Menino veste azul, menina veste rosa? Violencia e divisao sexual do trabalho/Boys wear blue, girls wear pink? Violence and sexual division of labor.

AutorParizotto, Natalia Regina

Introducao

O atual cenario politico no Brasil, marcado por uma ofensiva conservadora, da maior poder e voz a pessoas como a ministra da Mulher, Familia e Direitos Humanos (e tambem pastora) Damares Regina Alves, que, logo apos tomar posse de seu cargo, indicou: "iniciamos uma nova era no Brasil em que menino veste azul e menina veste rosa". (1) Tal fato renova nossa inspiracao em discutir como os "inofensivos" estereotipos de "homem" e "mulher" vigentes em nossa sociedade estao relacionados com a subalternizacao feminina, tanto na esfera domestica como no mercado de trabalho.

Este artigo e parte fundante de um estudo mais amplo no qual analisamos a implementacao da Lei Maria da Penha pelo Poder Judiciario na cidade de Sao Paulo (PARIZOTTO, 2016). Para tanto, foram entrevistadas cinco mulheres que tiveram uma ou mais audiencias referentes a processos judicializados diante de eventos de violencia domestica de genero. A pesquisa ocorreu no Centro de Referencia da Mulher Casa Eliane de Grammont e na Regional Leste II da Defensoria Publica do Estado de Sao Paulo.

Durante a pesquisa sobre a historia de vida das entrevistadas, a divisao sexual do trabalho despontou como uma categoria explicativa determinante para compreender suas historias, percalcos e estrategias de sobrevivencia. Desta forma, neste artigo, pretendemos apresentar alguns dos elementos coletados nestas entrevistas que demonstram a influencia da divisao sexual do trabalho na trajetoria das mulheres entrevistadas.

Divisao social e sexual do trabalho: as esferas da producao e reproducao podem ser separadas?

Todas as entrevistadas para a pesquisa em questao, exceto Diana (2), ao serem questionadas sobre seus empregos, abordaram certas dificuldades em conjugar a carreira profissional com as responsabilidades (nao compartilhadas com seus ex-maridos/companheiros) do trabalho domestico. Todas trabalhavam no setor de servicos e apenas Diana e Mariana eram contratadas formalmente. As demais auferiam renda atraves de trabalhos domesticos, temporarios, sazonais, sub-remunerados etc., o que Vaitsman (1994, p. 56) situou como a dupla invisibilidade do trabalho feminino: o trabalho desenvolvido na esfera domestica e o trabalho informal. Consequentemente, estas insercoes no mercado de trabalho resultaram mais superficiais e pior remuneradas do que as de seus ex-maridos/companheiros. Nao e dificil imaginar os impactos negativos desta experiencia na decisao de romper um relacionamento, assim como na constituicao da subjetividade destas mulheres. Subempregos, sub-remuneracoes nao geram a mesma experiencia de vida que empregos mais prestigiados e melhor remunerados, inclusive dentro do espaco familiar.

Segundo Marx e Engels (2011, p. 37), a primeira forma de divisao social do trabalho foi a divisao social do trabalho entre os sexos no interior da familia:

[...] a reparticao, e precisamente a reparticao desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e, portanto, a propriedade, a qual ja tem o seu embriao, a sua primeira forma, na familia, onde a mulher e os filhos/as sao os escravos do homem. Segundo Kergoat (2009, p. 67), a etnologia francesa foi precursora na utilizacao da categoria "divisao sexual do trabalho" como chave explicativa da organizacao da sociedade em familias. Tais pesquisadores, a epoca, compreendiam que haveria certa "complementariedade" entre as atividades designadas a cada sexo.

O antropologo e etnografo frances Clastres (1988, p. 75), ao descrever a populacao indigena Guaiaqui, referiu o ritual de entrada dos individuos a fase adulta da seguinte forma:

[...] o seu primeiro cuidado, logo que se integra na comunidade dos homens e fabricar para si um arco; de agora em diante membro 'produtor' do bando, ele cacara com uma arma feita por suas proprias maos e apenas a morte e a velhice o separarao de seu arco. Complementar e paralelo e o destino da mulher. [...] Primeira tarefa do seu novo estado e marca da sua condicao definitiva, ela fabrica seu proprio cesto. E cada um dos dois, o jovem e a jovem, tanto senhores e prisioneiros, um do seu cesto, o outro do seu arco, ascendem dessa forma a idade adulta. Enfim, quando morre um cacador, seu arco e suas flechas sao ritualmente queimados, como o e tambem o ultimo cesto de uma mulher: pois, como simbolos das pessoas, nao poderiam sobreviver a elas. Sendo assim, tornou-se claro que a designacao das atividades desenvolvidas para garantir a sobrevivencia do grupo estaria pautada na distincao biologica entre os individuos. Homens cacariam com seus arcos e mulheres coletariam com seus cestos. (3)

Ao contrario daquilo em que geralmente acreditamos, a divisao sexual do trabalho na antiguidade nao designava obrigatoriamente os homens a caca e as mulheres a coleta ou a agricultura. Segundo Saffioti (2004), ha registros de tribos onde as mulheres, inclusive gravidas, eram as responsaveis pela caca. Conforme a autora, e muito provavel que as maes que amamentavam seus bebes os levassem junto ao peito ou nas costas, e no momento da caca o choro das criancas afastasse os animais. Sendo assim, cre-se que as mulheres passaram a desenvolver as atividades de coleta e agricultura e os homens comecaram a cacar. Passou a tomar forma a domesticacao das mulheres.

A partir dos fundamentos fornecidos pela etnologia, as antropologas feministas foram capazes de demonstrar que ha uma distribuicao

social de atividades diferentes e desiguais entre os sexos que resulta de uma construcao socio-historica em beneficio dos homens. Segundo Kergoat (2009), os dois principios que organizam a divisao sexual do trabalho sao: a separacao das atividades ditas masculinas e femininas e a hierarquizacao entre estas (em detrimento das atividades ditas femininas).

A divisao sexual do trabalho, como uma categoria historica, sofreu adaptacoes nas mais diversas sociedades e ao longo do tempo. Conforme nos esclareceu Vaitsman (1994, p. 15), o avancar do capitalismo tambem editou a divisao sexual do trabalho:

Com a industrializacao e a separacao entre a unidade domestica e as atividades empresariais, a divisao sexual do trabalho na sociedade reorganizou-se. A familia privatizou-se, com a consequente exclusao das mulheres das praticas que, na construcao das sociedades modernas, passaram a ser exercidas numa esfera publica, que se transformou na medida nao so de poder, prestigio e riqueza, mas tambem da cidadania. Destarte, sob a divisao sexual do trabalho, no capitalismo seriam designadas aos homens as atividades atinentes ao espaco publico e as mulheres as atividades atinentes ao espaco privado:

Os primeiros associados aos homens, ao mundo publico e ao trabalho remunerado necessario para atender as necessidades materiais da familia. Os segundos associam-se as mulheres e as criancas, ao mundo privado do trabalho domestico e a satisfacao das necessidades afetivas da familia. [...] Devido ao seu papel ocupacional, o marido-pai, embora tem outras funcoes importantes em relacao a mulher e os filhos, surge como um 'lider instrumental da familia como um sistema'. (VAITSMAN, 1994, p. 16). Sendo assim, caberia prioritariamente as mulheres o trabalho referente a esfera reprodutiva e aos homens o trabalho relativo a esfera produtiva (somado as atividades que reputem prestigio social, como as praticas politicas, religiosas e militares).

Segundo Iamamoto e Carvalho (2009), a producao, em seu sentido amplo, incluiria as esferas de producao e reproducao. A primeira constitui as atividades concernentes as condicoes materiais de existencia. Ja a segunda seria a reproducao material (producao, distribuicao, troca e consumo), e, ao mesmo tempo, "as ideias e representacoes que expressam estas relacoes e as condicoes materiais em se produzem" (IAMAMOTO; CARVALHO, 2009, p. 30). Segundo Canoas (1995, p. 22):

A reproducao biologica e o processo de produzir e criar os filhos/as, indo, portanto, alem da fecundacao e do parto, inclui tudo o que se faz para o desenvolvimento fisico das pessoas, observando suas necessidades basicas...

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