O Ministério Público no contexto da reforma trabalhista: atuação em defesa da Constituição

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas105-110

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1. O constitucionalismo do pós-guerra e os direitos sociais A Constituição brasileira de 1988

O destaque concedido pelo Constituinte de 1987/1988 ao mundo do trabalho não pode ser medido apenas pela quantidade e/ou diversidade de preceitos ligados ao direito do trabalho. Um dado muito importante no estudo do constitucionalismo contemporâneo está ligado ao que se pode chamar de “topografia constitucional”. Qual é o lugar dos direitos na arquitetura do texto? Que tipo de sequência ordenada caracteriza a narrativa constitucional?

Já no art. 1º da Constituição da República, para além da presença da expressão “trabalho” (que vem acompanhado da “livre iniciativa”, numa típica solução de compromisso de uma Assembleia composta por representantes com interesses bastante distintos), é possível aferir a presença do trabalho humano (e da necessidade de sua proteção) no inciso III, referente à dignidade da pessoa humana, assim como no art. 3º, inciso I, voltado à construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” e também no inciso III, cujo objetivo é o de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Logo adiante, no art. 6º, o direito ao trabalho é apresentado como um dos direitos sociais, sendo que o art. 7º enumera o catálogo dos direitos de todos os trabalhadores urbanos e rurais. O art. 8º cuida da organização sindical e o art. 9º estabelece, de forma clara e insofismável, o direito de greve. É importante frisar que todos esses dispositivos estão inseridos no Título II da Constituição, destinado aos direitos e garantias fundamentais.

Essa centralidade da proteção ao trabalho humano modifica substancialmente o tratamento do tema na história constitucional brasileira. Os direitos conectados ao mundo do trabalho vinham sendo apresentados, nas constituições anteriores, na seção destinada à ordem econômica, da qual eram parte indispensável. Essa transformação, contudo, não chega a ser inédita. Ela está inserida num contexto internacional do constitucionalismo pós-1945, que se manifestou especialmente em países europeus que ressurgiam da experiência da guerra (Itália e França) ou que lograram superar regimes ditatoriais (Espanha e Portugal) 3. As constituições desses países – em pleno vigor nos dias atuais – se caracterizam pelo protagonismo da proteção ao trabalho humano.

Essa característica aparece de modo mais evidente da Constituição italiana, promulgada em 1947. Segundo o texto do art. 1º, voltado aos princípios fundamentais da Constituição, “A Itália é uma república democrática, fundada no trabalho”. Aqui a topografia tem um papel crucial. Apenas depois do trecho sobre o trabalho, no próprio art. 1º vem então enunciada a clássica formulação sobre o exercício e titularidade da soberania: “A soberania pertence ao povo, que a exercita nas formas e limites da Constituição”4. O referente inicial, portanto, é o trabalho.

O caso francês é mais complexo, porque envolve a leitura de duas constituições diferentes. No imediato pós-guerra foi promulgada a Constituição de 1946 (da assim chamada IV República), que foi substituída pela Constituição de 1958 (fundadora da V República, ainda em curso), redigida em meio à repressão contra o movimento de independência da Argélia, então colônia francesa. O texto de 1958 não contém sequer uma declaração de direitos. Contudo, ele incorpora na sua estrutura alguns outros documentos, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e o preâmbulo da Constituição de 1946, É o que os franceses chamam de “bloco de constitucionalidade”, formado pelos citados documentos acrescidos da Carta do Meio Ambiente de 20045. É interessante, nesse contexto, comparar a incidência da expressão trabalho na Constituição de 1958 e no preâmbulo de 1946. Na Carta Política de 1958, extirpada do restante dos documentos do bloco de constitucionalidade, a palavra surge apenas uma vez em

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toda a extensão do texto, no qual fica estipulado que a regulação do direito do trabalho ocorrerá por meio de lei (art. 34). Se acres-centarmos o preâmbulo da Constituição de 1946, então surgirão mais outras seis ocorrências do termo, sendo a principal aquela que determina que “Todos têm o dever de trabalhar e o direito de obter um emprego”, seguida de outras garantias associadas ao exercício do trabalho6.

Os casos de Portugal e Espanha guardam certa similaridade no tratamento do tema do trabalho. Ainda que os processos constituintes dos dois países tenham sido muito diferentes – na Espanha, tratou-se de uma constitucionalização marcada pela transição e conciliação entre partidos de orientações ideológicas bastante díspares, enquanto que em Portugal a elaboração da constituição ocorreu após a eclosão de uma revolução liderada por jovens oficiais do Exército muito influenciados por doutrinas ligadas ao materialismo histórico –, o fato é que a centralidade do mundo do trabalho fica bastante evidenciada nas duas experiências constituintes.

Na Espanha, ficou deliberado no art. 40, item 1, que “Os poderes públicos promoverão as condições favoráveis para o progresso social e econômico e para uma distribuição mais equitativa da renda regional e pessoal, no marco de uma política de estabilidade econômica”. Prossegue então o dispositivo: “De forma especial [os poderes públicos] realizarão uma política orientada ao pleno emprego”7.

A Constituição Portuguesa de 1976, como é sabido, sofreu várias e profundas revisões constitucionais ao longo do tempo, sendo a primeira em 1982 e a última em 2005. Muitos dispositivos que denotavam uma influência dos regimes de socialismo real existentes na época tiveram de ser redimensionados após a decisão de Portugal de ingressar na União Europeia. Mesmo assim, foi conservada, em todas as sete revisões realizadas até aqui, a seguinte redação, ora localizada no art. 58º do texto consolidado em 2005: “1. Todos têm direito ao trabalho. 2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado pro-mover: a) A execução de políticas de pleno emprego”8.

Assim, fica claro que o constituinte originário de 1987/1988, em sua decisão de conferir centralidade à proteção do trabalho humano, se inseriu num processo de constitucionalização e protagonismo do mundo do trabalho que já vinha de processos constituintes realizados em vários países da Europa Ocidental. Essas experiências do direito comparado tinham pontos de contato com a experiência brasileira, particularmente o fato de que as respectivas constituições foram escritas após a superação de regimes autoritários, como já mencionado.

2. O Ministério Público do Trabalho como integrante do Sistema de Justiça

Essa rápida recapitulação permite antever a completa transformação que se operou em relação ao papel social e institucional do Ministério Público do Trabalho após a promulgação da Constituição da República de 1988. Como já ressaltado por um dos autores em texto destinado à reflexão sobre o MPT, a Carta de 1988 reconfigura a instituição de modo radical9.

Se antes a atuação como custos legis – ou, mais remotamente, o ajuizamento de dissídios coletivos de greve e a fiscalização de eleições sindicais – eram os campos em que mais se notava a presença do MPT, a partir de 1988 e de 1993 (quando foi editada a Lei Complementar n. 75), operou-se uma transformação. O MPT passou a instaurar inquéritos civis e a propor ações civis públicas em defesa dos interesses metaindividuais ligados ao mundo do trabalho – que são inúmeros e perpassam todo o espectro dos interesses que suplantam a esfera individual: difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Há várias razões para isso. Uma das principais está relacionada com a promulgação da Constituição da República de 1988. A leitura do texto constitucional revela que, para além da centralidade dos direitos sociais, de que já tratamos no item anterior, houve também uma redefinição do Sistema de Justiça ligado ao mundo do trabalho. A redação do art. 114 significou...

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