Memorias do Canavial: a traducao de intelectuais negras da diaspora e seus dialogos com o Brasil.

AutorOliveira, Jess

KILOMBA, G. Memorias da Plantacao: episodios de racismo cotidiano Traducao de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogo, 2019. 244p.

Mulheres negras tem sido, portanto, colocadas dentro de diversos discursos que mal interpretam nossa propria realidade: um debate sobre racismo no qual o sujeito e o homem negro; um discurso genderizado no qual o sujeito e a mulher branca; e um discurso de classe no qual "raca" nao tem nem lugar. Nos ocupamos um lugar muito critico dentro da teoria. (KILOMBA, 2019, p. 97).

O livro Memorias da Plantacao: episodios de racismo cotidiano (2008; 2019) e resultado da tese de doutoramento em filosofia da artista e intelectual interdisciplinar Grada Kilomba. Nascida em Lisboa, a autora vive em Berlim desde a epoca de seu doutorado, e toda sua obra (livros, palestras, videos, performances, etc) e marcada pela rememoracao de suas raizes ancestrais de Sao Tome e Principe e Angola, bem como pela discussao critica dos efeitos do racismo e sexismo estruturais no que tange as colonialidades forjadas pelo Ocidente.

Memorias da Plantacao foi lancado em ingles no Festival Internacional de Literatura em Berlim em 2008. A edicao brasileira lancada em 2019 na Festa Literaria Internacional de Paraty ganhou uma carta da autora, onde Kilomba relembra o longo processo de escrita do livro, perpassando sua formacao politica e academica. Ela destaca como vivenciou em Lisboa o isolamento de ter sido a unica estudante negra no departamento de psicologia clinica e psicanalise, salientando a ausencia de literatura representativas em seu curso, fato que a fez posteriormente buscar intelectuais negras e negros que discutem suas experiencias produzindo conhecimento.

bell hooks em Intelectuais negras (1995) discorre sobre o quanto nos mulheres negras lutamos para fortalecer o nosso comprometimento com o trabalho intelectual como ferramenta politica. No relato inicial de Grada Kilomba, o isolamento provocado pela falta de acesso a outras pessoas negras na area da Psicologia a condicionou a um isolamento na comunidade academica. A academia, assim como outros espacos de poder e de conhecimento sao (detentores de) uma estrutura que nos aliena em um pensamento colonizado e colonizante e que nos descreve a partir de uma perspectiva que nos coloca como objetos de estudo.

As analises de hooks (1992; 1995) sao fundamentais para o argumento de Kilomba e para compreendermos o nosso papel enquanto intelectuais negras em espacos majoritariamente brancos, sobretudo quando levantamos questionamentos acercas dessas estruturas de poder a partir de nossos conhecimentos e experiencias, que acabam por colocar em cheque experiencias brancas, heterossexuais e cisgeneras, comumentes associadas ao conhecimento universal. Para hooks (1995, p.474) "muitas vezes, temos de ser capazes de afirmar que o trabalho que fazemos e valioso mesmo que [o mesmo] nao seja julgado assim dentro de estruturas socialmente legitimadas. Afirmando no isolamento que o trabalho que fazemos pode ter impacto significativo numa estrutura coletiva"

A autora de Memorias da Plantacao, ao relatar suas experiencias de racismo e sexismo cotidianos dentro de espacos academicos e culturais, bem como o isolamento que vivenciou estabelece uma conexao com diversas subjetividades que passam por situacoes semelhantes. O fato de seu livro ser hoje acessivel para milhares de pessoas em diversas partes do mundo atualizam as palavras de bell hooks (1995), provando que o trabalho de mulheres negras de fato tem impactos significativos e coletivos.

Kilomba relata como era comum ser confundida com a senhora da limpeza (p. 11), ou vivenciar a recusa dos pacientes em serem atendidas por uma mulher negra. Ainda hoje no Brasil, atravessado pelo "mito da democracia racial" forjado pelo romantismo da colonizacao portuguesa no sec. XVI, nao e raro mulheres negras em espacos historicamente brancos serem "confundidas" com funcionarias da limpeza.

Em A cor da faxina no Brasil (2017), Vilma Piedade relata o caso exposto nas redes sociais da historiadora Luana Tolentino, ao ter sido abordada por "uma legitima representante da branquitude" que perguntou se Luana era faxineira. A historiadora respondeu que era professora e fazia mestrado contrariando as expectativas da branquitude. Para Piedade, a situacao de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT