A Migração Haitiana no Brasil sob a Ótica da Proteção Trabalhista

AutorRivana Barreto Ricarte de Oliveira
Ocupação do AutorDoutoranda do programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Guilherme Assis de Almeida
Páginas143-154

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Introdução

O dilema enfrentado quanto à questão migratória não é localizado, não é privilégio temático de uma determinada região ou de determinado país no mundo. Na verdade, a migração, como movimento inerente à natureza humana, é um fenômeno antigo, pois desde os primórdios os homens se movem em busca de melhores condições de vida e sobrevivência. Dados da Organização Internacional de Imigração (OIM) apontam que existem 232 milhões de pessoas migrantes no mundo1.

Falar de processos migratórios não é, portanto, tema novo, o que está mudando ao longo dos anos é o enfoque e a importância que vem sendo dada à migração. Não resta dúvida que, pensar na composição atual dos Estados, na crise do processo democrático que as sociedades vivem, bem como na chamada crise do sistema capita-lista, exige reflexão acerca do processo migratório que se enfrenta. A proteção dos direitos a partir da ótica da questão migratória envolve discussão de caráter transnacional e essencialmente de fronteira, que coloca em questionamento a figura do próprio Estado Nacional.

As diversas fases de desenvolvimento das sociedades implicaram diretamente mudança da imagem que se guarda sobre a migração. Desde a colonização, passando pela revolução industrial e o surgimento do trabalho assalariado, até chegar à fase das grandes guerras e da globalização, há diferentes imagens sobre a migração. O impacto da globalização neste processo tem especial relevância, porque, com ela, a economia tornou-se mun-dial e, muito embora, em alguma medida, as fronteiras tenham sido apagadas pelo capital especulativo, não o foram para os seres humanos. Uma grande parte da população tornou-se marginalizada, sem acesso a serviços básicos de saúde, educação, emprego, inaugurando um fluxo massivo de pessoas que fogem da fome e da miséria. Daí se afirmar que um dos grandes impasses ao direito de migração atualmente tem sido as políticas de restrições à entrada de imigrantes ao trabalho, em razão da crise econômica que o mundo vivencia.

O Brasil, apesar da forte cultura histórica de país receptivo à entrada de imigrantes, visto que sua formação cultural e social foi notadamente construída por meio da imigração de diversas nações que contribuíram e contribuem para a formação social e para o desenvolvimento econômico do país, ainda se mostra com uma postura tímida em relação ao crescente problema inter-nacional, que é a imigração indocumentada, e à situação desses estrangeiros quando no território nacional.

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É necessário refletir sobre as ações de política externa e interna que o Estado brasileiro vem praticando na acolhida dos migrantes e em que medida ele esta apto a promover e garantir os direitos humanos destes grupos populacionais.

Sob esta ótica, o presente texto tem como escopo discutir o tema do trabalhador migrante brasileiro, a partir do fluxo migratório haitiano iniciado em 2011. Para a melhor sistematização das ideias aqui propostas, o artigo foi dividido em três partes: (i) Contextualizando os movimentos migratórios no Brasil, cuja ideia central é introduzir a discussão quanto ao tratamento da questão migratória, resgatando um breve aparato histórico que auxilie a compreensão da atual etapa da movimentação de pessoas, com ênfase nos documentos internacionais e nacionais protetivos. Em seguida, parte-se para o aprofundamento do tema haitiano, em (ii) As diversas etapas de acolhimento do migrante haitiano no Brasil, aborda-se o modo como os órgãos públicos brasileiros foram afetados pela demanda; e, na parte final, intitulada (iii) O impacto da concessão do visto humanitário como mecanismo de acesso e proteção ao trabalho pretende-se, após se ter delineado alguns aspectos fundamentais da questão, analisar o perfil do trabalhador haitiano migrante hoje e qual o impacto, na área trabalhista, da solução adotada pelo governo brasileiro até então. Em sede de conclusão, será proposto um balanço da reflexão empreendida.

1. Contextualizando os movimentos migratórios no brasil

A liberdade de trânsito e residência encontra-se prevista, de um lado, no art. 13, inciso 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar, e, por outro, no art. 12 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que adverte que toda pessoa terá direito de sair livremente de qualquer país, inclusivamente do próprio, além de estar praticamente em todas as constituições modernas. Kant (1784), fundado na noção de cosmopolitismo, afirmava que todos deveriam ter o poder de percorrer os quatro cantos do mundo. Na verdade, a movimentação de pessoas sempre existiu e nunca vai deixar de existir. No passado, as causas migratórias ocorreram por uma ordem natural e motivaram principalmente o deslocamento do homem primitivo que assumiu sua condição nômade. Hoje a história é bem diversa e as razões que desencadeiam processos migratórios são, frequentemente, multifatoriais, conjugando aspectos políticos, ambientais, econômicos e sociais.

De acordo com Franco (2014, p. 133), "[...] é imperioso reconhecer que a imigração não é um simples aspecto periférico na sociedade, mas sim um fator estrutural, intrincada em praticamente todas as formas atuais de comunidade humana". Jubilut e Apolinário (2010), por sua vez, explicam que o movimento de pessoas hoje abrange o deslocamento dos refugiados, migrantes econômicos e migrantes em sentindo amplo. Além disso, o que vem mudando também é o enfoque e a importância que vem sendo dada à questão migratória. No mesmo sentido, Durand e Lussi ressaltam que:

Os fluxos migratórios passaram a ser vistos, não mais como fluxos bilaterais e com prevalência unidirecionais, mas como realidades transnacionais, incluindo deslocamentos, atividades e espaços transnacionais. A nova perspectiva assume que as migrações internacionais incluem, além dos deslocamentos entre um país de origem e um de destino, variadas formas de comunicação, circulação, relação e gestão de bens, serviços e informações em nível transnacional, incluindo também outros países. (DURAND E LUSSI, 2015, p. 47)

A imagem inicial advinda da colonização dava à migração um enfoque de expansão, as grandes colonizações estavam calcadas no negócio de escravos que, embora não seja estudado sobre este viés, já trazia em si a questão migratória. Situação semelhante do ponto de vista do olhar positivo da migração ocorre com a conquista e ocupação do interior do Brasil, em que a migração representava o movimento do desenvolvimento. Nesta mesma linha, a revolução industrial, junto com o trabalho assalariado, inaugurou uma outra fase migratória positiva, consagrando políticas que resultaram no crescimento econômico para o país e refletiam o ideal do sonho de pessoas que saiam do seu lugar buscando uma vida melhor na América, evidenciando-se, assim, a forte relação entre a migração e a ordem trabalhista e econômica, e justificando que a matéria tenha sido tratada, de alguma maneira, por algumas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Há, contudo, outros aspectos que precisam ser pontuados. Com o fim das duas grandes guerras mundiais, uma nova etapa migratória ganhou espaço; aqueles perseguidos necessitavam migrar para garantir sua sobrevivência em meio aos ataques. Inaugurou-se a etapa de proteção aos refugiados, com a construção de todo um aparato protetivo em sede da Organização das Nações Unidas-ONU (criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados-ACNUR, que pa-

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trocinou a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951)2. A Convenção de 1951 e a ampliação que lhe foi dada com o Protocolo de 1967 reconheceu a proteção do refúgio a qualquer pessoa que, em virtude de fundado medo de sofrer perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, participação em determinado grupo social ou convicção política tivesse que deixar seu pais em busca de outro para sobreviver. Além de definir o conceito de refugiado, a convenção previu também que o tratamento conferido ao migrante observasse critérios de proteção integral do ser humano, garantindo o respeito a todos os direitos próprios do ser humano, como direito à saúde física e mental, à educação, à moradia, à alimentação, à segurança, e ao trabalho, em consonância com o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

A migração, entretanto, como dito, é inerente à pessoa humana e, por isso, não se esgota nas possibilidades previstas em lei. A ocorrência cada vez mais frequente de desastres ambientais e a progressiva degradação de recursos ambientais essenciais, comprometendo gravemente a vida e a segurança de indivíduos, grupos e comunidades inteiras em todo o mundo, a ponto de inviabilizar a sobrevivência em seus locais de origem, vem determinando novos fluxos migratórios que ensejam novas situações jurídicas que carecem de regulação pelo Direito Internacional (RAMOS, 2011, p. 11).

Se, por um lado, verifica-se que é necessário traçar parâmetros claros para melhor identificação dos grupos migratórios de modo a oferecer proteção mais sólida, por outro, a globalização, ao ampliar e solidificar a ideia de trânsito de pessoas entre as diversas partes do mundo, por motivos cada vez mais diferentes e multifacetados, impõe a necessidade de repensar sobre a figura do Estado Nacional. O Estado Nacional está cada vez mais fraco e globalmente...

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