Marcas sonoras: proposta para a exegese do art. 122 da Lei 9.279/1996

AutorRicardo Luiz Pereira Marques
Páginas204-226

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1. Introdução

O uso das marcas surgiu na Idade Média sob enfoque bastante diferente do atual. De lá para cá os sinais distintivos evoluíram, passando a reunir diferentes funções. A de certificadora da conformidade dos produtos e serviços a certas normas administrativas se manteve ao longo do tempo. Mas o principal papel das marcas no mundo, hoje, dialoga com o ideal de desenvolvimento econômico dos Países - aqui se incluindo a busca pela livre iniciativa e livre concorrência.

Com o passar do tempo elas se tornaram poderosos instrumentos de identificação e distinção num mercado cada vez mais concorrido. E, em decorrência disso, revelaram outra função, qual seja, a de importantes instrumentos de auxílio aos consumidores na escolha ou preterição do bom e do mau fornecedor.

Sua importância chegou a tal ponto que, no Brasil, a titularidade de marca ganhou caráter de direito fundamental ao ser incluída no art. 5o, XXIX, da Constituição da República - regulamentado pela Lei 9.279/1996.

Todavia, a idéia de livre utilização dos sinais marcários choca com sua própria razão de existir. Todo aquele que desenvolve um produto ou serviço tem o interesse de diferenciá-lo com um símbolo de uso exclusivo, impedindo que, no futuro, caso seu trabalho adquira notoriedade, sua reputação venha a ser usurpada em concorrências parasitárias.

Para atender a esse anseio, criou-se um modelo legal protetivo, adotado também pelo Brasil, que prevê o registro das marcas em um órgão oficial próprio. Após esse procedimento o sinal distintivo é atribuído ao uso exclusivo da pessoa natural ou jurídica que o requereu. Portanto, todos os usuários brasileiros de marcas têm, regra geral, o interesse em registrar aquele traço que os distingue dos demais.

Durante algum tempo a interpretação que defendia o registro apenas de figuras e expressões textuais bastou àqueles que pretendiam ser identificados no mercado. Todavia, o endurecimento da concorrência incutiu nos empreendedores a necessidade de se valerem de novos e mais eficazes meios de diferenciação e divulgação frente a seus concorrentes. O avanço tecnológico,

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trazendo a reboque o desenvolvimento da comunicação, com destaque para a expectativa de convergência digital, torna cada vez mais viável esse intuito. Tendo isso em vista, ganharam força idéias de se criar marcas não simplesmente visuais, mas que explorem outros sentidos humanos, como, por exemplo, a audição.

Mas, como intuitivo, se a nova geração de marcas não for oficialmente protegida, os empreendedores evitarão se dedicar a essa forma de distinção no mercado, em prejuízo, principalmente, do incremento das atividades empresariais e de prestação de serviços, assim como das garantias protetivas do consumidor, que se verá alijado de formas mais diretas e sofisticadas de identificação de seus fornecedores pre-diletos.

Inserido nesse cenário, o problema sobre o qual se debruça o presente trabalho reside na recusa do órgão administrativo brasileiro incumbido de proceder ao registro de marcas - e, portanto, dar início à proteção oficial - em receber pedidos relativos a marcas sonoras, baseado em entendimento de que a Lei 9.279/1996, por meio do conceito de sinais registráveis que traz, assim determinaria.

É uma posição atrasada, principalmente quando comparada com regimes jurídicos estrangeiros, inclusive de vizinhos da América do Sul. Muitos Países, em especial aqueles que representam as maiores economias mundiais, percebendo a mudança de cenário supra-referenciada, alteraram suas legislações ou seus critérios hermenêuticos para permitir o registro das chamadas marcas não-tradicionais ou heterodoxas, dentre as quais se incluem aquelas constituídas por sons.

Nesse passo, o posicionamento oficial brasileiro frente ao assunto deve ser problematizado. Interpretar-se com o devido cuidado a norma jurídica pertinente, investigando a possibilidade de o atual quadro normativo brasileiro conferir proteção oficial como marcas também aos sons - e não somente a figuras e a expressões textuais -, atribuindo o uso comercial exclusivo destes como elemento identificador e distintivo a pessoas naturais e jurídicas fornecedoras de produtos ou serviços, mostra-se tarefa merecedora de atenção, dados os avanços que sua conclusão pode gerar na prática empresarial do País.

2. Crítica à linha interpretativa que nega a possibilidade do registro de sons como marcas no Brasil

O art. 122 da Lei 9.279/1996 menciona que "são suscetíveis de registro como marca os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais" (Brasil 1996). É um conceito apurável por exclusão, que faz com que o intérprete busque a informação sobre o que é passível de registro no dispositivo legal que enumera os sinais impedidos de se constituírem como marcas, listando as "proibições legais".

E, examinando-se os 23 incisos do art. 124, que recebeu a incumbência de especificar taxativamente os "sinais não registráveis como marca" (Brasil 1996), não se encontra qualquer menção, nem mesmo indireta, aos sons e às suas representações gráficas. Porém, a autarquia federal Instituto Nacional da Propriedade Industrial/ INPI, órgão administrativo incumbido pelo art. 2o da Lei 5.648, de 11.12.1970, de proceder aos registros de sinais como marca, prefere se prender à interpretação excessivamente isolada e literal do art. 122 da Lei 9.279, e de seu excerto "visualmente perceptíveis", e negar o registro de sons.

A página do INPI na rede mundial de computadores expressa esse posicionamento, ao afirmar, sob a rubrica "O que não é registrável como marca", que: "Os sinais irregistráveis estão compreendidos no art. 124 da LPI. [Lei de Propriedade Industrial] A lei marcária brasileira não protege os sinais sonoros, gustativos e olfativos" (Instituto Nacional da Propriedade Industrial 2008).

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Entretanto, conforme se extrai, o INPI se contradiz, pois, ao mesmo tempo em que reconhece que as proibições ao registro estão contidas no art. 124 da Lei 9.279, desconsidera que, como já dito, o mencionado dispositivo legal não veda, nem mesmo indiretamente, o registro de sons como marcas. Em verdade, a justificativa daquela Autarquia para negar a pretensão de marcas sonoras no Brasil apenas reproduz o equívoco da interpretação legal por ela privilegiada.

Quando se espera da regulamentação jurídica incentivo ao livre desenvolvimento das marcas, trabalhando-se em torno de critérios legais flexíveis o suficiente para abraçarem a evolução social, a interpretação oficial, exteriorizada pelas informações e procedimentos do INPI, presa à compreensão isolada e literal da expressão "visualmente perceptíveis", presente no conceito para marcas da Lei 9.279/1996, com efeito, imobiliza o instituto.

Segundo informa Correa (2007:210), não é a primeira vez que o INPI interpreta equivocadamente a legislação marcária, ignorando o panorama normativo em prejuízo da livre iniciativa, da modernização e segurança nas operações empresariais e, por consequência, da atratividade a investimentos do mercado brasileiro: "O Instituto Nacional da Propriedade Industrial -INPI - incorreu em grave equívoco exegé-tico ao tempo do Código da Propriedade Industrial de 1971, cujas regras aplicava de forma estanque, isolando, com isso, a propriedade industrial do restante do sistema jurídico brasileiro, no qual se inscreve, sujeitando-se a todos os seus postulados. O INPI, à época, sobretudo não aplicava nem as disposições e os princípios deitados pelo Código Civil, nem os da Convenção da União de Paris quanto à boa-fé do depositante, tendo admitido o registro de inúmeras marcas de origem estrangeira abusivamente depositadas por sociedades locais durante o regime de substituição às importações, que desestimulava e, mesmo, in-viabilizava o uso dos sinais originais. Muitos desses registros foram desconstituídos pelo Judiciário, mas, afastada do País pelo modelo econômico vigente, a maioria dos titulares das marcas originais deixou de ingressar em juízo. Fruto daquela política, o País se notabilizou como um terreno fértil ao que se convencionou, então, denominar-se 'pirataria de marcas', metáfora, hoje, amplamente empregada em relação à pura e simples contrafação de marcas e, principalmente, de produtos".

Hoje os sons podem facilmente atingir os consumidores e transmitir com eficiência mensagens de identificação e divulgação, tanto por meio de artefatos relativamente recentes - mas já muito populares -, como telefones celulares e microcomputa-dores (conectados à Internet, principalmente), quanto pelos meios tradicionais de comunicação, como rádio e televisão.

Símbolos sonoros já são usados com esse intuito no Brasil, tendo grande e indiscutível poder identificador, podendo ser citado exemplo notório, apontado por Do-mingues (1984:200-201) já na década de 80: "Na atualidade brasileira temos um caso concreto em que um sinal sonoro constitui verdadeira marca registrável que identifica perfeitamente a rede de comunicações que o utiliza: referimo-nos ao sinal sonoro que o comediante Renato Aragão batizou de 'plim-plim' e a Rede Globo de Televisão emite cotidianamente em sua programação nacional. Referido sinal sonoro identifica a Rede Globo tanto quanto seu logotipo, em qualquer quadrante do território brasileiro. Em verdade, qualquer consumidor médio, ao ouvir o sinal sonoro, sabe que o aparelho de televisão está ligado na Globo, ainda que não se encontre assistindo ao programa ou esteja em local que não lhe permita olhar o vídeo".

De lá para cá, com a abertura do mercado brasileiro, muitas sociedades aqui se...

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