A metamorfose da exceção

AutorNathalia Penha Cardoso de França
Páginas49-72
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Capítulo II
A METAMORFOSE DA EXCEÇÃO
O que veio a ser nomeado como estado de exceção é um modelo
que prevalece desde o governo de Luís Bonaparte e vai até o fim do século
XX, mais especificamente em 1989, com a queda do muro de Berlim.
Durante esse período, o autoritarismo manifestou-se por meio de
governos e estados de exceção que, sempre sob pretexto de combater
o inimigo, suspenderam os direitos individuais e o próprio Direito, ao
menos pelo prazo necessário ao enfrentamento desse inimigo.
Nesse primeiro momento, portanto, falamos de soberanias
excepcionais e de caráter provisório – ao menos no discurso –, que
subtraem os direitos da sociedade como um todo ou, em certos casos, de
determinados grupos sociais, apenas.
Vale ressaltar que esses governos de exceção, por serem em sua
maioria totalitários, tomam do poder não somente pela via do golpe militar,
como ocorreu na América Latina, mas também pela via democrática, como
é o caso do nazismo e do fascismo na Europa.
Entretanto, com o surgimento do neoliberalismo, que começa a
ser gestado a partir das décadas de 1960 e 1970, o capital financeiro passa
cada vez mais a assumir um papel central no capitalismo. Isso transforma,
aos poucos, os modelos de autoritarismo.
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NATHALIA PENHA CARDOSO DE FRANÇA
Isso se dá porque a experiência do nazismo, do fascismo e das
ditaduras militares, períodos históricos de pura barbárie, genocídio e
formas extremamente desumanas de se tratar os indivíduos, contrapôs
veementemente a ideia de estado de exceção à ideia de civilização.
No pós-guerra, conforme veremos no terceiro capítulo, consti-
tuiu-se um pacto humanístico e democrático que refunda o entendi-
mento de democracia. Os direitos de liberdade, integrados numa noção
de direitos humanos, deixam de ser mera declaração política e passam
a ser imposição jurídica superior na estrutura de Estado, por meio
das constituições rígidas, no plano interno, e, no plano internacional,
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e seus
consectários.
Após o trauma que a Segunda Guerra Mundial produziu, sobretudo,
no mundo ocidental, não havia condições políticas para se defender
ditaduras e formas autoritárias de governo, o que fez com que regimes de
exceção, nessa vertente clara e declarada, perdessem significativamente sua
capacidade de validação discursiva.
Contudo, o autoritarismo toma nova roupagem. Passa a se
manifestar sob uma nova fórmula, que são as medidas de exceção
presentes no interior das democracias, conforme veremos em Agamben,
Serrano e Goupy. Estados democráticos, nos quais estruturas próprias
da democracia são mantidas, passam a produzir medidas características
de regimes autoritários, elegendo e combatendo inimigos, suspendendo
direitos e estabelecendo um regime jurídico próprio da guerra na relação
entre Estado e indivíduo.64
64 Nesse sentido: AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: Homo sacer, II, 1. São Paulo:
Boitempo, 2004; SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na
América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016;
VALIM, Rafael. Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. São Paulo:
Contracorrente, 2017; GOUPY, Marie. “L’État d’exception, une catégorie d’analyse
utile? Une réflexion sur le succès de la notion d’État d’Exception à l’ombre de la
pensée de Michel Foucault”. Revue interdisciplinaire d’études juridiques, Bruxelas, vol.
79, n. 2, pp. 97-111, 2017; CASARA, Rubens. Estado pós-democrático. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017.

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