Memes e direito autoral: da superação da lógica proprietária à tutela do elemento cultural

AutorDiego Brainer de Souza André e Cássio Monteiro Rodrigues
Páginas131-152
MEMES E DIREITO AUTORAL:
DA SUPERAÇÃO DA LÓGICA PROPRIETÁRIA
À TUTELA DO ELEMENTO CULTURAL
Diego Brainer de Souza André
Mestre em Direito Civil pela Uerj. Professor de Direito Civil do ICESENSA e conteudista
da UNESA. Professor convidado da pós-graduação do Estratégia, da UCAM/OAB e
do CEPED/Uerj. Ex-Professor Substituto da UFRJ. Procurador do Município de Paraty.
Advogado.
Cássio Monteiro Rodrigues
Doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– Uerj. Especialista em Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor pela Escola
da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Graduado em Direito pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor convidado da pós-graduação da
PUC-Rio e do CEPED/Uerj. Advogado.
1. INTRODUÇÃO
As novas Tecnologias da Informação e Comunicação, comumente chamadas
de “TIC’s” por prof‌issionais especializados na área, são representativas de inovações
tecnológicas aptas a compartilhar e distribuir conteúdo, bem como a facilitar a inter-
locução entre os usuários, tais como sites da Web, e-mail, chat, fóruns, redes sociais
etc. O estudo dessa fenomenologia vem revelando diversas implicações ao Direito,
principalmente quanto à tutela da dignidade humana e dos direitos da personalidade.
Com efeito, o presente artigo almeja analisar a proteção do direito autoral em cotejo
com fenômeno que, embora não tão recente, apenas ganhou notoriedade há pouco
tempo, os memes.
Observe-se, desde logo, que a Lei de Direito Autoral brasileira (nº 9.610/98 –
doravante tratada apenas como “LDA”) não concede expressa proteção a diversos
dos novos processos criativos oriundos de recursos digitais, tão comuns nos dias de
hoje, já que elaborada há vinte anos, época em que a lógica de criação não possuía a
reconhecida e intensa relação com o ambiente da Internet. Nessa perspectiva, a partir
da releitura funcional do direito autoral à luz dos valores constitucionais, f‌indando
na superação da lógica proprietária-individual, busca-se estabelecer parâmetros para
uma adequada tutela dos memes, qualif‌icados como obras derivadas que utilizam
características e substratos de outras para, através de sua ressignif‌icação, formular
um novo conteúdo.
Nesse contexto, dividiu-se o presente artigo em três eixos. No primeiro, alme-
ja-se depreender a qualif‌icação dos memes, ponto em relação ao qual se parte da
imprescindível interdisciplinaridade que deve nortear a discussão, notadamente com
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def‌inição oriunda do campo da Comunicação Social. Entendido, pois, como gênero
midiático que usa dinâmica de reapropriações, seja por um indivíduo ou grupo de
indivíduos, que pode alcançar ampla circulação nas redes sociais pela viralização,1
juridicamente, avulta relevante descortinar a função dos memes, chegando-se a seus
limites de elaboração e divulgação.
A segunda parte do estudo apresenta como desiderato examinar o direito autoral
em perspectiva hodierna, apartada de uma lógica estrutural de tutela, dessumindo-se
servir como instrumento de garantia de direitos fundamentais. Dessa forma, além
de questões atinentes ao viés patrimonial dos autores das obras, na investigação do
campo em que se inserem as produções intelectuais a incidência dos ditames consti-
tucionais se faz presente, sobretudo no que tange à liberdade de expressão e ao acesso
à cultura, valores motrizes que permeiam o sistema. Intenta-se, assim, perscrutar as
relações dos memes com o direito autoral funcionalizado e suas fronteiras de proteção.
Por f‌im, objetiva-se estimular o debate no sentido da superação da lógica pro-
prietária, em atenção à possível aplicabilidade da teoria dos bens comuns in casu,
guiando os institutos positivados ao cumprimento de suas f‌inalidades. Isso para
que, concebidos os memes como verdadeiras obras sobre obras, dignas de tutela
pelo ordenamento jurídico quando atuam em prol da implementação do projeto
constitucional, sejam totalmente apartadas da sedutora e apriorística ideia de cir-
cunscrevê-los a hipóteses de plágio ou em outras vedações absolutas.
2. MEMES: CONCEITO, FUNÇÃO E MERECIMENTO DE TUTELA
Em uma perspectiva que valoriza a interdisciplinaridade tão deixada de lado
pelo Direito, geralmente ensimesmado e alheio a produções científ‌icas que refogem
aos próprios quadros, ressai o conceito de memes da área de Comunicação Social,
ainda incipiente, no sentido de que consubstanciam gênero midiático calcado em
dinâmicas de apropriações e reapropriações de conteúdo, representativos de elemen-
tos culturais no bojo da Internet.2 Assim, podem apresentar-se, por exemplo, como
imagens legendadas, vídeos virais ou expressões difundidas pelas mídias sociais.
Cumpre, todavia, explicitar seu marco evolutivo, para conhecer a integralidade de
suas especif‌icidades, a hodierna operacionalização do conteúdo e posteriormente
problematizá-lo, dentro dos objetivos ora propostos.
1. A CRFB/88 reservou aos meios de comunicação, em todos os seus gêneros, bloco normativo próprio, com
o apropriado nome “Da Comunicação Social” (capítulo V do título VIII), e previu a garantia constitucional
de liberdade, como corolário da norma encartada no âmbito dos direitos fundamentais, que consagra a
liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científ‌ica e de comunicação, sendo vedada a cen-
sura (art. 5°, IX). Acolheu-se, assim, tanto a liberdade de informar, como o direito de ser informado, seja
de modo individual ou coletivo.
2. Sobre percuciente estudo a respeito dos memes, imperioso remeter ao projeto do #MuseudosMemes, vin-
culado à Universidade Federal Fluminense (UFF), consistente em atividade que envolve pesquisa, ensino
e divulgação e desenvolvimento acadêmico e científ‌ico quanto à cultura dos memes, no seguinte link:
http://www.museudememes.com.br>. Acesso em: 03 set. 2017.
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Esclarece-se, nesse sentido, que o conceito de meme foi cunhado, segundo
acepção majoritária, de forma despretensiosa e praticamente de relance, em 1976,
pelo zoólogo Richard Dawkins, quando de controversa discussão sobre sociobiologia
e transmissão cultural humana. Em seu livro The Self‌ish Gene (“O Gene Egoísta”),
propunha um termo para dar conta dos processos de replicação e evolução cultural
que lhe chamaram a atenção quando iniciou sua defesa à tese do determinismo
genético. Baseado numa espécie de evolucionismo cultural (com fulcro na teoria
darwiniana), o processo pelo qual o meme se replica e se mantém na memória seria
semelhante ao que se desenvolve quando o assunto é a genética animal, uma vez que
apenas os mais adaptados sobreviveriam.3
Na def‌inição original retro , memes são ideias que se propagam pela sociedade e
sustentam determinados ritos ou padrões culturais. Ao se tomar esse conceito como
base, todos os costumes que perpassam gerações, dentro de determinado contexto
temporal e espacial, poderiam nele se inserir. Diz-se, assim, que “a castidade, o racis-
mo (memes não são sempre bons!), o folclore, a moda, a gastronomia, praticamente
tudo o que conhecemos no nosso ambiente cultural, representam os memes. Dos
jeans rasgados à tradição de cantar nas festinhas de aniversário ‘Parabéns a você’”.4
O conceito, porém, alterou-se profundamente a partir da entrada em cena da Inter-
net.5 Não só os memes foram ressignif‌icados, como seu campo científ‌ico se renovou,
surgindo uma segunda acepção, tratada sob uma visão holística, como um acervo,
um coletivo orgânico de conteúdos, de modo que só encontram sentido quando
analisados em conjunto através de suas variações e, normalmente, em retrospecto.
Ainda que explicadas em síntese, depreende-se que as duas vertentes concorrem
entre si na explicação do que seriam os memes: uma mais determinista e outra pelo
3. Não tendo encontrado outro nome mais adequado para batizá-lo, Dawkins adaptou a raiz grega “mimeme”
µµ) e criou o termo “meme”, que, de acordo com o idealizador, deveria conter três características
fundamentais: longevidade, fecundidade e f‌idelidade. Ver, por todos, maiores especif‌icações sobre o tema
em: . Acesso em: 03 set. 2017. Ressalta-se, ainda,
que o termo restou incorporado pelo dicionário Oxford, como sendo “um elemento de uma cultura ou
de um sistema de comportamento passado de um indivíduo para outro por imitação ou outros meios não
genéticos.”
4. Explicação retirada do sítio eletrônico . Acesso
em: 03 set. 2017. Obtempera-se que o conceito vem sendo atualizado desde, pelo menos, a década de 1980,
a partir de autores como a psicóloga britânica Susan Blackmore e, posteriormente, ilustrativamente, por
pesquisadores como Henry Jenkins, do Grupo de Estudos de Mídia Comparada do MIT, bem como da
israelense Limor Shifman, considerados referências no desenvolvimento da matéria.
5. Como lembra a pesquisadora israelense Limor Shifman, consolidavam-se particularmente três correntes
de compreensão sobre o fenômeno dos memes. A partir da def‌inição inicial de Dawkins, “uma unidade de
transmissão cultural ou uma unidade de imitação”, era possível depreender os memes como equivalentes
de ideias (ou conceitos), textos (discursos ou artefatos culturais) ou práticas (rituais). Assim, a primeira
dessas correntes, batizada por Shifman de “mentalista”, em que se enquadrava o próprio Dawkins, descrevia
os memes como ideias ou peças de informação, singulares (como uma cor, uma sensação) ou complexas
(como o conceito de Deus). Em oposição a ela, a corrente “comportamental” propunha que os memes fos-
sem observados como comportamentos particulares ou artefatos culturais, como piadas, rimas, tendências
e tradições. Mesclando ambas as compreensões, a abordagem “inclusiva” indicava que memes poderiam
corresponder tanto a ideias quanto a padrões estruturais que as originam ou que se propagam como seus
efeitos (SHIFMAN, L. An anatomy of a YouTube meme. In: New Media & Society, 14(2), 2011).
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viés culturalista. De um lado, os memes são apresentados conceitualmente como
fenômeno humano: ideias ou comportamentos replicados sucessivamente no tempo;
de outro, aparecem como artefatos empíricos, conteúdos midiaticamente articulados,
produzidos e circulados na Internet.6 Importa, nesse viés, mais a diretriz com suporte
nas redes sociais on-line, def‌inidos justamente como um acervo de conteúdos que,
ao se espalharem, ganham versões diversas, tendo o seu signif‌icado alterado e/ou
reapropriado, a depender de um repertório cultural extraído das relações sociais,
memórias, referências históricas, econômicas e aspectos conjunturais específ‌icos.
Nada obstante, a partir de Shifman, apresenta-se uma def‌inição de meme que
recupera um argumento originalmente desenvolvido pela memética dos anos 1980 e
já esboçado pelo próprio Dawkins: a ideia de que, como os genes, os memes atuam em
conjunto, formando cadeias complexas de conceitos e comportamentos. Com efeito,
seria impossível traduzir um meme como um conteúdo ou uma peça exclusivamente.
LOLcats, por exemplo, não é uma foto de gato, mas uma série de imagens utilizadas em
diversos contextos. Veja-se que diferentemente de conteúdos individuais e isolados,
os memes são complexos informacionais que só signif‌icam em conjunto. Quando um
conteúdo sozinho é disseminado, ele, na verdade, não é um meme, mas um viral. Os
memes, portanto, apenas são passíveis de entendimento contextualmente.7
A expansão do ambiente virtual e das TIC’s tem favorecido a preservação e a
difusão de informação de forma cada vez mais veloz, pois oferecem aos usuários
ferramentas para participarem ativamente na formação de mídia, além de permitir a
produção de grandes quantidades de conteúdo, amadores ou prof‌issionais, mesmo
de forma colaborativa, propiciando cenário ideal para a difusão dos memes.8 À vista
disso, verif‌ica-se que são desenvolvidos por um indivíduo ou grupos, organizados ou
não, alcançando ampla circulação principalmente nas redes sociais. Não se descura,
ainda, que não por poucas vezes sua repercussão ultrapassa tais meandros, pautando
grandes veículos de comunicação, que ultimamente vem tentando se utilizar de tais
conteúdos exatamente para aproximação com seu público-alvo.
Próprios do universo das comunidades virtuais, os memes são comumente
compreendidos como conteúdos efêmeros, vulgarmente encarados como sem re-
6. Sobre a segunda acepção indicam-se os estudos do professor de estudos culturais e mídias Viktor Chagas,
inspirada na construção de Limor Shifman, notadamente de sua obra apresentada no Intercom, obtida no
link: . Acesso em: 03 set. 2017.
7. “Imagens legendadas com f‌iguras da cultura popular como o herói-pícaro Chapolin, fotos de gatos e outros
animais, e tirinhas com piadas satíricas, personagens mal-desenhados e linguagem propositadamente repleta
de erros ortográf‌icos e gramaticais são alguns dos exemplos possíveis para a presença deste tipo de expressão
comunicativa. Há ainda memes mais engajados política e socialmente como é o caso de expressões que se torna-
ram febre em redes sociais nos anos recentes, como o #forasarney, o #eutenholigaçãocomfreixo, #nãovaitercopa
e mesmo o #calabocagalvão. Memes são imagens, comportamentos e até personagens. Basta lembrarmos de
personagens como Dilma Bolada, criação do publicitário Jeferson Monteiro. Aliás, os memes podem ou não
ter criadores conhecidos. E muitos fazem usos de pessoas ou situações reais para criarem personagens e cenas
f‌ictícias” (). Acesso em: 03 set. 2017.
8. Aplicativos, por exemplo, como o MemeGenerator e MemeCreator podem ser baixados gratuitamente de
qualquer SmartPhone, para publicação em qualquer rede social, como Whatt’sApp, Facebook e outras.
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levância, mesmo um besteirol ou inutilidade pueril, fruto da utilização, em regra,
da linguagem do humor, termos que não os reconhecem na plenitude de seu valor
cultural. Como manifestações características da Internet, pelo contrário, são capazes
de inf‌luenciar agentes políticos e econômicos, carregando mensagens signif‌icativas.
Muitas das vezes mesmo sem o apelo ao risível, funcionam como instrumento publi-
citário, de engajamento político-social, de atuação popular para grupos militantes
e charges, até como termômetros eleitorais, ou seja, perfazem ferramenta legítima
de manifestação da liberdade de expressão e de opinião forjada nos tempos atuais e
que pode aproximar o cidadão de temas essenciais da sociedade. 9
Interessa aos f‌ins deste trabalho a relação nodal entre os memes e o direito auto-
ral, sem descurar que grande parte da problemática do tema perpassa a relação com o
direito de imagem.10 Acontece que os memes, especialmente os difundidos na Internet,
costumam se utilizar de obras de alguém ou da imagem de pessoas, fundamental-
mente associando esses dois elementos (obras e imagens) com outros, conjugados
do humor ou não. Ocorre que, como sabido, os direitos da personalidade e os do
autor contam com proteção específ‌ica na legislação vigente, que devem se defrontar
com esse novo fenômeno criativo das redes, e que, como restará evidenciado, caso
exerça função relevante, pode fazer jus ao merecimento de tutela do ordenamento.
Um exemplo da formação dos memes pode ser visualizado abaixo:
Imagens 1.1, 1.2 e 1.3 – Apropriações e variações de um meme11
9. A importância do meme pode ser vislumbrada em vários nichos, a despeito de também necessitar de certa
problematização. Aplicado à política e às campanhas eleitorais, como exemplo, verif‌ica-se uma ênfase
dada às estratégias de cativação do eleitorado com as novas dinâmicas interativas, incluindo os memes.
Sobre o tema, amplo estudo objeto de dissertação de mestrado na Uerj, do PPGD da Faculdade de Co-
municação Social, foi realizado pela professora Fernanda Freire, com o título ELEIÇÕES DA ZUEIRA:
Memes, humor e política nas eleições presidenciais de 2014. Ver em: https://figshare.com/ar-
ticles/Elei_es_da_Zueira_memes_humor_e_pol_tica_nas_elei_es_presidenciais_
de_2014/5221411. A respeito dos memes como objeto de ação popular, remete-se ao texto da
mesma autora: . A título de curiosidade, ainda,
reporta-se à matéria sobre a prof‌issão de gerenciador de memes nos EUA .tecmundo.com.br/
curiosidade/22401-gerenciar-memes-vira-prof‌issao-lucrativa-nos-eua.htm>. Todos os acessos em: 03 set. 2017.
10. Sobre um exame dos memes como elemento cultural, notadamente no que toca à sua relação com o direito
à imagem, remete-se a ANDRÉ, Diego Brainer; RODRIGUES, C. M.. Memes imagéticos e ‘pessoas públicas’:
um exame funcional e de merecimento de tutela. In: Maria Celina Bodin de Moraes; Caitlin Mulholland.
(Org.). Privacidade hoje: Anais do I Seminário de Direito Civil da PUC-Rio. 1ed. Rio de Janeiro: Independent
Publisher, 2018, p. 252-282.
11. Imagem e explicação retiradas do trabalho apresentado no seguinte endereço eletrônico:
tercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-3314-1.pdf>. Acesso em: 03 set. 2017.
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A título ainda preliminar, é preciso enfatizar que posturas demasiadas de
proteção de imagem e autoral (objeto central deste estudo) poderiam representar
a apriorística ilicitude dos memes, de toda indesejável, visto sua importância – de
expressão cultural e ideológica de seus criadores, dentre outras já evidenciadas
acima – como um dos recursos de efetivação da cidadania política na era digital.
De outro lado, também uma proteção sem limites aos memes poderia ensejar danos
a direitos da personalidade, bem como às obras de terceiros. Desse modo, muitas
são as dúvidas a que o operador do direito deve se debruçar, precipuamente no
intento de afastar a zona de insegurança jurídica a que exposta toda a massa de
consumidores na Internet. Adverte-se, porém, que nem sempre o direito posto
traz soluções simplórias.
3. DILEMAS CONCRETOS E FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AUTORAL
Os memes vêm gerando grandes problemas jurídicos. Ad exemplum, muito se
questiona sobre o bebê da vitória (“success kid”) e como seus pais lidam com isso.
Ou a adolescente que começou a ter o rosto estampado em memes sobre a “namo-
rada muito ciumenta”, o que também ocorre com a mulher do meme “f‌irst world
problems”, que é usada para fazer piadas com problemas aparentemente fúteis. Ela é
reconhecida na rua diante da superexposição de sua imagem? Ao que tudo demonstra,
quando viralizada, não há, em princípio, uma hesitação de onde a imagem veio ou o
contexto em que restou capturada, tudo a indicar uma dinâmica de reapropriação e
ressignif‌icação acentuada. Há muitas tensões, assim, relacionadas à imagem,12 sem
descurar de outros pertinentes à proliferação de fake news, conteúdos que violam a
identidade pessoal, dentre outros.
Tome-se como exemplo dessas dif‌iculdades, a onda de disseminação de memes
que envolveu a f‌igura política do então Presidente Michel Temer, após exposição de
mais um escândalo revelado pela Operação Lava-Jato, fruto de colaboração premiada
feita pelo Sr. Joesley Batista. Em maio de 2017, após a divulgação do aludido meio
de obtenção de prova e diante da massiva criação de memes pertinentes ao assunto,
o Departamento de Produção e Divulgação das Fotograf‌ias Of‌iciais da Presidência
da República notif‌icou diversas páginas humorísticas de grande alcance no Brasil,
tais como a “Capinaremos” e a “Ah Negão”, avisando-lhes sobre a necessidade de
requerimento de autorização para a utilização e divulgação das imagens”.13
12. É extremamente preocupante o uso de imagens de crianças, def‌icientes, idosos, enf‌im, pessoas hipervulne-
ráveis. Muitas são, ademais, as perguntas difíceis sobre os memes: como def‌inir quando a pessoa autorizou
o uso da sua imagem? Se ela mesma posta uma foto em um perf‌il aberto ao público, ela estaria consentindo
com a sua possível utilização em alguns casos? Como encontrar a pessoa que aparece em uma imagem para
pedir sua autorização para um outro meme, derivado? Ou, ainda, como descobrir quem foi o responsável
pela criação de um meme que foi amplamente viralizado em rede? Quem compartilha também pode ser
responsabilizado? E, nesse caso, como saber se o meme é “lícito” ou “ilícito” antes de compartilhá-lo?
13. Vide http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/presidencia-da-republica-faz-alerta-a-sites-que-criam-me-
mes-com-fotos-de-temer.ghtml. Acesso em: 05 set. 2017.
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Obviamente, tal investida do Planalto gerou temor e confusão entre os criadores
de conteúdos da Internet, em especial de memes. Houve, então, resposta do coor-
denador de equipe da “Capinaremos”, que explicou apenas produzir os memes do
Presidente com f‌inalidade humorística, sem intuito lucrativo com a obra produzida
e muito menos com o f‌ito de violar a sua imagem. Restaram informados, sequencial-
mente, de que o conteúdo de humor não se enquadra na concessão de uso e que cada
caso teria de ser analisado individualmente, bem como que a iniciativa seria para es-
tabelecer a necessidade de crédito aos autores da imagem. Veja-se que a tentativa retro
se pautou em dois fundamentos primordiais: o direito à imagem e o direito autoral.
Sem dúvidas, porém, a questão apresenta aspectos mais amplos que a mera
proteção dos direitos patrimoniais ou morais do autor da imagem utilizada, tal como
o debate sobre a natureza jurídica e caracterização do meme (notória prática social
e cultural nos ambientes virtuais) e a respeito da função que ele exerce, individual-
mente considerado. Pois bem. Censura, proteção da imagem ou do direito do autor?
Independentemente da resposta, no caso em comento, fato é que a tentativa de frear a
produção de memes com as imagens of‌iciais do Presidente não restou bem-sucedida,14
notadamente pela própria dinâmica das redes que, em razão da notícia, potencia-
lizou a produção do conteúdo contra o Chefe do Executivo naquele momento em
exercício. A despeito disso, permanece a dúvida de quais os parâmetros da criação e
divulgação (ou até proibição) dos memes.
Outros casos, por sua vez, tornaram-se pioneiros da discussão sobre memes e
direitos autorais. Um dos mais conhecidos é o da página Chapolin Sincero, que con-
cebe meme autoral consistente em imagem com legenda sobreposta, geralmente em
fonte Impact branca com outline preto – ancorado em imagens do herói picaresco
Chapolin Colorado, uma criação do humorista mexicano Roberto Bolaños. Segun-
do uma postagem feita pelo autor da página, o Grupo Chespirito, responsável por
cuidar de todos os programas de TV e derivados de Chaves, Chapolin e companhia,
solicitou a remoção do perf‌il por uso das imagens do personagem sem autorização.
Isso poderia, em última medida, signif‌icar o f‌im das atualizações do sítio eletrônico
— que já tem quatro anos e meio — e o adeus aos mais de 4,6 milhões de seguidores.15
Frise-se que o domínio em questão culminou por ser retirado do ar por certo
momento, mas após muita pressão dos seguidores, o grupo titular do direito autoral
em referência houve por liberar a utilização. Embora, ante a não submissão da con-
trovérsia em Juízo, haja sido mantido o cenário de indef‌inição sobre a licitude de tais
14. Como resposta, o Partido dos Trabalhadores resolveu abrir e conceder autorização sobre seu banco de dados
of‌iciais a todos os usuários para produzirem os memes que pretendessem, vide https://brasil.elpais.com/
brasil/2017/05/27/ciencia/1495899503_382776.html. Acesso em 09/04/2018.
15. O administrador da página ainda tentou realizar o registro de marca de “Chapolin Sincero” no Instituto
Nacional de Propriedade Industrial (INPI), mas a solicitação foi rejeitada. Para maiores informações sobre
o caso, remete-se aos seguintes portais eletrônicos, que reportaram a problemática:
pb/paraiba/noticia/2017/02/perf‌il-chapolin-sincero-pode-deixar-de-existir-diz-administrador-na-pb.html>;
-do-facebook-por-
-causa-de-direitos-autorais.htm>. Acesso em 08/04/2017.
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conteúdos, a situação narrada, obviamente, chamou atenção de outros produtores
de memes, como Minions Sinceros16 e derivados, porquanto ao empregarem per-
sonagens para fazer montagens podem sofrer o mesmo destino. A página Chapolin
Sincero, ademais, é sintomática da discussão autoral. Vozes contrárias à sua manu-
tenção aduziram que, além de gerar monetização nas redes sociais, principalmente
no Facebook, o perf‌il efetua plágios de outras obras e páginas e desvirtua o querido
personagem do imaginário social, muita vez associando-o a discursos de ódio.
Sem entrar no mérito, por fugir aos objetivos do presente artigo, o tema da cópia
integral de memes entre páginas diversas é outro que chama a atenção. Haveria pro-
teção de direito autoral a eles, mesmo utilizando-se de obras de terceiros? O tópico é
mais uma relevante discussão, inserida na lógica da Internet e redes sociais. Notícia
representativa, além disso, da proteção da formulação dos memes culminou com
o ajuizamento de ação judicial por parte de Charles Schmidt e Christopher Torres,
criadores do Nyan Cat e do Keyboard Cat, respectivamente, contra a Warner Bros e
5th Cell Media. Conforme apurado e relatado por Rocketboom17 houve quebra de
patente e uso indevido das imagens pelos desenvolvedores do jogo Scribblenauts
Unlimited. Isso porque os memes apareceram em diversas versões e em material de
divulgação do game sem a autorização deles.18
Dentro desse contexto, especif‌icamente no que tange às repercussões de direi-
to autoral, cumpre perquirir se a estrutura clássica da disciplina se encontra apta a
fazer frente a essas novas situações jurídicas. O fenômeno dos memes, até por sua
intrínseca característica de reaproveitar e ressignif‌icar conteúdos, expõe quem os
operacionaliza a notáveis problemas acerca da proteção e tutela dos direitos do autor
e o eventual uso de terceiros sobre a obra criada. Impõe-se, nesse caminhar, repensar
funcionalmente a disciplina dentro de uma lógica de acesso à cultura, colocando-a
a par das inovações tecnológicas da sociedade contemporânea. Pergunta-se, assim,
16. A página Minions Sinceros obteve enorme sucesso no Brasil, ao fazer montagens com os famosos e expres-
sivos personagens amarelos da franquia “Meu malvado favorito” junto de frases irônicas ou motivacionais,
para descrever diversas situações vividas por todos no cotidiano. Atualmente, o perf‌il do Facebook conta
com 7.526.364 curtidas.
17. O Rocketboom era um vlog diário produzido por Andrew Baron no formato de um noticiário com cunho
cômico. Desde 2004, Rocketboom traz para seus inscritos esquisitices, trechos de vlogs, comentários
sociais e políticos. [Descrição conforme o site Wikipédia; Disponível em:
Rocketboom>. Acesso em 01/07/2019.
18. Af‌irma-se que os dois memes “são conhecidos e apreciados por dezenas de milhões de pessoas” e que “essa
popularidade os torna extremamente valiosos para f‌ins comerciais”. Torres e Schmidt alegam ainda que,
ao contrário da Warner e da 5th Cell Media, muitas outras empresas respeitam os direitos intelectuais
de propriedade dos memes e pagam regularmente as taxas de licença para usá-los. Os dois criadores dos
memes af‌irmam que os danos já passam de US$ 75 mil (cerca de R$ 150 mil). O Rocketboom entrou em
contato com um dos responsáveis pela popularização do Keyboard Cat no YouTube, Brad O’Farrel, mas
ele não quis opinar sobre o caso. No game Scribblenauts, o jogador controla o personagem Maxwell,
que possui um caderno mágico capaz de trazer para a vida real tudo o que é escrito nele. Dentro do jogo,
caso o usuário escreva “Nyan Cat” ou “Keyboard Cat” no caderno, versões dos memes são transportadas
para os cenários do jogo, como mostrado na imagem abaixo”. Ver mais em no seguinte sítio eletrônico:
https://canaltech.com.br/memes/Criadores-de-memes-processam-Warner-Brothers-por-quebra-de-direi-
tos-autorais. Acesso em 08/04/2018.
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desde logo, o que caracterizaria os memes: obra original, obra derivada ou coletiva?
E como se dará a proteção?
De início, destaca-se que o direito autoral é responsável por tutelar, sob a
ótica do autor e do patrimonialismo, “as relações jurídicas advindas da criação e
da utilização econômica de obras intelectuais, compreendidas na literatura, nas
artes e na ciência”.19 Contudo, deve-se ressaltar, desde já, que não apenas o direito
autoral, mas os demais ramos do ordenamento jurídico como um todo atravessam
uma fase de transformação, decorrente da necessidade de atender aos mais recen-
tes anseios sociais nas relações privadas, o que def‌lagrou o processo de releitura
funcional de seus institutos.20 A seu turno, a Lei nº 9.610/98 (“LDA”), em seu art.
, def‌ine como obra intelectual aquelas que podem ser “expressas por qualquer
meio ou f‌ixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que
venha a ser inventado”.
Nesse sentido, pouco importa o meio pela qual é externalizada ou f‌ixada pelo
autor, pois a ratio da lei é tutelar as mais diversas criações do espírito humano, dentre
os quais se encontram os memes. Ainda, deve-se destacar, para f‌ins de qualif‌icação dos
memes, que a própria legislação distingue obra originária e derivada, sendo aquela a
obra intelectual de criação primígena, e esta toda e qualquer obra que constitui criação
nova, mas que resulta da transformação da obra originária, conforme o art. 5º, VIII,
“f” e “g”, da LDA. Portanto, a questão do reconhecimento da autoria da obra, direito
inegável do autor, perfaz linha tênue entre o tema dos memes e do direito autoral.
Veja-se que para as obras físicas e comuns, tal questionamento encontra fácil
solução. Todavia, ao se tratar de obra digital, a autoria pode se dar de maneira diluí-
da, pois, como se sabe, os memes são frutos da interatividade na rede e de inúmeras
apropriações e ressignif‌icações realizadas em obras de terceiros, muitas vezes por
diversas pessoas, sendo, inclusive, tormentosa a sua identif‌icação e, por conseguinte,
a própria tutela autoral.21
Caberá à sociedade e ao direito conformar tais hipóteses de modo a permitir certas
exceções e formas de utilização dos memes (obras derivadas e criadas por terceiros)
sem a autorização dos autores originários. Mas de que modo se poderia permitir tais
reservas e, ainda, manter a conformidade com o sistema jurídico da propriedade
intelectual, visto à luz da ótica proprietária e patrimonialista? A resposta passa, ne-
cessariamente, pela análise dos seus fundamentos e, principalmente, da sua função.
19. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2008. p. 8.
20. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: 2006. p. 57. Ver, sobre a
funcionalização dos institutos, dentre outros, TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. pp. 1-22; MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional.
Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, Rio de Janeiro, v. 17, n. 65, 1993; e SCHREIBER,
Anderson. Direito Civil e Constituição. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 48, out-dez/2012.
21. Diante disso, pode-se dizer que um dos grandes desaf‌ios postos ao direito autoral na era digital é referente
à criação da obra e identif‌icação de sua autoria.
DIEGO BRAINER DE SOUZA ANDRÉ E CÁSSIO MONTEIRO RODRIGUES
140
Inicialmente, é corrente na doutrina a necessidade do reconhecimento do acesso
à cultura como fundamento basilar do direito autoral.22 Nascido sob a inf‌luência do
direito de propriedade, como direito à exclusão sobre bens imateriais, a disciplina
precisa completar com urgência sua travessia – sempre tormentosa porque con-
f‌litante, em larga medida, com suas origens – rumo a um direito autoral que sirva
de instrumento e estímulo à produção artística e cultural tanto mais plural quanto
possível.23 Deve servir a matéria, dessa forma, como mecanismo de incentivo a uma
sociedade plural, em que os sujeitos deixam de ser apenas simples espectadores, mas
participam ativamente do processo de criação da obra intelectual, que deve alcançar
a todas as camadas sociais.
Do próprio chavão popular “arte para todos”, ressai a concepção de que não
devem se reduzir a simples destinatários, e sim como coautores do processo de
formulação cultural, que precisa exprimir uma concepção social democrática,
especialmente atenta às minorias que não alcançam os meios of‌iciais de difusão e
circulação de suas obras intelectuais. Ressalte-se que o desenvolvimento da humani-
dade sempre se relacionou com a cultura, que inf‌luencia na construção do ser e dos
valores sociais e individuais, de modo que se pode dizer, mesmo, que a negativa de
alcance à cultura a alguém representa uma ofensa direta à sua dignidade humana24,
algo de todo rechaçável.
Assim, a garantia de acesso se mostra perf‌il típico também do direito autoral,
de modo intrínseco à promoção das potencialidades humanas. Essa é a lição de
Acancini,25 que aduz pela conformação entre interesses públicos e particulares do
direito autoral, que deve realizar a função social da propriedade intelectual,26 com os
valores da Constituição, principalmente a liberdade e respeito à dignidade, funda-
mento basilar do Estado Democrático Brasileiro.27 Assim, impõe-se uma nova visão
quanto ao papel do direito autoral, ora realizador do programa constitucional como
um todo, sem pretensão de exclusiva defesa do direito do autor. Sobre a temática,
veja-se o ensinamento de Carboni:28
22. Ver, nesse sentido, primoroso artigo constante deste volume, de autoria de Micaela Barros Barcelos Fernan-
des.
23. SCHREIBER, Anderson. Cinco pontos para os direitos autorais. Jornal Carta Forense. 2018. Disponível
em:ense.com.br/conteudo/colunas/cinco-pontos-para-os-direitos-autorais/18135>.
Acesso em 04 abr 2018.
24. REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 19 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2008, p. 41-42.
25. AVANCINI. Helenara Braga. Direito Autoral e Dignidade da Pessoa Humana: A compatibilização com os
princípios da ordem econômica. In: Direito de Autor e Direitos Fundamentais. Manoel J. Pereira dos Santos
(coord.) São Paulo, SP: Saraiva, 2011, p. 74-75.
26. TRINDADE, Rangel O.; SILVA, R. O. C. E. O direito fundamental de acesso à cultura e o compartilhamento de
arquivos autorais no ambiente digital. Curitiba: GEDAI Editora, 2013.
27. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Constituição e direito Civil: tendências. Revista dos Tribunais, n. 779,
2000; e, ______. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 4. tir. Rio de
Janeiro: Renovar, 2009.
28. CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá. 2006. p. 97.
141
MEMES E DIREITO AUTORAL: DA SUPERAÇÃO DA LÓGICA PROPRIETÁRIA À TUTELA DO ELEMENTO CULTURAL
(...) promoção do desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico, mediante a concessão
de um direito exclusivo para a utilização e exploração de determinadas obras intelectuais por
um certo prazo, ndo o qual, a obra cai em domínio público e pode ser utilizada livremente por
qualquer pessoa.
Em suma, a funcionalização acarreta que a proteção aos direitos do autor não
será merecedora de tutela pelo ordenamento jurídico apenas se realizar interesses
do criador ou titular dos direitos sobre a obra, mas quando igualmente promover,
em paralelo, o interesse social e desenvolvimento cultural, a serem valorados no
caso concreto.29 Esse é o atual estado da arte: de um lado, a proteção autoral denota
grande necessidade de adaptação e releitura frente às inovações tecnológicas e novos
anseios sociais; por outro, constata-se a incidência da ordem constitucional sobre
à disciplina, reordenando-a e unif‌icando-a sistematicamente, para que atenda à
função social que possui, permitindo constante acesso da sociedade à informação, à
cultura e à educação propiciada pela obra intelectual, compatibilizando, ao f‌im e ao
cabo, interesses públicos e particulares.30 Portanto, todos esses interesses e direitos
(autorais e fundamentais mencionados) devem se amoldar e conviver sob à luz da
Carta Maior. 31
A hermenêutica civil-constitucional deve atuar sempre no sentido de identif‌i-
car a rigidez ou incompatibilidade de uma disposição normativa de direito autoral
que, analisada in concreto, limite excessivamente ou não promova a disseminação da
cultura ou informação, para, então, f‌lexibilizar a tutela excludente autoral e garantir
o acesso à obra aos demais interessados. Desse modo, mesmo com a interpretação
majoritária e clássica de restrição às hipóteses de exceção previstas expressamente na
norma à tutela do direito do autor, para o caso dos memes, impõe-se uma necessária
f‌lexibilização.
Ao f‌im e ao cabo, com f‌incas a que se evite o deslocamento dos memes para o
campo da ilicitude, pois o uso não autorizado de uma obra, em abstrato, por si só, já
seria apto a conf‌igurar violação ao direito autoral, deve o intérprete, em consonância
com os valores constitucionais e ao se valer de uma hermenêutica com f‌ins aplica-
tivos, perquirir sempre o merecimento de tutela em atenção às vicissitudes do caso
concreto, de modo a determinar o afastamento ou incidência das normas protetivas
autorais e seus já conhecidos remédios (indenização, tutela inibitória, dentre outros).
Percebe-se, então, com esses debates, que há o surgimento de um novo paradig-
ma, para além daquele clássico do qual se dessume uma valorização extremada a um
29. POLI, Leonardo Macedo. A funcionalização do direito autoral: limitações à autonomia privada do titular de
direitos autorais. In: GALUPPO, Marcelo Campos (Org.) O Brasil que queremos: ref‌lexões sobre o Estado
Democrático de Direito. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2006.
30. Para uma leitura mais profunda acerca da relação dos direitos autorais com a cultura e sua releitura à luz
desta, vide SOUZA, Allan Rocha. A função social dos direitos autorais. Campos, RJ: Editora da Faculdade de
Direito de Campos, 2006; e, _______. Direitos autorais e acesso à cultura. Liinc em Revista, v.7, n.2, set/2011,
Rio de Janeiro, p. 416- 436.
31. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. Temas de
Direito Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.1-22.
DIEGO BRAINER DE SOUZA ANDRÉ E CÁSSIO MONTEIRO RODRIGUES
142
viés proprietário, situado justamente na ambiguidade dos direitos autorais em cotejo
com as novas tecnologias da informação, com importante impasse a ser resolvido,
ainda mais intensif‌icado ao se tratar do fenômeno dos memes. Dentro desse viés, a
partir das distinções funcionais de conteúdo para averiguação do merecimento de
tutela jurídica,32 objetiva-se descortinar os limites jurídicos para a criação e divul-
gação dos memes que se valham de uma obra anterior.
Ao menos, não sendo possível a pretensão anterior de modo cerrado, faz-se
essencial evidenciar parâmetros da ponderação a serem levados a efeito casuis-
ticamente pelo intérprete, a f‌im de contemplar, na maior medida possível, tanto
os interesses do autor, considerados de suma relevância, mas como olhar mais
amplo às situações jurídicas individualizadas pelo corpo social, privilegiando-se
a criação de instrumentos de acesso à cultura e informação. Logo, o grande desaf‌io
é perscrutar a medida do balanceamento entre os interesses subjacentes, aparen-
temente conf‌litantes. A instigante superação da lógica proprietária aparenta ser
um caminho a seguir.
4. A LÓGICA PROPRIETÁRIA AINDA É “MARCA REGISTRADA” DA TUTELA
DO DIREITO AUTORAL? A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DOS BENS COMUNS
E OS MEMES COMO “OBRA SOBRE OBRAS”
Conforme ensinado por Stefano Rodotà, o tema da propriedade não diz res-
peito apenas a um conceito jurídico, mas a uma mentalidade que se espalhou pelo
Direito, isto é, uma concepção acerca de como deve ser estruturado o gozo dos bens
dentro de uma sociedade. Af‌irma, nesse sentido, que, “bem mais que uma regulação
jurídica dos bens, a propriedade determina o próprio modo como a pessoa percebe
a si mesma no seu estar em sociedade e em relação com os outros”.33 Entranhada
no imaginário do operador do direito, “o modelo proprietário se apresenta como
um padrão que inf‌luencia de maneira decisiva relações patrimoniais absolutamente
variadas, englobando desde formas societárias até as discussões concernentes ao
direito ao corpo”.34
Erguido com as notas do “individualismo proprietário”,35 o emprego da lógica
proprietária nos mais diversos âmbitos se dá cotidianamente, pois a noção é fundante
32. SOUZA, Eduardo Nunes. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de
Direito Privado. São Paulo, n. 58, abr-jun/2014, p. 75-107.
33. RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti. Roma: Laterza, 2012. A obra em questão não se limita a analisar
o estado da arte em torno do direito de propriedade, representando, antes de tudo, uma proposta baseada
em uma revolucionária alteração do ponto de vista da ciência jurídica sobre o instituto. Publicado original-
mente em 1981, o livro anuncia um renascimento da questão proprietária, demonstrando como a disciplina
jurídica da propriedade ref‌lete, a rigor, modelos culturais, políticos e sociais.
34. RENTERIA, Pablo; DANTAS, Marcus. Notas sobre os bens comuns, In: TEPEDINO, Gustavo et all (Co-
ord.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà, Belo
Horizonte: Fórum, 2016, p. 137.
35. BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietario. Trad. Juan Ernesto G. Rodríguez. Madri: Trotta, 1996.
p. 20-22.
143
MEMES E DIREITO AUTORAL: DA SUPERAÇÃO DA LÓGICA PROPRIETÁRIA À TUTELA DO ELEMENTO CULTURAL
do paradigma jurídico moderno36. Dentro do arquétipo de propriedade, a norma
jurídica organiza a realidade da vida de acordo com determinado modelo de subjeti-
vidade, viés que, mesmo em tímida superação, abre margem a um atual “triunfalismo
do mercado”,37 cuja força expansiva parece alcançar diversos bens jurídicos a f‌im de,
apropriando-os, torná-los cada qual objeto de venda/alienação. Outra justif‌icativa
perpassa o modelo de tutela jurídica pautado no interesse de exclusividade,38 o qual
possui alguma aderência à ideia de autonomia.39
O perf‌il em questão se caracteriza, portanto, pela exclusividade da decisão acer-
ca do modo de utilização, ou seja, do gerenciamento acerca do uso e fruição dessas
realidades. Conquanto, a priori, isso possua fundamento, há que se ter o devido
cuidado, pois a adoção de tal postura implica, em muitas situações, tratar relações
existenciais com categorias de direito patrimonial, causando o que Gustavo Tepe-
dino denominou a “estranha revolta dos fatos contra o intérprete”.40 Se o intérprete
se exonera de rigor metodológico em suas propostas, prescindindo do fundamento
teleológico incorporado às categorias e aos conceitos da tradição jurídica, para apli-
cá-los em situações inspirados por lógica distinta, cria-se uma dogmática fragilizada,
que perde em unidade e coerência.
Ser proprietário, assim, é ter a prerrogativa de decidir de maneira individual
aquilo que pode ou não ser feito. Ocorre que nem todos os bens podem ter suas pos-
sibilidades def‌inidas por meio dessa diretriz, notadamente quando se leva em con-
sideração a multiplicidade de mutações ocorridas diante das inovações tecnológicas
e a função que determinado bem possui na realização dos direitos fundamentais. A
dif‌iculdade em torno da contenção da pirataria digital,41 os incomensuráveis danos
ao meio ambiente e suas variadas consequências para a vida, são representativos do
fato de que o modelo proprietário precisa ser analisado criticamente, embora não
necessariamente integralmente refutado. Sobre a temática, veja-se o comentário de
Pablo Renteria e Marcus Dantas, sobre a obra de Rodotà:42
É nessa direção que Rodotà procura problematizar o espaço reservado à propriedade na ordem
jurídica, destacando a demanda social por arranjos institucionais mais anados com as neces-
sidades concretas das pessoas. Trata-se, em tais condições, de um esforço de reformulação da
36. GIORGIANNI, Michele. O direito privado e suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 747,
p. 35-55, jan. 1998; PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. Nápoles: ESI, 1997. p. 174.
37. SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. 1ª ed. Trad. Clóvis Marques.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 12-20.
38. Cf. GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 86.
39. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Libertà e proprietà. In: ALPA, Guido; ROPPO, Vincenzo (Orgs.). La vocazione civile
del giurista: saggi dedicati a Stefano Rodotà. Roma-Bari: Laterza, 2013. p. 100.
40. TEPEDINO, Gustavo. A estranha revolta dos fatos contra o intérprete. Editorial à Revista Trimestral de Direito
Civil, v. 31, abr./jun. 2007.
41. “O caso da pirataria digital é especialmente eloquente de que a ideia do controle individual sobre o uso e
fruição do bem objeto da titularidade pode, no mínimo, ser reconhecido como não ef‌icaz diante das possi-
bilidades tecnologicamente à disposição de qualquer um”. (RENTERIA, Pablo; DANTAS, Marcus. Notas
sobre os bens comuns, cit, p. 138).
42. Idem.
DIEGO BRAINER DE SOUZA ANDRÉ E CÁSSIO MONTEIRO RODRIGUES
144
teoria dos bens, que passe por uma alteração de base, por meio da qual se pretende substituir a
tão naturalizada ótica da exclusão, para uma visão que parta da garantia de acesso aos bens que
preencham uma destinação pública.
Dentro do presente escopo, complexo per si, bem como das demandas por su-
plantação funcional da disciplina autoral, há de se perquirir mesmo se a lógica dos
bens comuns pode trazer soluções na espécie.43 Embora haja sido deixado à margem
dos estudos por longo período, notou-se que a concepção de bens jurídicos, diferen-
temente do difundido classicamente, não se circunscreve às entidades passíveis de
apropriação. Existem objetos que, em decorrência da função desempenhada,44 isto
é, por se af‌igurarem diretamente relacionados ao exercício dos direitos fundamentais
das presentes e futuras gerações, superam a dicotomia entre bens públicos e privados.
Assim, a qualif‌icação jurídica passa a ser realizada não mais pela titularidade, e sim
pela própria f‌inalidade.45
A suplantação da mentalidade proprietária encontra-se no âmago da teoria.
Pautada em critérios econômicos e em movimentos sociais,46 a tese busca encontrar
sistemas institucionais alternativos ao assenhoramento exclusivo, hábeis a promover
o governo de recursos e o aproveitamento econômico de modo ef‌iciente e sustentável.
O projeto consagra a percepção de que se materializa imprescindível a sujeição de
determinados bens, por sua monta social, a regime jurídico específ‌ico, com fulcro
no desígnio de que a incorporação ao patrimônio não deve ser a única solução para
afetar relevantes objetos a interesses difusos. Por isso que, no plano do direito civil,
a doutrina dos bens comuns permite repensar os conceitos de bens públicos e pri-
vados, porquanto vetustos.47
Numerosos, pois, são os interesses, especialmente os coletivos e difusos, que
se tornam dignos de proteção mesmo incidindo sobre bens insuscetíveis de comer-
cialização, bastando pensar no meio ambiente e no patrimônio cultural e artístico.
Os direitos relativos à qualidade de vida saudável e à proteção da f‌lora e da fauna são
43. Na Europa, o assunto é deveras discutido. Em terras italianas, fundamentalmente, um dos grandes berços de
inspiração do direito civil pátrio, o assunto espraia-se por toda a academia e conf‌igura-se como necessário
à compreensão dos direitos fundamentais na contemporaneidade.
44. Segundo Stefano Rodotà, “[e]stamos falando, de fato, de uma nova relação entre o mundo das pessoas e o
mundo dos bens, há muito tempo substancialmente conf‌iado à lógica do mercado, portanto, à mediação
da propriedade, pública ou privada que seja. Ora, o acento não está mais posto sobre o sujeito proprietário,
mas sim sobre a função que um bem deve desempenhar na sociedade” (RODOTÀ, Stefano. O valor dos bens
comuns, p.1, no seguinte endereço eletrônico:
505533-o-valor-dos-bens-comuns-artigo-de-stefano-rodota>. Acesso em: 19//03/2018).
45. Ver, nesse sentido, PARISI, Federica. I “beni comuni” e la Comissione Rodotà. Disponível em:
labsus.org/2009/04/i-beni-comuni-e-la-commissione-rodota-3/>. Acesso em 19/03/2018.
46. É justamente das posições engajadas na defesa do ambiente e da cultura que se coloca o atual problema dos
bens comuns (ainda que ele deva ir mais longe do que isso).
47. No plano do direito público, a função social da propriedade privada com fulcro na Constituição (arts. 5º,
XXII e XXIII, e 170, da CR/88) pode ser coligada com o disposto no art. 225 da Constituição (“Art. 225.
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações”).
145
MEMES E DIREITO AUTORAL: DA SUPERAÇÃO DA LÓGICA PROPRIETÁRIA À TUTELA DO ELEMENTO CULTURAL
tutelados independentemente da titularidade. Há que se afastar, portanto, a noção de
bem jurídico do arquétipo da propriedade privada.48 Os bens comuns, nesse contex-
to, podem ser abstratamente conceituados como bens consumíveis cuja utilização
por alguém não exclui a utilização por outrem, mas que, todavia, são exauríveis.49
O mesmo ocorre com a Internet, com a apriorística dúvida se deveria ser tratada
como bem comum, valorizando-se as condições de uso e alcance de todos. Como
exemplif‌icação de temática que umbilicalmente se liga ao conhecimento nas Redes
on line e às atualidades tecnológicas, é de se suscitar mesmo a qualif‌icação jurídica
dos memes, então entendidos como elementos culturais calcados em uma dinâmica
de apropriação e ressignif‌icação de conteúdos, com ref‌lexos que perpassam tanto
o direito autoral quanto o direito de imagem. Veja-se, assim, que quando o foco sai
da inf‌luência do direito de propriedade, alguns bens não combinam com a lógica
proprietária, como ocorre igualmente com o remix e os mashups.
O maior exemplo desse caminho de superação da lógica proprietária frente ao
compartilhamento é a tecnologia dos Creative Commons. Trata-se de uma instituição
legal, não lucrativa, que desenvolve formas específ‌icas e diferenciadas de licen-
ciamento de obras autorais na rede, com o mérito de aliar o direito autoral com o
compartilhamento virtual, em respeito à tutela dos direitos do autor, possibilitando
a licença ou reprodução, por exemplo, para f‌ins não comerciais, inclusive def‌inindo
hipóteses de uso, a possibilidade de modif‌icação da obra originária, dentre outros.50
Logo, os Creative Commons são produto de uma nova ótica de cultura de compartilha-
mento de conteúdos na Internet, própria da sociedade da informação e do ambiente
das redes sociais.
Faz-se imprescindível, nesse contexto de inovações e f‌luidez, aliada ao pensar o
direito autoral por meio da ótica da funcionalização e de garantia ao acesso cultural,
incluir em seu universo as chamadas “obras sobre obras”, tão comuns no dia a dia
virtual, mas não restritas apenas a esses ambientes. Como se sabe, essas modalidades
de obra se manifestam nos mais diversos campos da arte, tais como as conhecidas
fanf‌ics (recriações de outras obras sob os olhos dos fãs, como as que apresentam f‌inais
alternativos para a renomada série de TV Game of Thrones, decorrente da insatisfação
de muitos internautas com o f‌inal dado à série pelos roteiristas, em junho de 2019,)51
ou as variadas representações do famoso quadro “O Grito”, do norueguês Edvard
Munch, com personagens marcantes da cultura pop ocidental, tais como Homer
48. TEPEDINO, Gustavo. Regime jurídico dos bens no Código Civil, cit, p. 3.
49. Ver, nesse mesmo sentido, a def‌inição de RENTERIA, Pablo; DANTAS, Marcus. Notas sobre os bens comuns,
cit, p. 136.
50. Para maiores informações sobre a sistemática dos Creative Commoons, vide
e .
51. Diversos internautas tomaram para si o desaf‌io de criar f‌inais melhores que o of‌icial feito pelos roteiristas
da HBO. Desse ímpeto surgiram várias fanf‌ics nos principais sites nacionais do assunto, bem como no
youtube e demais redes sociais, como se vê dos seguintes sites: -
gorias/as-cronicas-de-gelo-e-fogo-game-of-thrones> e, ainda,
game_of_thrones/>.
DIEGO BRAINER DE SOUZA ANDRÉ E CÁSSIO MONTEIRO RODRIGUES
146
Simpson ou Minions, em substituição à f‌igura central do quadro, para lhe atribuir
outra signif‌icação.
Desprendido o direito autoral da lógica proprietária que vigorava outrora, ex-
surge margem razoável de espaço de licitude para atrair a construção de obras das
obras ressignif‌icadas. As alterações oriundas do avanço tecnológico e do surgimento
de novas formas de compartilhamento e criação, que desaf‌iam a conhecida lógica in-
dividualista da relação com os bens não encontram guarida na tutela rígida do direito
autoral desprovido de função. Ressalte-se que, para todos os f‌ins, a criação dessas
obras não conf‌igura plágio ou se traduz em violação à exclusividade da obra-base.
Plágio é, em sua def‌inição mais costumeira, a apresentação de obra alheia como se
própria fosse, ou, ainda, se valer de seus elementos para compor a obra nova e pleitear
o resultado como se totalmente próprio.
Da conceituação de obra intelectual, ademais, cuja redação, já mencionada,52
mostra-se aberta, ressai a roupagem exemplif‌icativa para f‌ins de incidência de proteção
da LDA. Abarca-se, dessa forma, a ideia dos memes como objeto do direito autoral
que, como explicitado, representam um fenômeno que se utiliza de obras de terceiros
como ponto de partida, sejam imagens ou expressões, de modo que também podem
ser qualif‌icados como obra derivada, que, por def‌inição legal, é a que transforma a
obra originária em nova criação intelectual, também passível de proteção pelo di-
reito autoral, desde que ponderado com os outros interesses proprietários (da obra
originária) e sociais (acesso à cultura) em jogo.
Destaca-se, nessa linha, que os memes materializam, mais ainda, a f‌lexibiliza-
ção dos direitos autorais frente ao ambiente virtual. Isso porque, em regra, a obra
derivada para ser criada necessita de autorização do detentor dos direitos da obra
originária, na forma do que estabelece o artigo 29 da LDA.53 Contudo, a natureza
52. Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou f‌ixadas
em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: (...) XI – as
adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual
nova.”
53. “Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalida-
des, tais como: (...) I – a reprodução parcial ou integral; II – a edição; III – a adaptação, o arranjo musical
e quaisquer outras transformações; IV – a tradução para qualquer idioma; V – a inclusão em fonograma
ou produção audiovisual; VI – a distribuição, quando não intrínseca ao contrato f‌irmado pelo autor com
terceiros para uso ou exploração da obra; VII – a distribuição para oferta de obras ou produções mediante
cabo, f‌ibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da
obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a
demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe
em pagamento pelo usuário; VIII – a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científ‌ica,
mediante: a) representação, recitação ou declamação; b) execução musical; c) emprego de alto-falante ou
de sistemas análogos; d) radiodifusão sonora ou televisiva; e) captação de transmissão de radiodifusão em
locais de frequência coletiva; f) sonorização ambiental; g) a exibição audiovisual, cinematográf‌ica ou por
processo assemelhado; h) emprego de satélites artif‌iciais; i) emprego de sistemas óticos, f‌ios telefônicos ou
não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados; j) exposição de
obras de artes plásticas e f‌igurativas; IX – a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador,
a microf‌ilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero; X – quaisquer outras modalidades de
utilização existentes ou que venham a ser inventadas.
147
MEMES E DIREITO AUTORAL: DA SUPERAÇÃO DA LÓGICA PROPRIETÁRIA À TUTELA DO ELEMENTO CULTURAL
do próprio meme tornaria impossível sua apreensão, mesmo que minimamente,
nessa estrutura de obra derivada. Nesse passo, logicamente sem pensar no fenô-
meno dos memes, fez por bem o legislador em trazer na própria lei de regência,
especif‌icamente no art. 46, um rol daquelas situações em que, ao privilegiar a ne-
cessidade de se viabilizar a concepção de novas artes, para dar novo signif‌icado e
mensagem à obra original, permite a reprodução de obras autorais, as quais a LDA
denominou de limitações.
Os memes, então, encontram suporte justamente na exceção do uso transfor-
mativo das obras intelectuais, constante do mencionado dispositivo Lei nº 9.610/98,
uma vez que, ao serem pensados e criados à luz de outras obras, como pinturas, f‌ilmes
e fotos, receberão proteção do ordenamento jurídico, que não conf‌igurará violação
de direitos de terceiros, pois, na realidade, não se está reproduzindo a obra-base em
si, mas sim tratando como se original fosse, diretriz ínsita à ressignif‌icação. Ademais,
para todos os f‌ins, daí também não decorre prejuízos ao autor da obra originária ou
sua exposição, tal como ocorre com ‘Self‌ie da Monalisa”, em que a famosa f‌igura do
quadro de Da Vinci posa em divertidas poses, para realizar self‌ies ou aparece com os
mais distintos f‌igurinos.
E isso não signif‌ica dizer que a tutela do autor é completamente afastada quando
se trata do fenômeno dos memes. Inclusive, os direitos morais (arts. 24 e seguintes
da Lei de Direitos Autorais) e a exploração patrimonial (arts. 29 e seguintes da Lei
de Direitos Autorais) do meme pelo criador são obviamente possíveis, conf‌igurando
interesse tutelável pelo ordenamento jurídico. Recentemente, o avanço tecnológico
permitiu a criação dos non-fungible tokens (tokens não fungíveis – “NFTs”), que se
valem da tecnologia blockchain para garantir a autenticidade – e daí a infungibili-
dade – do conteúdo negociado, acompanhado de certif‌icação digital, o que vem se
revelando uma revolucionária ferramenta de negociação de propriedade intelectual.54
Tal fenômeno, prestigiando a originalidade da criação, pode-se dizer, gerou
recente “corrida do ouro”55 entre criadores de memes famosos, como o citado “Nyan
Cat” e a “A menina do desastre” com seu sorriso malévolo frente a uma casa em
chamas, que venderam, em 2021, NFTs dos memes originais (rectius: seus códigos
criptografados) por aproximadamente meio milhão de dólares em leilões.56 Embora
a compra de uma NFT não signif‌ique automaticamente a apropriação com exclu-
sividade de um meme em si (e nem que com isso se possa impedir sua circulação e
utilização na Internet), esse cenário reforça a necessidade de construção de parâmetros
54. Nesse sentido, vide os seguintes artigos de Leticia Provedel: (i) https://politica.estadao.com.br/blogs/
fausto-macedo/direitos-autorais-a-nova-aposta-dos-fundos-de-investimento/; e (ii) https://www.jota.info/
opiniao-e-analise/artigos/nfts-e-tecnologia-blockchain-nas-artes-e-na-musica-18032021.
55. https://www.nbcnews.com/pop-culture/pop-culture-news/meme-gold-rush-classic-viral-images-are-sellin-
g-nfts-thousands-n1265875.
56. https://www.uol.com.br/tilt/noticias/bbc/2021/05/03/a-historia-por-tras-do-meme-da-menina-em-
-frente-a-incendio-que-foi-vendido-por-mais-de-r-27-milhoes.htm; (ii) https://blog.nubank.com.br/o-
que-e-nft/.
DIEGO BRAINER DE SOUZA ANDRÉ E CÁSSIO MONTEIRO RODRIGUES
148
pela doutrina e pela dogmática jurídica que consigam lidar adequadamente com os
memes, sem relega-los à ilicitude.
A Internet e as redes sociais são combustíveis para o processo criativo do ser
humano, acentuado pelos inúmeros agentes da rede, e cria veículo hábil a facilitar a
circulação de conteúdo e a livre circulação de obras entre criadores, consumidores
e, agora, os criadores sucessivos de conteúdo, como ocorre com os memes ou as
fanf‌ictions. Surgem, dessa forma, novas obras autorais, com formas renovadas, con-
sagrando-se uma nova forma de produção autoral, para além da coautoria conhecida
pelo direito, um verdadeiro campo de produção de obras sobre obras e que, nem por
isso, são aprioristicamente estigmatizadas pela ilicitude. Apenas quando existe algum
prejuízo à obra originária, que deve ser provado, o entendimento deve ser diverso.
Na lição de Soha e McDowell,57 “Um meme, em parte graças à sua criação
aparentemente acidental, e de autoria coletiva, não pode ser tido como ‘autoral’
do mesmo modo que uma canção”, naquela perspectiva clássica, pois no caso dos
memes, cada agente na rede acresce o conteúdo da obra e coloca inf‌luências espe-
cíf‌icas, de modo a reapropriar seu conteúdo e dar-lhe novo signif‌icado e contexto.
À evidência, isso f‌ica mais claro ao se olhar para a experiência criativa dos memes
nacionais e seu espalhamento nas redes sociais, em que diversos internautas criam
um perf‌il, personagem ou modelo a partir dos conteúdos originais e com signif‌icação
própria, descaracterizando-o da origem, como o “Homem-Aranha dos anos 60” e o
“Dinofauro sincero”.
O direito deve reconhecer e promover tais formas de concepção autoral, oriun-
das não apenas do ambiente virtual, mas decorrente das interações contemporâneas,
impulsionadas pela tecnologia, apartando-as do plágio.58 Nesse contexto, com o
objetivo a que a disciplina cumpra sua função de garantir o acesso à cultura e com-
bater o elitismo, impõe-se remodela-la para além da lógica proprietária sob o qual
foi construída, e, assim, convergir “em prol de uma maior abertura às obras sobre
obras”.59 Isso para que, com a devida cautela, os memes não sejam, à primeira vista,
relegados à ilicitude. Observe-se que tal concepção não afasta a inteireza do direito
autoral, tão somente propondo, ao revés, a incorporação de novos elementos a serem
sopesados, sempre a partir da função que o elemento criado promove dinamicamente.
Relembre-se que os memes atuam como um importante mecanismo de realização
do acesso à cultura e do direito fundamental à liberdade de expressão, fundamentais
para a ordem constitucional brasileira, e que, a partir de uma releitura funcional do
direito autoral e da teoria dos bens comuns, não deve encontrar vedações absolutas
em sua criação e divulgação, pois representam obra derivada contínua, de criação
57. BARROS, Carla Eugenia Caldas. Fanf‌iction, obra derivada, novas tecnologias e estado cultural. PIDCC, Aracaju,
a. VI, v. 11. n. 1. Fev/2017. p. 156-176, 2017.
58. LINKE, S. H.; TRINDADE, Rangel O. . Plágio às avessas: o caso S. Westphal e o direito autoral na Internet.
Revista Eletrônica do IBPI, v. 1, p. 13-27, 2011.
59. SCHREIBER, op. cit., 2018.
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MEMES E DIREITO AUTORAL: DA SUPERAÇÃO DA LÓGICA PROPRIETÁRIA À TUTELA DO ELEMENTO CULTURAL
orgânica e coletiva, ao valer-se de elementos da obra-base original. Como manifesta-
ções livres do espírito e sem deturpação da obra-base, sequer se vislumbram prejuízos
manifestos aos direitos do criador originário, ao menos até prova em contrário, muito
menos gravames ao direito autoral do idealizador da concepção inicial.
Assim, a priori, os memes denotam fenômeno apreensível pelo direito autoral
e merecedores de tutela, não estando relegados à ilegalidade, desde que o conteú-
do da obra cumpra sua função primordial de garantia de liberdade de expressão e
de acesso à cultura. Por pressuposto lógico, não merecerão guarida os memes que
eventualmente materializem interesses que não estejam voltados para realizar os
valores constitucionais – como os diversos casos de fake news, incitação de ódio
(“hate speech”), violação à identidade ou à imagem de terceiros retratados nas obras,
bem como casos de violação à honra objetiva da empresa, marca, ou uso indevido de
personagens para f‌ins de concorrência desleal. O cotejo de ponderação, repise-se,
deve ser sempre analisado dentro do bojo da dinâmica relacional específ‌ica.
Destaca-se, a título informativo, que, em março de 2019, o Conselho da União
Europeia aprovou a Proposta de Diretiva sobre Direito Autoral 2016/0280 (COD),
que busca, dentre outros objetivos, regulamentar o tratamento dispendido pelos
provedores de conteúdo ao compartilhamento por seus usuários de obras protegidas
por direitos autorais. Pode-se dizer que a inovação legislativa mais impactante f‌icou a
cargo do polêmico art. 13 do Projeto,60 que veio a ser o art. 17 na versão f‌inal aprovada
pelo Conselho da UE: as plataformas de compartilhamento online, de conteúdo e de
aplicação, devem agora obter autorização específ‌ica do titular dos direitos autorais
para divulgar ao público determinada obra.
60. A Diretiva sobre Direitos de Autor no Mercado Único Digital, em seu art. 17 (que f‌icou popularizado como
“artigo 13”) determina, dentre outros pontos: “Os Estados-Membros devem prever que os prestadores de
serviços de partilha de conteúdos em linha realizam um ato de comunicação ao público ou de colocação à
disponibilização do público para efeitos da presente diretiva quando oferecem ao público o acesso a obras
ou outro material protegidos por direitos de autor carregados pelos seus utilizadores. Os prestadores de
serviços de partilha de conteúdos em linha devem, por conseguinte, obter uma autorização dos titulares de
direitos a que se refere o artigo 3.º, n.s 1 e 2, da Diretiva 2001/29/CE, por exemplo, através da celebração de
um acordo de concessão de licenças, a f‌im de comunicar ao público ou de colocar à disposição do público
obras ou outro material protegido. (...) Caso não seja concedida nenhuma autorização, os prestadores de
serviços de partilha de conteúdos em linha são responsáveis por atos não autorizados de comunicação
ao público, incluindo a colocação à disposição do público, de obras protegidas por direitos de autor e de
outro material protegido (...)”. Veja-se a redação do artigo referido artigo: “Os prestadores de serviços da
sociedade da informação que armazenam e facultam ao público acesso a grandes quantidades de obras ou
outro material protegido carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de di-
reitos, adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os titulares de direitos
relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido ou que impeçam a colocação à disposição
nos seus serviços de obras ou outro material protegido identif‌icados pelos titulares de direitos através
da cooperação com os prestadores de serviços. Essas medidas, tais como o uso de tecnologias efetivas de
reconhecimento de conteúdos, devem ser adequadas e proporcionadas. Os prestadores de serviços devem
facultar aos titulares de direitos informações adequadas sobre o funcionamento e a implantação das medidas,
bem como, se for caso disso, sobre o reconhecimento e a utilização das obras e outro material protegido.”.
A proposta aprovada 2016/0280 (COD) está disponível em:
TXT/?uri=CELEX%3A52016PC0593>. Acesso em 22 jun 2019.
DIEGO BRAINER DE SOUZA ANDRÉ E CÁSSIO MONTEIRO RODRIGUES
150
Essa mudança altera totalmente o já conhecido sistema de “Notice and takedown
utilizado pela União Europeia para f‌ins de remoção de conteúdo indevido na Internet.
Agora, com a nova disposição normativa no cenário europeu, as plataformas passarão
a ser responsáveis pelas potenciais violações de direitos autorais a partir do momento
do upload do conteúdo feito pelo usuário, se o conteúdo inserido, por exemplo, utilize
imagens ou versos sem autorização ou a correta citação do autor original, exceto se
demonstrarem que eivaram esforços consistentes para ou adquirir a autorização ou
rapidamente remover o conteúdo e impedir o seu acesso por terceiros.
A Diretiva também possui determinação de que as plataformas de conteúdo
devem criar f‌iltros mais restritos ao upload de arquivos pelo usuário, fato que pode
resultar, dentre outros, em óbices ao compartilhamento de memes, obstando ver-
dadeiros atos de liberdade de expressão legítima, sob a justif‌icativa de afastar even-
tuais responsabilidades. Perceba, com efeito, que apesar de louvável, a tentativa de
regulamentação dos direitos autorais no ambiente digital pelo Parlamento Europeu
prioriza, por meio de uma lógica patrimonialista, os direitos de autor sobre outros
direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e o acesso à cultura, não
se atentando que os memes são, em última medida, elementos culturais.
Em uma palavra f‌inal, exsurge da aprovação da Nova Diretiva Europeia de
Direitos Autorais a certeza da atualidade e importância do debate ora travado,
obtemperando-se que, a nosso ver, o tema f‌indou mal consignado na mencionada
regulamentação, inspirada, ao que tudo indica, na insistência de tratamento dos
direitos autorais exclusivamente sob a ótica do modelo proprietário, sob o qual foi
concebido séculos atrás. Em última instância, qualquer imperiosidade autorizativa
prévia desvirtua com burocratização excessiva o fenômeno dos memes, relegando
tema intrínseco à cultura da sociedade à ilegalidade, como se fosse possível aprisionar
a velocidade e a criatividade das redes a fórceps.
5. CONCLUSÕES
Como se pode perceber, muitas são as questões que permeiam os memes de In-
ternet, a grande maioria sequer inicialmente tratada do ponto de vista jurídico, muito
menos resolvida. Frise-se que, conquanto seu conceito seja incerto e discutido mesmo
fora do âmbito jurídico, o fenômeno é ponto alto do momento e merece exame crítico.
Tudo, af‌inal, acaba em memes: humor, política, banalidades, cinema etc. Por meio deles,
personagens, imagens, obras, marcas são reapropriadas e ressignif‌icadas, representando
elementos culturais da rede. O seu cotejo com o direito autoral, assim, perfaz ponto de
partida da imprescindível sistematização pela qual a disciplina deve passar, com o esco-
po de construir parâmetros de juridicidade e propiciar segurança jurídica nas relações.
Os memes, conforme ensinamentos da Comunicação Social, são um novo gênero
de mídia, da qual ressai a necessidade de uma inovadora relação com a autoria, ante
a sua específ‌ica natureza. Ao longo do artigo, não se buscou, de modo algum, afastar
151
MEMES E DIREITO AUTORAL: DA SUPERAÇÃO DA LÓGICA PROPRIETÁRIA À TUTELA DO ELEMENTO CULTURAL
as implicações de Direito Autoral a tais conteúdos. Quis-se, pelo contrário, rechaçar
a apriorística ideia de que os memes, que costumam integrar-se de elementos de ou-
trem, isto é, que são concebidos a partir de uma obra protegida estaticamente pelo
ordenamento, são ilícitos quando inexistir prévia autorização. Todavia, embora haja
ainda amplo predomínio de uma concepção proprietária das produções intelectuais,
restaram almejados alguns subterfúgios, à luz de perspectiva funcional, de realização
do acesso à cultura e garantia da liberdade de expressão, que devem nortear os debates.
Sem descurar da importância dos memes per se, vistos como instrumentos de
cidadania, buscou-se apontar delineamentos a três questionamentos: (i) se possível,
em sua construção, utilizar um personagem, marca ou outro elemento protegido pelo
Direito Autoral; (ii) se uma página criadora de memes tem proteção em face a outra
existente no contexto da Internet; (iii) se um meme, por si, pode ser considerado
obra de uso exclusivo, sendo digno de tutela (meme de outrem usado em um jogo?).
Em síntese, a ideia não é de negar o espaço da autoria, mormente considerando as
recentes certif‌icações de memes por tokens não fungíveis (NFT’s), na plataforma
da disruptiva tecnologia blockchain, e sim que cada conteúdo deve ser analisado in
concretu, examinando-se se perfaz elemento digno de resguardo, ou seja, se consen-
tâneo com o viés de acesso à cultura, possuindo em seu bojo algum elemento que
seja relevante, mesmo que exclusivamente o humor.
O campo de construção para tanto exsurge da hermenêutica civil-constitucional,
com a identif‌icação da rigidez ou da incompatibilidade de uma disposição normativa
de direito autoral que limite – ou não promova – a disseminação da cultura ou da
informação, de sorte a moldar a estrutura excludente autoral e garantir o acesso à
obra aos demais interessados. Com efeito, decorre a juridicidade dos memes quando
não vinculados a conteúdos socialmente reprováveis, como nas situações em que
usados para f‌ins de fake news, concorrência desleal, violação à honra (subjetiva e
objetiva), dentre outros. E disso se segue, naturalmente, a própria função da disci-
plina, em cotejo com a aclamada superação da lógica proprietária para uso, fruição
e compartilhamento de utilidades limitadas, ao encontro com a proposta de bens
comuns, inclusive no ambiente virtual.
Embora não se possa falar da lógica dos bens comuns em relação aos conteúdos
produzidos a partir da imagem de pessoas, que podem, a qualquer tempo, questionar
a violação perpetrada, é de se suscitar, a partir da diretriz ora sustentada, se pode ser
estendida notadamente à questão dos memes tais elementos f‌lexibilizadores, diante
de potencial violação aos direitos autorais em sua dinâmica. Tudo para que se evite
revelar tratamento obstativo de direitos fundamentais à liberdade e expressão cultural,
soando imperativo, ao que tudo indica, atrair essa lógica para o âmbito de um novo
direito autoral, como dito, funcionalizado. Desobscurece-se, nesse viés, um direito
à obra das obras, quando houver justif‌icativa plausível.
Dentro das problemáticas postas, conquanto as respostas não sejam peremptó-
rias, percebe-se que, levada a cabo viés clássico, haveria um cenário de ampla inse-
DIEGO BRAINER DE SOUZA ANDRÉ E CÁSSIO MONTEIRO RODRIGUES
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gurança a quem cria um meme com elemento protegido de direito autoral, inspira-se
em um meme criado por outra página ou utiliza determinado meme de outra pessoa,
para qualquer outra f‌inalidade. Nada impede, todavia, desde que a cópia não seja
integral, ou seja, que haja signos distintivos, a coexistência entre versões similares
do mesmo meme61. O que se pretendeu, à luz das ref‌lexões postas, foi a contribuição
para modif‌icação do contexto em questão, culminando na conclusão permissiva aos
memes, ao se ponderar topicamente as situações postas e analisar os dignos interesses
merecedores de tutela, em dinâmica relacional.
61. Exemplif‌ica-se, novamente, com o Dinofauro Azul, de André Crevilaro, e o Dinofauvo Fanho, assim como
com as páginas Dicas Dollynho, versões Opressor, Puritano, Reaça etc., a descrever a orientação política da
página e dos memes lá concebidos.

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