Marco Regulatório das Propagandas Infantis no Brasil: por Uma Infância Digna

AutorAnna Carolina Duarte Momberg
Páginas210-218

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1. Breve evolução histórica da proteção infantil

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é a primeira que trata a criança com prioridade absoluta.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifos nossos)

A proteção integral da criança já tinha sido tratada na Declaração de Genebra, em 1924, que determinava que a criança devesse ter uma proteção especial, assim como na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1948, que indicava: “A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social (art. XXV, 2)”. E também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José, 1969), positivava no art. 19 — Direitos da criança: “Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado”.

Ainda, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing, Res. n. 40/43 da Assembleia Geral, de 29.11.1985), as Regras Mínimas das Nações Unidas para Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (Assembleia Geral da ONU, nov. 1990) e também as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad, Assembleia Geral da ONU, nov. 1990) indicaram as bases para a criação de um novo ordenamento que tenham como fundamento a nobreza e a dignidade do ser humano criança.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
n. 8.069/90) tem como base para sua criação os documentos internacionais supracitados, bem como a Constituição Federal. O Estatuto assegura proteção integral a todas as crianças e aos adolescentes, sem distinção.

Na lei anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente — Código de Menores (Lei n. 6.697, de 10 de outubro de1979) —, as crianças e os adolescentes não eram sujeitos de direitos. Tal Código não previa nem direitos, nem proteções aos menores

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de idade, tratava apenas de medidas sancionatórias. Era uma legislação discriminatória, na qual, segundo Liberati1, “a criança era o filho bem nascido, e o menor, era o infrator”.

Com o Estatuto da Criança e do Adolescente iniciou-se o direito do sistema integral de proteção da infância e da juventude.

Pelo fato de crianças e adolescentes serem considerados hipossuficientes e destinatários de uma proteção especial, todos os temas que possam vir a contrariar tais direitos, inclusive a publicidade, devem atender às prescrições determinadas.

O Código de Defesa do Consumidor, que já o considera vulnerável, especialmente no que diz respeito à publicidade, atenta de modo preponderante para a hipossuficiência infantil.

A proteção especial conferida pelo Código de Defesa do Consumidor à criança e ao adolescente é estabelecida pela Constituição Federal, que lhes dá ampla atenção, conferindo-lhes diversas proteções e garantias com prioridade absoluta.

Criança e adolescente têm os mesmos direitos dos demais cidadãos, além de contarem com proteção integral. O art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (grifos nossos).

2. Publicidade e criança

Primeiro, cumpre apontar que os vocábulos publicidade e propaganda serão utilizados como sinônimos, visto que o ordenamento jurídico brasileiro assim os trata.

Crianças e adolescentes têm, conforme preceito constitucional, prioridade absoluta. E em conformidade com tal prioridade, ao aplicar a lei, criar políticas públicas voltadas às crianças e aos adolescente e desenvolver ações do Poder Público e privado, deve-se considerar o atendimento a todos os direitos fundamentais dessas pessoas, o que inclui uma infância e uma adolescência livres de pressões e influências comerciais.

A exposição da criança e do adolescente a todas as formas de mídia deve colaborar com seu pleno desenvolvimento, seja físico, mental ou emocional. Estas não devem prejudicar — o que acontece quando a criança fica exposta às mensagens comerciais e publicitárias que lhe são dirigidas. Tal fato ocorre porque a criança não tem condições de compreender, criticamente, a publicidade ou mesmo outras formas de comunicação mercadológica.

A publicidade, bem como toda e qualquer atividade de comunicação comercial que divulga produtos e serviços, dirigida ao público infantil acaba por restringir seu poder de escolha, substituindo seus desejos espontâneos por apelos de mercado.

As empresas de publicidade, por perceberem a condição da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento, utilizam-se cada vez mais de planos e estratégias com o intuito de atingir o público infantil; para isso, fazem uso de personagens infantis, vinculam produtos e serviços a situações ligadas à infância, como brincadeiras e momentos de diversão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não disciplina a publicidade de forma específica. Já a Constituição Federal, expressamente, delega a proteção ao consumidor à lei própria, que é o Código de Defesa do Consumidor.

Com relação à publicidade dirigida ao público infantil, o Código de Defesa do Consumidor determina expressamente, no art. 37, § 2º, que a publicidade não pode se aproveitar da deficiência de julgamento e experiência da criança, sob pena de ser considerada abusiva e, portanto, ilegal.

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§ 2º É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e expe-

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riência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. (grifos nossos)

O Código de Defesa do Consumidor, todavia, não faz menção de maneira expressa quando a publicidade se aproveita da deficiência de julgamento e da experiência da criança, referindo-se apenas a um conceito genérico, o que acaba permitindo que os publicitários divulguem publicidade para menores de 12 anos.

A criança, por não entender a verdadeira intenção da publicidade, toda vez que lhe for diretamente dirigida a mensagem publicitária, terá seus direitos e garantias violados. Para Isabella Henriques2 “[...] toda e qualquer publicidade direcionada diretamente ao público infantil estará sempre se aproveitando da sua deficiência de julgamento e experiência, e, portanto, será sempre carregada de abusividade e ilegalidade”.

Com o intuito de preservar os consumidores, especialmente as crianças e os adolescentes, a legislação pátria, em especial o Código de Defesa do Consumidor, prevê algumas restrições à atividade publicitária. Restrições estas que não violam a garantia constitucional de liberdade de expressão, tendo em vista que o único objetivo da publicidade é vender produtos e serviços.

3. Consumo e criança
3.1. Sociedade de consumo

A sociedade atual avalia as pessoas pelo que elas têm (bens materiais) e não pelo que elas são. Parece considerar superior aquele que “tem” e não mais aquele que possui um “saber”.

Sobre o tema, Susan Linn3 ensina:

As pessoas que valorizam bens materiais em demasia (uma noção reforçada pelo marke-ting de consumo) estão mais propensas a ser infelizes e ter uma qualidade de vida mais baixa do que aquelas que valorizam mais recompensas internas e não materiais como criatividade, competência e contribuição à sociedade.

Ainda, Yves de La Taille4 entende: “Na socie-dade atual, que eu chamo de Cultura da Vaidade, há uma busca de identidade muito superficial, passageira e vazia, que chamo também de Cultura do Tédio”.

A cultura que tem sido disseminada é a do consumo. Os publicitários, fornecedores, enfim, aqueles que contribuem para o aumento do consumo parecem se importar mais com os interesses econômicos do que com a formação cultural das pessoas.

Explica Fabiano Del Masso5:

Os meios de comunicação, atualmente, funcionam como instrumentos utilizados pelas empresas para venda, tratando os receptores de suas mensagens como potenciais consumidores de suas mercadorias e serviços.

Temos como interlocutores na comunicação publicitária, de um lado, os empresários, que utilizando os meios de comunicação enviam suas mensagens para o receptor, e, de outro lado, o receptor, que assume a posição de um consumidor em potencial. A sociedade ganha a condição de “sociedade de consumo”.

Para alguns, o consumo representa a felici-dade. Entretanto essa felicidade imposta pelo ato de consumir não necessariamente irá satisfazer o consumidor. Somente por algum momento o bem comprado atribui o status desejado, pois surgem novas necessidades.

Ainda sobre o assunto, Del Masso6 afirma:

“Basta verificar que a satisfação nunca é encontrada, tudo é efêmero, a moda impõe as necessidades que devem durar o mínimo possível para logo ser substituída novamente pelo ‘novo’”.

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