Mídia, crime e justiça nos Estados Unidos

AutorClaudio Bidino
CargoMestre em criminologia e justiça criminal pela universidade de Oxford
Páginas36-56
36 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 660 I OUT/NOV 2019
DOUTRINA JURÍDICA
Claudio Bidino MESTRE EM CRIMINOLOGIA E JUSTIÇA CRIMINAL PELA UNIVERSIDADE DE OXFORD
MÍDIA, CRIME E JUSTIÇA
NOS ESTADOS UNIDOS
I
A GRANDE REPERCUSSÃO DE CASOS CRIMINAIS EXPÕE A
INEFICÁCIA DE MECANISMOS JUDICIAIS DISPONÍVEIS PARA
IMPEDIR A INFLUÊNCIA DA IMPRENSA SOBRE O JÚRI
O.J. Simpson, Terry Nichols, Lyle and
Erik Menendez (os irmãos Menen-
dez), Ted Kaczinski, Timothy McVei-
gh, Oliver North, Pamela Ann Smart,
John Poindexter, Jean Harris and
Leona Helmsley; o que todas essas pessoas têm
em comum?1 A resposta é simples. Todas elas
foram processadas nos Estados Unidos pela
prática de crimes que despertaram grande in-
teresse da população e atraíram uma intensa
cobertura da mídia. Os seus casos constituem
claros exemplos do que, em inglês, é conhecido
por high-prof‌ile, supersized ou nationally noto-
rious criminal cases.
Toda vez que um caso criminal de grande
repercussão emerge nos Estados Unidos, vem
à tona uma antiga preocupação com os even-
tuais efeitos da mídia sobre a administração da
justiça. Em síntese, o que se teme é que as pu-
blicações desfavoráveis ao acusado, que, nesses
casos, normalmente são veiculadas à exaustão,
venham a inf‌luenciar negativamente o júri, co-
locando em risco os direitos constitucionais do
acusado ao devido processo legal e à realização
de um julgamento justo perante um júri impar-
cial (direitos, estes, consagrados na quinta e na
sexta emenda à constituição norte-americana).
Nesse sentido, questiona-se se é possível ga-
rantir a imparcialidade dos jurados nas cir-
cunstâncias em que uma boa parte da popu-
lação é contínua e acentuadamente exposta a
toda sorte de publicidade negativa (sendo sub-
metida, por exemplo, à apresentação de provas
processualmente inadmissíveis, reportagens
que denigrem o caráter do réu, prejulgamentos
promovidos por supostos experts e entrevistas
sensacionalistas realizadas com as vítimas do
crime, seus parentes, amigos e simpatizantes).
O sistema jurídico norte-americano, natu-
ralmente, dispõe de alguns mecanismos que
buscam assegurar a imparcialidade do júri em
tais condições extremas. Com efeito, os tribu-
nais têm alternativas que se destinam a: (i) im-
pedir que pessoas parciais sejam selecionadas
para compor o júri; (ii) neutralizar as eventu-
ais preconcepções das pessoas que tiverem
sido selecionadas para fazer parte do júri;
(iii) blindar os jurados de publicações poten-
cialmente danosas veiculadas no decorrer do
julgamento; (iv) obstar a publicação de infor-
mações potencialmente nocivas pela mídia;
ou (v) reverter decisões judiciais tomadas por
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REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 660 I OUT/NOV 2019
Toda vez que um caso criminal de grande repercussão emerge
nos Estados Unidos, vem à tona uma antiga preocupação com os
eventuais efeitos da mídia sobre a administração da justiça
jurados manifestamente parciais. Todavia, na
prática, nota-se que nem todos esses mecanis-
mos são igualmente utilizados.
Desde logo, cumpre observar que os tribu-
nais relutam em se valer de qualquer expe-
diente que vise a restringir o livre exercício das
atividades da imprensa, rejeitando, assim, as
alternativas que procuram limitar a publicação
de informações potencialmente prejudiciais.
Preferem, os tribunais, optar por mecanismos
destinados a neutralizar (ou, ao menos, ameni-
zar) o impacto das publicações da mídia sobre o
júri. Como bem observa Brandwood, essa opção
ref‌lete não apenas a deferência norte-america-
na aos valores fundamentais consagrados na
primeira emenda à constituição (nomeadamen-
te, a liberdade de expressão e a liberdade de im-
prensa), mas também um certo ceticismo acer-
ca dos potenciais efeitos nocivos da imprensa2.
Não é dicil encontrar, entretanto, estudos
que criticam abertamente essa postura, muitos
dos quais sugerem que os Estados Unidos su-
perestimam os valores constitucionais consa-
grados na primeira emenda à constituição em
detrimento daqueles positivados na quinta e
sexta emenda (i.e. garantia ao devido processo
legal e garantia a um julgamento justo por um
júri imparcial). Assim, argumenta-se que os re-
médios judiciais convencionalmente adotados
não são suf‌icientes para que se mantenha a
imparcialidade do júri em níveis constitucio-
nalmente apropriados. Fala-se, por isso, que “os
direitos e liberdades dos indivíduos estão sen-
do sacrif‌icados em prol dos interesses comer-
ciais da imprensa de massa e da curiosidade
indolente da maioria”. Para os que comungam
dessa perspectiva, uma solução somente pode-
rá ser alcançada por meio de uma abordagem
proativa, que procure limitar as atividades da
imprensa, como uma forma de evitar a publi-
cação irresponsável de provas processualmen-
te inadmissíveis, bem assim de qualquer outro
material potencialmente danoso3.
É, nesse contexto, que o presente estudo se
situa. Então, o que aqui se pretende investigar
é a própria efetividade da corrente resposta da
justiça norte-americana às consistentes amea-
ças postas pelos veículos de comunicação nos
casos criminais de grande repercussão. Quer
dizer, pretende-se inquirir se a atual resposta
ofertada pelos tribunais é bem-sucedida em as-
segurar aos réus um julgamento justo, realiza-
do por um júri imparcial (tal como exigido pela
Constituição); ou se, talvez, chegou a hora de os
tribunais abandonarem seus próprios mitos e
preconceitos, passando a levar mais em consi-
deração as demais alternativas existentes (em
particular, as que veem a restrição das ativida-
des dos meios de comunicação com bons olhos).
1. A PUBLICAÇÃO DE INFORMAÇÕES
DESFAVORÁVEIS AO RÉU ANTES DO
JULGAMENTO É CAPAZ DE AFETAR A
IMPARCIALIDADE DOS JURADOS?
Desde a década de 1950, em sequência aos
trabalhos de Kline e Jess (1966), Tans e Chaf‌fee
(1966) e Simon (1966)4, um crescente número
de estudos tem se preocupado em investigar
os efeitos das atividades da imprensa sobre a
imparcialidade dos jurados. Enquanto alguns

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