiros ou o descumprimento de seus deveres em relação aos ilhos (CC, art. 1.724) indica violação dos deveres convivenciais, sem

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implicar descaracterização da união estável, ensejando outras consequências legais, que serão comentadas adiante (item 4).

É de reparar-se que o Código Civil estabeleceu direitos e deveres de forma diferente para os companheiros em relação aos cônjuges, o que, a nosso ver, não se justiica. Basicamente, o que diferencia casamento de união estável são a forma de constituição e a maneira de dissolução. Sendo assim, mostra-se sem razão o tratamento legal diferenciado em relação aos efeitos que essas entidades familiares proporcionam para seus membros.

Não obstante, a disciplina dos deveres jurídicos do casamento é semelhante à da união estável. As diferenças são: a) o dever de idelidade recíproca entre os cônjuges foi substituído pelo de lealdade entre os companheiros; b) não foi previsto o dever de vida em comum no domicílio para os companheiros, ao contrário do que ocorre para os cônjuges; c) não foi previsto o dever de consideração entre companheiros. Quanto ao dever de idelidade, não deixou de existir para os companheiros, estando implícito no de lealdade, que é mais amplo e abrange a idelidade. Sobre a vida em comum no domicílio do casal, não se justiica o tratamento diferenciado em relação ao casamento. A comunidade de vida é igualmente necessária na união estável e no casamento e, portanto, também não há justiicativa para essa diferença de tratamento legal. A ausência de previsão do dever de consideração entre os companheiros não nos parece relevante, pois os deveres de lealdade, respeito e assistência (material e moral) parecem-nos suicientes para impor aos companheiros o comportamento digno, honesto e responsável em relação ao outro5.

Assim como ocorre quanto aos deveres entre cônjuges, as normas que estabelecem os deveres entre companheiros são de ordem pública. A inalidade da legislação ao estabelecer tais deveres é assegurar ambiente familiar saudável, propício ao desenvolvimento da personalidade de cada membro da família, criando melhores condições para projetar na sociedade pessoas produtivas e de boa índole...

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