Grandes projetos minerários e comunidades tradicionais na Amazônia: impactos e perspectivas

AutorMarlon Aurélio Tapajós Araújo; Patrícia de Sales Belo
CargoUniversidade Federal do Pará (UFPA)
Páginas265-277

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1 Introdução

A história das comunidades tradicionais e da Amazônia está marcada pelo que se projetou para a Região Amazônica e para os que nela habitam. Os grandes planos para a Amazônia foram pensados fora dela, por pessoas que pouco levaram em conta a peculiaridade desse conjunto de realidades, e, sobretudo, em favor de pessoas que não vivem a realidade da Região, não sentindo as consequências do planejamento que se faz de cima para baixo. Tudo isto com enorme e crescente déficit para a Região e para seu povo. Com acerto, informa Paula (2008, p. 17):

Apresenta-se a Amazônia como, até aqui, inesgotável reservatório de recursos naturais e de geração de super lucros, como espaço, recorrentemente, mobilizado como plataforma de acumulação primitiva de capital desde o ciclo sistêmico de acumulação holandês, no século XVII.

As drogas do sertão no início da colonização da Amazônia; a borracha da bèlle époque, no fim do século XIX, e a do esforço nacional de produção para atender aos países Aliados na 2ª Guerra Mundial; e, atualmente, os recursos florestais minerários em larga escala e a biodiversidade, além do conhecimento que lhe está associado, constituem os principais episódios interventivos a expressar, fielmente, o lugar ocupado pela Amazônia na articulação econômica global, desde as Grandes Navegações do século XV até os Grandes Projetos do século XX.

Este artigo visa discutir a interação, em sua fase atual, entre os Grandes Projetos mínero-metalúrgicos e as Comunidades Tradicionais na Amazônia. Especificamente, tratar-se-á de analisaras primeiras impressões decorrentes de visita exploratória ao campo de pesquisa. Serão objetos deste estudo os impactos socioambientais e as perspectivas decorrentes das relações travadas entre as Comunidades Tradicionais de Juruti Velho, no Município de Juruti (Pará) e o Grande Projeto de exploração de bauxita, comandado pela ALCOA Inc., com início da operação previsto para o segundo semestre de 2009, mas cuja implantação da infra-estrutura ocorre desde 2005, ano em que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará (SEMA/PA) deferiu licença de instalação ao empreendimento minerário.

Neste sentido, é importante ressaltara luta que as Comunidades Tradicionais de Juruti Velho vêm travando desde que a empresa ingressou na área de exploração, para estudos, em 2002. De acordo com o cronograma original, a empresa deveria ter começado a exploração do minério em 2007, porém as diversas demandas ambientais e sociais refrearam o grande "empreendimento". Suas reivindicações principais giram em torno do trinômio identitário amazônico por excelência: água, terra e floresta. Nisso, consubstancia-se a identidade étnico-política das comunidades tradicionais de Juruti Velho.

Para tanto, recorreu-se ao estudo do conceito de comunidades tradicionais, formulado pelas ciências sociais, especialmente pela antropologia, bem como sua projeção na legislação federal, na qual se encontra estabelecida a denominada "Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para os Povos e Comunidades Tradicionais".

A seguir, far-se-á um estudo do que se compreende como Grandes Projetos, especialmente os sediados na Amazônia, tendo em conta a noção de acumulação capitalista na Amazônia e o papel que a esta Região e às comunidades tradicionais é imposto por quem tem o "poder" de pensar e planejar o futuro e o destino da Amazônia e dos amazônidas.

E, finalmente, avaliar que elementos permitem às comunidades tradicionais o exercício de sua capacidade de reorganização política e econômica, frente aos impactos gerados por estes Grandes Projetos, (re)criando perspectivas para a sua existência e permitindo a contínua redefinição de sua identidade política.

2 Povos e Comunidades Tradicionais Quem são?

Em clássico texto sobre o tema, Diegues (1994, p.79) elenca características que ajudam a identificar quem seriam os povos e comunidades tradicionais, no qual se evidencia: a) dependência da relação de simbiose entre a natureza com os quais constrói um modo de vida; b) conhecimento aprofundado, estratégico e o manejo destes recursos naturais e seus ciclos. c) moradia e ocupação do território por várias gerações e com uma noção de "território" pautada no espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) reduzida acumulação do capital com ênfase nas atividades de subsistência, ainda que a produção de 'mercadorias' possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria uma relação com o mercado; evidente importância dada à unidade familiar e aos mitos e simbologias associados à caça, pesca e atividades extrativistas.

No entanto, em sua maioria, as características enunciadas nos permitem fazer a busca destas comunidades e identificá-las quando se autoafirmam e/ou são assim entendidas por pesquisadores e grupos que com elas tomam contato.

De todo modo, a legislação federal brasileira, nomeadamente o Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, em seu art. 3a, inciso I, assim definiu povos e comunidades tradicionais:

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, quePage 267 ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

De maneira bem sintética, esta definição contempla várias das características enumeradas por Diegues (1994). A definição legislativa foi fruto de intensos debates, que precederam, também, e mais decisivamente, a aprovação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais1, que foi instituída pelo Decreto Federal citado.

É importante, neste passo, registrar que não se pode mais falar em povos e comunidades tradicionais isolados, afastados do mercado ou como povos primitivos ao qual o "desenvolvimento" não chegou. É necessário frisar que, para os fins pretendidos nesse trabalho, a compreensão do vocábulo tradicional parte da perspectiva de Almeida (2006, p. 9-11) ao pontuar que:

Embora a noção de tradição [bem como os termos daí derivados, em forma e significação] apareça em textos clássicos associada ao postulado de 'continuidade', conforme sublinha Foucault in 'Resposta ao Círculo Epistemológico' (1968), importa sublinhar que o termo 'tradicional' da expressão 'povos tradicionais', aqui frequentemente repetida, não pode mais ser lido segundo uma linearidade histórica ou sob a ótica do passado ou ainda como uma 'remanescencia' das chamadas 'comunidades primitivas' e 'comunidades dosmésticas' [...]. O chamado 'tradicional', antes de aparecer como referência histórica remota, aparece como reivindicação contemporânea e como direito envolucrado em formas de autodefinição coletiva". [...]. Deste ponto de vista, além de ser do tempo presente, o 'tradicional' é, portanto, social e politicamente construído". "Ao problematizar a historicidade da 'tradição' e reinterpretá-la criticamente estamos de fato produzindo uma análise arqueológica, porquanto a libertamos da noção de passado, remetendo-a para os conflitos contemporâneos.

As comunidades tradicionais, portanto, são sujeitos historicamente situados, que intervêm, decisivamente, em um processo histórico de afirmação da diversidade social, intervenção cuja importância já não pode ser ignorada, como costumava ocorrer ou como outros segmentos sociais gostariam que se desse2.

Sua existência social e política reafirma-se diuturnamente, inclusive em seu aspecto político, e isso torna a luta das comunidades tradicionais uma luta social, não só por espaço na sociedade, mas por reconhecimento da legitimidade de disputar a hegemonia de um modo de vida próprio nas circunstâncias em que historicamente o construíram e que lhes é vital, tendo-se mostrado também vital a outras grupos sociais, aos quais o modo de vida das comunidades tradicionais parecia não influenciar, sob nenhum ponto de vista.

Assim, faz-se necessário abandonar o romantismo em torno do que são as comunidades tradicionais e reconhecer-lhes a importância que apresentam no cenário sociopolítico amazônico, valorizando o homem/comunidade, o qual supõe e afirma a sua própria diversidade, entendendo-a em sua complexidade.

É necessário romper com essa visão colonial sobre os povos que habitam a Amazônia, no sentido de que seu provável primitivismo os fadaria à incorporação ao modo de vida do restante da sociedade nacional ou os desagregaria irremediavelmente. Já não é assim, nem será, com a facilidade que se imagina.

O mesmo discurso foi utilizado em relação aos índios, e o que se vê e se viu, é que a política indigenista fundada no aculturamento e na progressiva absorção pela sociedade nacional dos povos indígenas, não só fracassou, como também demonstrou seus destrutivos efeitos para os povos indígenas.

3 Os grandes projetos na Amazônia: aspectos históricos e atual configuração

Os grandes projetos que se implantaram na Amazônia, dispuseram de uma atrativa política governamental: incentivos fiscais, baixos preços pagos pelo bem extraído (minerais e outros), baixa qualificação da mão de obra e, por consequência, salários irrisórios, entre outras vantagens.

A compreensão dos Grandes Projetos na Amazônia, e suas inúmeras consequências, demanda a indispensável tarefa de realizar uma análise histórica do processo de implantação destes empreendimentos na região amazônica.

A partir do século XVI, evidenciou-se o primeiro problema do qual padeceria a Amazônia: seus supostos "descobridores". Desde o termo do século XV, europeus, principalmente portugueses e espanhóis, lançam-se nos oceanos Pacífico, Índico e...

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