Meio ambiente do trabalho: precaução e prevenção. Princípios norteadores de um novo padrão normativo

AutorTereza Aparecida Asta Gemignani/Daniel Gemignani
CargoDesembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas ? 15ª Região ? Doutora pela USP ? Universidade de São Paulo ? nível de pós-graduação stricto sensu/Auditor Fiscal do Ministério do Trabalho
Páginas49-70

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A vida é curta demais para ser pequena Benjamin Disraeli ...a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições e incerteza constante, em que há envelhecimento rápido, obsolescência quase instantânea e veloz rotatividade.

Zygmunt Bauman

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Introdução

O ordenamento jurídico da modernidade foi edificado sob o binômio dever ser/sanção. As normas de conduta estabelecem determinados comportamentos. Se violados, ensejam a aplicação de certa penalidade. O Estado-juiz atua somente quando provocado, em caso de ameaça concreta ou após a ocorrência de lesão.

A intensificação do conflito social, que marcou as últimas décadas, veio demonstrar que isso não era suficiente para que o Direito pudesse cumprir seu objetivo de dirimir conflitos e obter a pacificação social com justiça.

Nestes tempos de sociedade líquida, como define o sociólogo Zygmunt Bauman, a estratégia de obsolescência programática, que num primeiro momento foi engendrada para estimular a atividade econômica, chegou a um impasse.

Com efeito, o que se convencionou denominar "obsolescência programada" surgiu como alternativa na primeira metade do século passado, visando estimular a atividade industrial para superar a grande depressão causada pelo crash de 1929. Consistia na prática de reduzir a vida útil dos equipamentos para poder vender mais e, assim, impulsionar a retomada econômica. Com o tempo, consertar o que estava quebrado ficou tão caro, que era melhor jogar fora e comprar um novo. Jogar fora o velho produto e comprar a última novidade tecnológica devia ser estimulado, porque se as pessoas continuassem a comprar, a atividade econômica permaneceria aquecida e todos teriam emprego.

Entretanto, a intensificação deste processo de troca do velho (embora ainda passível de conserto) pelo novo, também levou ao desperdício de grandes quantidades de matéria-prima, água e energia, não só das utilizadas na produção dos que estão sendo jogados fora, mas também dos que são freneticamente produzidos para durar pouco, o que vem causando sérias preocupações quanto ao esgotamento dos bens da natureza, provocando

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danos ao ecossistema e ao meio ambiente, e comprometendo as condições de vida das próximas gerações.

Neste sentido, o documento intitulado O futuro que queremos, recentemente divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU)1, chamando atenção para a importância de uma governança ambiental, diretriz que serve de referência também para o ambiente onde o trabalhador passa grande parte de sua vida produtiva.

Mas não é só.

Esse modus operandi marcado pela lógica do descarte, calcado na ideia matriz de que tudo tem que ser substituído rapidamente, vem gerando uma mentalidade que passou a ser aplicada também em relação à própria pessoa do trabalhador, sua segurança, saúde, integridade física e mental.

Este artigo se propõe a examinar tais questões, focando a análise em seus desdobramentos no meio ambiente de trabalho e os efeitos que provoca na formação de um novo padrão normativo.

1. A lógica do descarte

O intercâmbio comercial trouxe muitos benefícios para a humanidade. A troca de produtos, serviços e informações sempre se constituiu num importante motor de desenvolvimento.

Entretanto, na contemporaneidade, a lógica da compra/venda passou a monitorar os demais atos da nossa vida, aniquilando o conceito de valor e substituindo-o pela ideia de preço. Assim, pouco importa o valor, basta saber qual é o preço.

O mais assustador é que essa mentalidade vem sendo aplicada também ao ser humano, destituindo-o da condição de sujeito e transformando-o num objeto passível de troca, cujo "preço" é aferido pela possibilidade "de uso".

Nesta toada, pouca importância se dá às condições de segurança e saúde no meio ambiente de trabalho pois, quando um trabalhador fica incapacitado, é mais fácil descartá-lo e substituí-lo por um novo.

Se durante todo o século XX lutamos bravamente para impedir que o trabalho fosse reduzido à situação de mercadoria, no início deste novo século, nosso desafio é maior ainda: impedir que a própria pessoa do trabalhador

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seja reduzida à condição de mercadoria, num momento em que a descoberta de novas tecnologias e a exigência de intensificação dos ritmos das tarefas têm precarizado o meio ambiente de trabalho, aumentando os acidentes e provocando o surgimento de novas doenças.

Neste contexto, se revela cada vez mais insuficiente a singela resposta até hoje oferecida, consistente no pagamento de um adicional pela prestação laboral em condições de insalubridade e periculosidade, seguida de um rápido "descarte" do ser humano quando perde seu "uso". Tal situação nos desafia a encontrar novas respostas, a fim de evitar a fratura que poderá provocar o desmoronamento do edifício normativo em relação ao meio ambiente do trabalho.

2. Repristinação da questão social?

A chamada questão social começou a aflorar com maior intensidade em meados do século XIX, em decorrência das penosas e adversas condições de trabalho, que provocavam lesões cuja reparação não encontrava resposta no direito comum.

A necessidade de construir um novo direito que olhasse além das teóricas categorias jurídicas codificadas, prestasse mais atenção à realidade da vida e dos fatos cotidianos, teve que percorrer um longo caminho até conseguir a edificação de uma nova base axiológica, que lhe desse suporte para a autonomia, tarefa para a qual, na América do Sul, tanto Cesarino Júnior2 quanto Américo Plá Rodriguez3 contribuíram de forma significativa para a consolidação do Direito do Trabalho como ramo autônomo, regido por conceitos próprios, assim passando a regular o mundo peculiar das relações trabalhistas.

Entretanto, as décadas finais do século XX registraram mudanças significativas, inclusive na maneira de trabalhar e na organização dos núcleos produtivos. A grande fábrica fordista deu lugar a conglomerados autônomos, marcados por atuação inter-relacionada e pela intensificação do ritmo de trabalho.

A utilização do telefone celular e do computador transformaram as ferramentas de trabalho, aumentando as horas à disposição do empregador e invadindo os tempos da vida privada, criando de maneira camuflada e sub-reptícia novas formas de servidão.

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O estímulo à atividade econômica, mediante a generosa concessão de financiamentos por longo prazo, veio formatar aquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman4 define como vida a crédito. Explica que antes, na sociedade dos produtores, o "adiamento da satisfação costumava assegurar a durabilidade do esforço do trabalho", por isso, era preciso sacrificar o presente para poder gozar no futuro. Hoje, na sociedade dos consumidores, é preciso garantir a "durabilidade do desejo", gozar acelerada e exaustivamente o presente, vivendo "de crédito", cuja amortização se dará posteriormente, obrigando o ser humano a trabalhar intensamente para poder pagar o extenso rol dos débitos que assumiu, na pretensa satisfação de desejos que nunca terminam, gerando novas situações de servidão, que vão formar o caldo de cultura para o ressurgimento da questão social.

Embora se apresente com nova roupagem, na verdade, o que ocorre é uma repristinação da questão social do século passado, que volta com força ante a dimensão da lesão que se avizinha, exigindo novas formas de proteção jurídica para evitar que o estado de constante servidão transforme o ser humano num objeto descartável.

Ao lado de um movimento de ascensão do individualismo, marcado pelo mote nietzschiano5 "devo completar-me de mim mesmo", e de rejeição do solidarismo, que tem reduzido a participação dos trabalhadores na vida sindical, observa-se uma preocupante intensificação das macrolesões, nota-damente no meio ambiente de trabalho, trazendo para o foco da discussão a questão dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, colocando em cheque o modelo de acesso à Justiça pela categorização de interesses e direitos.

Por isso, Cassio Scarpinella Bueno6 chama atenção para a necessidade de aprimorar, ampliar e otimizar a eficiência do acesso coletivo à Justiça, superando a baliza da categorização. Ressalta "que os direitos e interesses difusos, tanto quanto os coletivos e os individuais homogêneos, não são classes ou tipos de direitos preconcebidos ou estanques, não interpenetráveis ou relacionáveis entre si. São — é esta a única forma de entender, para aplicar escorreitamente,a classificação feita pela lei brasileira — formas preconcebidas, verdadeiros modelos apriorísticos, que justificam, na visão abstrata do legislador, a necessidade da tutela jurisdicional coletiva.

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Não devem ser interpretados, contudo, como realidades excludentes umas das outras, mas, bem diferentemente, como complementares".

O meio ambiente de trabalho, pela dimensão e importância que apresenta, congrega direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, cuja análise deve ser feita sob a perspectiva constitucional.

Com efeito, a constitucionalização dos direitos trabalhistas é a resposta que vem sendo apresentada pelo sistema normativo à nova questão social surgida na contemporaneidade, apontando para a edificação de um novo padrão axiológico, que a doutrina vem sedimentando na aplicação dos direitos fundamentais também às relações entre particulares, superando o antigo modelo que os restringia às relações do cidadão com o Estado.

Conforme já ressaltamos em outro artigo7, uma "das características mais expressivas da pós-modernidade, que marca a época...

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