A matriz da constituição de 1988

AutorMauricio Godinho Delgado/Gabriela Neves Delgado
Ocupação do AutorMinistro do TST e Professor Titular do UDF/Advogada e Professora Associada de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB
Páginas21-38

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I - Introdução

A análise jurídica de qualquer diploma normativo e de qualquer norma jurídica no contexto de um sistema constitucional supõe e passa, evidentemente, pelo exame e compreensão da lógica desse sistema constitucional e de seus pilares fundamentais. A par disso, tal análise deve considerar, igualmente, as normas constitucionais específicas referentes ao tema abrangido pelo diploma normativo ou norma jurídica infraconstitucional.

Não poderia ser diferente no tocante à reforma trabalhista aprovada pela Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017.

A matriz constitucional de 1988 deve, portanto, ser imediatamente identificada neste livro, a partir de seus pilares fundamentais, com a sua lógica jurídica estrutural. É o que será efetivado no presente Capítulo I desta obra dual.

Somente depois de bem compreendida essa matriz estrutural da Constituição da República Federativa do Brasil é que será feito o estudo do sentido da reforma trabalhista brasileira de 2017 - desafio a ser enfrentado no Capítulo II desta mesma obra dual.

A matriz estrutural da Constituição de 1988 - naquilo que forma o seu núcleo basilar e a distingue, significativamente, das constituições precedentes do País - situa-se em três pilares principais: a arquitetura constitucional de um Estado Democrático de Direito; a arquitetura principiológica humanística e social da Constituição da República; a concepção constitucional de direitos fundamentais da pessoa humana. Estes três pilares serão estudados no presente capítulo.

No item II deste Capítulo I será feito o estudo da arquitetura constitucional de um Estado Democrático de Direito no Brasil, pela Constituição de 1988.

No item III deste Capítulo I será estudada a arquitetura principiológica humanística e social da Constituição da República.

No item IV do mesmo capítulo será analisado o conceito constitucional de direitos fundamentais da pessoa humana.

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Esses três pilares cardeais da Constituição de 1988 evidenciam, por fim, a concepção constitucional do fenômeno do Direito como um efetivo instrumento de civilização - e não de barbárie -; em síntese, o Direito como um instrumento civilizatório. É o que será demonstrado no item V do presente Capítulo I.

II - A arquitetura constitucional de um estado democrático de direito

Os três eixos centrais de estruturação da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em cinco de outubro de 1988, iniciam-se pela incorporação constitucional do conceito de Estado Democrático de Direito - o qual supõe e confere espaço e energia a seus dois outros eixos, isto é, a sua arquitetura principiológica humanística e social e o seu conceito de direitos fundamentais da pessoa humana.

A concepção de Estado Democrático de Direito, construída pelo constitucionalismo europeu ocidental do pós Segunda Guerra Mundial, consiste em uma superação qualitativa do conceito constitucional imediatamente prévio, o de Estado Social, emergido no final da segunda década do século XX, a partir das experiências constitucionais pioneiras do México (Constituição de 1917) e da Alemanha (Constituição de 1919).

Ao mesmo tempo, demonstra, já no final da década de 1940, o anacronismo do velho conceito de Estado Liberal - embora não se desconheça que este havia cumprido importante papel histórico e teórico mais de dois séculos antes, com o constitucionalismo originário britânico do século XVII e dos EUA e da França, do final do século XVIII, no contexto das chamadas revoluções liberais burguesas.1

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O primeiro paradigma do constitucionalismo, do Estado Liberal, característico do peculiar constitucionalismo não escrito da Grã-Bretanha do século XVII (Direito Consuetudinário Britânico), além do constitucionalismo escrito das Constituições dos EUA e da França, estas de finais do século XVIII - constitucionalismo que se reproduziu em constituições ocidentais subsequentes -, consagrou alguns avanços institucionais e jurídicos em comparação com a era do absolutismo monárquico prevalecente nos séculos anteriores na Europa Ocidental e que se refietia, na época, no domínio britânico sobre as 13 colônias instaladas na parte leste da América do Norte. Considerada a antiga matriz até então prevalecente - de incontrastável absolutismo monárquico e de ausência de liberdades civis e políticas mínimas no plano da sociedade civil e da sociedade política -, tais avanços ostentaram importância histórica e teórica significativa.

Nesse quadro, são características distintivas dessa primeira fase do constitucionalismo: institucionalização de ideias direcionadas às liberdades individuais básicas (usualmente englobadas como liberdades civis), como, ilustrativamente, de locomoção, de expressão, de reunião, de contratação, de trabalho (“liberdade de trabalhar”); institucionalização de ideias direcionadas às liberdades públicas, como de reunião e associação, bem como de imprensa (liberdades de caráter civil mas também de natureza política); institucionalização da ideia de submissão, ao império da lei, do poder político, das instituições públicas e privadas, bem como dos indivíduos; instituciona-

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lização de ideias e fórmulas de controle do poder político e de representação política da sociedade civil no plano da sociedade política (neste plano, ainda que restrito, de representação política emergem também os direitos e liberdades denominados políticos).2

É característica desse marco inicial do constitucionalismo, por outro lado, o caráter limitado, restrito, senão até mesmo excludente, de todas essas ideias e fórmulas novas institucionalizadas. Ou seja, embora se trate de concepções inovadoras em face da realidade até então consagrada, o fato é que os avanços foram, na realidade, bastante restritos, pois cuidadosamente limitados a uma pequena elite da comunidade envolvente. Tais ideias, direitos e fórmulas inovadoras não abrangiam nem incorporavam a grande maioria das populações das sociedades e Estados respectivos; ou seja, de maneira geral, mulheres, escravos, analfabetos, indivíduos pobres ou simplesmente abaixo de certo parâmetro censitário, estrangeiros, grupos étnicos não europeus, etc., não eram contemplados pelos avanços jurídicos e institucionais propostos pelo Estado Liberal.

Todas essas enormes restrições sociais, econômicas, políticas, institucionais e jurídicas enquadravam o Estado Liberal dentro dos marcos do liberalismo, é claro, porém jamais dentro dos marcos de um conceito real, consistente e efetivo de Democracia. Em conformidade com esse primeiro paradigma do constitucionalismo, a sociedade política (o Estado e sua instituições) e a sociedade civil eram, no máximo, liberalistas; entretanto, de forma alguma, se tratava de Estado e sociedade democráticos.3

O segundo paradigma do constitucionalismo - sintetizado na expressão Estado Social - foi defiagrado pelas Constituições do México, de 1917, e da Alemanha (Constituição de Weimar), de 1919, com importante infiuência

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também do Tratado de Versalhes, assinado em 1919, e da criação, por este documento multilateral, da Organização Internacional do Trabalho (1919).

Este novo paradigma, do constitucionalismo social, consagrou notáveis avanços institucionais e jurídicos em comparação com o período constitucional liberalista precedente. Embora o paradigma liberalista já viesse sofrendo revezes e ultrapassagens desde a segunda metade do século XIX, com o surgimento do denominado campo social do Direito, composto pelo Direito do Trabalho e pelo então Direito Previdenciário (posteriormente, Direito da Seguridade Social), o fato é que a efetiva superação constitucional desse paradigma liberal somente se deu com o advento das constituições de 1917 e de 1919, ao lado, na mesma época, do advento e estruturação da OIT.

O paradigma do Estado Social apresenta as seguintes características, em contraponto com a matriz liberalista primitiva antecedente: inserção dos chamados direitos sociais no interior das constituições, em especial o campo do Direito do Trabalho e o campo do Direito da Seguridade Social (este, na época, ainda usualmente denominado Direito Previdenciário); incorporação do conceito de cidadania social pelo constitucionalismo, de maneira a absorver, como direitos relevantes, os direitos sociais; ampliação do conceito de cidadania política, de modo a alargar os sujeitos políticos do Estado e suas instituições, com a derrubada às barreiras jurídicas e institucionais à participação dos não proprietários, inclusive trabalhadores, mulheres e outros grupos sociais na arena política e institucional existente; inserção nas constituições da ideia de intervencionismo estatal na economia e nas relações sociais, com limitações ao direito de propriedade e ao poder privado capitalista, em conformidade com os interesses públicos e sociais; inserção, no constitucionalismo, da ideia de igualdade em sentido material, em contraponto à ideia de igualdade em sentido meramente formal inerente ao paradigma anterior; introdução, nas novas constituições, de diretrizes de inclusão socioeconômica das populações na dinâmica da economia e da política; introdução, no constitucionalismo, da noção mais clara e firme de Democracia, integrada pelas ideias objetivas de participação e inclusão de grande número de pessoas componentes da respectiva população, ao invés da restrita ideia de liberalismo (liberalismo político, liberalismo econômico, etc.).

Não obstante seja manifesto o avanço social, institucional, cultural, econômico e, evidentemente, jurídico desse novo paradigma de constitucionalismo, em comparação com a matriz primitiva liberalista provinda do século XVIII...

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