Implicações Sistêmicas da Súmula Vinculante

AutorRafael Benevides
CargoGraduando em Direito pela UNIFOR

I.

Em sua defesa da expansão da criatividade jurisprudencial nas sociedades modernas, Cappelletti detecta, a partir da adoção de um método "fenomenológico", a tendência evolutiva de convergência entre os sistemas civil law e common law1. Diferenças estruturais entre ambos os sistemas passam a ser relativizadas pela alteração do papel de juízes e cortes supremas. Não distante dessa experiência comum aos ordenamentos jurídicos ocidentais de países desenvolvidos, o sistema jurídico brasileiro segue a tendência de incorporação de institutos que remetem à tradição jurídica common law, sobretudo na visão do Direito como ato normativo judicial e nas regras pertinentes à metódica de controle normativo da doutrina do stare decisis.

Nesse sentido vale destacar a força normativa diferenciada que carrega o recente instituto da súmula vinculante (implementado pela Emenda Constitucional 45/2004), e as implicações sistêmicas geradas pelo seu uso. Mais do que uma solução institucional para um problema maior gerado pela obrigação de decidir do sistema jurídico (proibição do non liquet), a súmula vinculante aparece como verdadeiro pólo em torno do qual se estabelecem definições de um novo modelo de interpretação judiciária. Neste sentido, o presente trabalho pretende valer-se da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, notadamente em sua configuração pós- autopoietic turn2, como perspectiva para tratar de conseqüências de outro modo não suficientemente visualizadas a partir de outros prismas teóricos.

Contrariamente ao que diz o senso comum forense, a principal conseqüência da implantação da súmula vinculante não gira em torno da denominada celeridade processual. Na realidade, o uso cruzado de hierarquias administrativas, típicas de uma organização político-burocrática como o Judiciário, somada às variabilidades semânticas e retóricas presentes na metódica judiciária de aplicação do Direito, suscita uma série de questões acerca de como o uso da súmula vinculante pode vir a reforçar o funcionamento operacional do sistema jurídico. Para compreender tal implicação é preciso visualizar o Direito como estrutura de função social definida, dentro de uma concepção sociológica onde a comunicação é a operação recursiva, tendente a possibilitar a (re)construção do próprio sistema.

II.

Do ponto de vista da discussão acerca da legal indeterminacy no common law americano entre H.L.A. Hart e Ronald Dworkin, constatou-se que ambos construíram suas teorias baseados na concepção de que "ambiguity is the enemy of law"3. Hart, influenciado pela filosofia analítica de Wittgenstein, formula a idéia de que toda regra possui seu claro núcleo de significado, de um lado, e uma periferia ambígua, que abre espaço para open textures, de outro, gerando lacunas no âmbito textual de constituições, legislação ordinária, regras administrativas e decisões judiciais4. Daí a necessidade de determinar cânones ou regras de atuação que possam monitorar esse processo de seu preenchimento, que sobretudo o último autor irá buscar em critérios de validade universal ligados à reflexão moral5.

É possível ainda observar que o chamado "dualismo moderno" entre o plano de normas positivas e o de normas morais6, que surge com a característica da penetrabilidade adquirida pelo Direito, passa a representar ameaça real à chamada "indeterminabilidade" do sistema jurídico. Kelsen já detectara a existência de uma pluralidade de sistemas de moral que não poderiam ser condição para a validade de um ordenamento jurídico, mas tão somente um critério de justiça vigente7. Tampouco para Luhmann o Direito se deixa determinar por critérios externos à positividade. Com a freqüente judicialização dos conflitos, o juiz se veria cada vez mais desafiado a permanecer fiel à argumentação jurídica necessária à autonomia do Direito, evitando incorrer em decisões construídas por critérios não relacionados ao código operacional sistêmico.

Tal situação acaba por dilatar o problema das lacunas, tornando evidente a incapacidade do Direito em prever normativamente todas as situações de conflitos iminentes. Isto acaba gerando entre juízes e tribunais aquilo que Dworkin chamaria de theoretical disagreements about the law, ou seja, discordâncias teóricas no plano da interpretação da norma e de suas raízes (the grounds of law)8. Essas discordâncias, quando originadas nas instâncias primárias do judiciário, nascem a partir da tomada de uma perspectiva compatível com a controvérsia em questão, nos moldes de um hard-case.

Observa-se então dentro do sistema jurídico, conforme observa Luhmann, o claro aumento de complexidade interna9. As decisões judiciais primárias passam a abrigar programas normativos de consistência ainda não confirmada pelo núcleo sistêmico (a ser realizada pelos Tribunais), criando potenciais divergências entre si. Esta situação permite um descompasso entre o Direito e sua função sociológica de estrutura social estabilizadora de expectativas de comportamentos10. Surge aí o paradoxo: a formulação das normas jurídicas concretas passa a ampliar a seara de aplicação da norma, ao invés de delimitá-la, aumentando, de outro lado, gradativamente, seu grau de abstração: a diminuição da complexidade passa a implicar também seu aumento. Isto acontece, por exemplo, na atribuição comum de controle de constitucionalidade difuso que possuem todas instâncias do judiciário no ordenamento jurídico brasileiro.

III.

É a partir de tal hipótese que os requisitos constitucionais para a edição da súmula vinculante são atendidos: existência de controvérsia jurídica sobre matéria constitucional entre órgãos judiciários que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Sua edição permite a diminuição da heterogeneidade de interpretações na aplicação da norma afetada.

Na explicação sociológica de Luhmann, tal fato constitui uma forma comum de os Tribunais exercerem sua função de "desparadoxização" da tautologia sistêmica gerada. Isto porque no sistema jurídico autopoiético a "indeterminação"11 do Direito é característica de sua auto-organização12, i.e., imposição dos limites frente ao ambiente - ponto que marca a mudança de paradigma dentro da teoria dos sistemas com a substituição da diferença entre todo e parte pela entre sistema e ambiente13. O sistema, então apto para a auto-referência, passa a constituir seus elementos constituintes através de seus elementos constituintes14, numa circularidade autônoma que substitui a atribuição das normas a fundamentos extralegais ou a princípios puramente fictícios, como a Grundnorm de Kelsen15.

Em publicação póstuma, Luhmann discute os modos de operacionalização do paradoxo do Direito através do uso da metáfora do décimo segundo camelo, onde sua (des)necesidade simboliza o problema da vital operacionalização do sistema auto-referencial em face de sua validade16, ressaltando que a externalização do paradoxo constitui solução intrinsecamente insatisfatória:

Hans Kelsen identifica o décimo segundo camelo como norma fundamental sob a pressuposição de que a teoria do direito seria uma ciência. Esta tentativa encerra o problema mais de perto. Entretanto, a validade unicamente hipotética de tal norma ou sua fundamentação por (um argumento de) indispensabilidade construtiva gera essa ambivalência própria do camelo emprestado (Leihkammel), e, por isso, não necessita ulteriormente de grande ajuda. (A validade da norma fundamental) deve-se a uma instância exterior, que neste caso é a ciência, e que pode dessa forma permanecer (como) uma hipótese. Não obstante ela continuar a possuir uma função normativa diretriz de operações17.

Estratégias para gerir o paradoxo da auto-referência, propostas pelo critical legal studies movement e por autores como Hart, Ophuels e Fletcher, possuíam em comum a mesma constatação de que o problema residia nas construções peculiares do pensamento jurídico18. Para Luhmann, contudo, a realidade possui, independentemente mesmo do conhecimento humano e da sua apreensão cognitiva, uma estrutura circular. A transferência do "paradoxo do mundo do pensamento sobre o direito para o mundo da realidade social do direito"19 se apresenta como estratégia para lidar com a questão da auto-referência, fazendo da circularidade, antes considerada pensamento proibido, um modelo fecundo e heuristicamente válido.

Dentro da teoria, essa assimetria peculiar da auto-referência se apresenta em toda e qualquer operação do sistema jurídico, utilizando orientações normativas e cognitivas simultaneamente:

(...) there are also asymmetries in the legal system. No system can get by without them, for this would mean existing as pure tautology in total indeterminability. However, all asymmetries must be introduced into the legal system via cognitive orientations, and they thus articulate willingness to learn20.

"As orientações normativas servem a autopoiese do sistema, e as orientações cognitivas servem a coordenação deste processo com o ambiente...

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