Ministério PÚBLICO De São Paulo V. Município De Aparecida/SP

AutorLaerte Fernando Levai
Páginas116-179
116 | Revista Brasileira de Direito Animal, e-issn: 2317-4552, Salvador, volume 14, n. 03, p.116-179, Set-Dez 2019
EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A)
DE DIREITO DA __VARA JUDICIAL DA COMARCA DE
APARECIDA.
Eu tenho pelos animais um respeito egípcio,
penso que eles têm uma alma..., e que eles
sofrem conscientemente as revoltas
contra a injustiça humana.
Já vi um burro suspirar como um justo depois
de brutalmente esbordoado por um carroceiro...
JOSÉ DO PATROCÍNIO (1853-1905)
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, pelo Promotor de Justiça do
GAEMA - Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Núcleo Paraíba do Sul) que
esta subscreve, no uso de suas atribuições legais, com fundamento nos artigos 127 caput, 129
inciso III e 225 § 1º, incisos I, II, IV e VII da Constituição Federal, no artigo 2º § 3º do Decreto
24.645/34 (Medidas Tutelares a Animais), nas Leis federais nº 6.938/81 (Política Nacional do
Meio Ambiente) e nº 7.347/85 (Ação Civil Pública), no artigo 193 inciso X da Constituição
Estadual paulista, no artigo 32 da Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), nos artigos 25
inciso IV e 26 inciso I da Lei nº 8.625/93 e nos artigos 103, inciso VIII e 104 inciso I da Lei
Complementar Estadual nº 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público), na Lei Estadual nº
11.977/2005 (Código de Bem-Estar Animal) e no artigo 177 da Lei n° 13.105/15 (Código de
Processo Civil), considerando ainda os termos dos artigos 29 caput e § 3º, inciso I da Resolução
SMA nº 48/14 (penalidades administrativas para maus-tratos em animais) e o Ato Normativo nº
1091/2018-PGJ, de 19/07/2018, vem respeitosamente perante Vossa Excelência propor, sob o
rito ordinário e devidamente considerado o regramento jurídico-processual da responsabilidade
civil objetiva, a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL
de viés abolicionista contra o MUNICÍPIO DE APARECIDA, pessoa jurídica de direito público com
sede na Rua Professor José Borges Ribeiro, 167, Aparecida/SP, CEP 12570-000 e representada
pela pessoa do Prefeito Sr. Ernaldo César Marcondes, fazendo-o em defesa de animais
Laerte Fernando Levai
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domésticos (equinos, muares e asininos) submetidos a serviços de tração em charretes e
carroças, conforme os fatos e os fundamentos a seguir expostos.
I N T R O D U Ç Ã O - Cultura da violência
A história do Brasil, durante séculos, teve suas páginas marcadas pela exploração
servil de animais. Foi no século XVI, início do período colonial, que os primeiros ruminantes
chegaram nas caravelas portuguesas. Esses animais foram utilizados na lavoura, na pecuária e,
sobretudo, no transporte bandeirante sertão adentro. Enquanto os bois de carro arrastavam, sob
vara, seu pesado arado pelos canaviais e moviam a roda dos engenhos, jumentos e mulas
carregados de provimentos cruzavam vales e serras. No lombo dos burros e dos cavalos os
colonizadores avançaram sobre os territórios indígenas. Nas vilas que se formavam, equídeos
permaneceram sempre a serviço dos homens, puxando veículos de tração, a golpes de pau e
chibata. No Rio de Janeiro e em São Paulo, na última década do século XIX, esses animais
tracionaram os primeiros bondes. Na atualidade, em meio à era automotiva que chegou a todas
as regiões do país, veículos de tração animal ainda dividem o mesmo espaço viário com carros,
ônibus e caminhões.
Não há mais como aceitar com naturalidade animais movimentando charretes e
carroças, a cumprir em silêncio sob açoites - sua dolorosa sina servil. VTAs (Veículos de Tração
Animal) podem ser vistos, ainda, em todas as partes do país. Cavalos esquálidos, burros e
jumentos fatigados, bois que trabalham à base de vergastadas, atrelados em juntas, todos eles
costumam ser usados nos serviços de tração até o limite de suas forças. Se no passado não muito
remoto tamanha crueldade era aceita ou simplesmente tolerada (porque a população dependia
do transporte animal), hoje isso já não deveria acontecer. Ainda que se tente justificar o uso de
veículos de tração como meio legítimo de sobrevivência das pessoas menos favorecidas
economicamente ou daquelas para as quais o subemprego tornou-se único meio de vida, a
utilização de qualquer ser sensível, em meio a abusos e maus-tratos, será sempre reprovável do
ponto de vista moral.
Difícil é permanecer impassível quando um condutor de carroça ou charrete
estala o chicote no lombo de seu animal, forçando-o ao movimento. Igualmente complicado é
aceitar a indiferença das autoridades constituídas, que nem sempre se preocupam com os
animais explorados. Essa rotina implacável, invariavelmente permeada pela inflição de
sofrimento, seja no transporte de passageiros, seja para carregar materiais diversos, como
mercadorias ou entulho, traduz-se em abuso. Mais triste é ver que o turismo de importantes
cidades brasileiras, dentre as quais a Estância Turístico-Religiosa de Aparecida, ainda mantêm
viva tal prática. Em pleno século XXI, a utilização de equídeos como instrumentos para atingir fins
diversos não pode mais ser justificada sob argumentos culturais ou de ordem socioeconômica. Já
se faz hora de dar um basta à crueldade institucionalizada que transforma seres vivos em
máquinas.
Sob sol ou chuva, faça calor ou faça frio, de dia ou de noite, em meio ao ruído dos
motores ou no campo, pouco importa, o animal utilizado em serviços de tração vive na labuta em
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função das conveniências daquele que os explora. Quantas e quantas vezes, em meio ao trânsito
urbano, não se nos depara uma charrete ou carroça lotada, cujo animal é fustigado pelo
condutor para que mantenha sua marcha regular, sem atrapalhar o fluxo de automóveis. Pouca
gente se importa com a condição física ou psíquica desses animais condenados à labuta, nem se
preocupa com o peso - tantas vezes exagerado - da carga transportada. E o que dizer das reais
condições de saúde do cavalo ou com os abusos cometidos pelo homem que traz o relho nas
mãos, quando se sabe que na prática da gestão municipal um efetivo acompanhamento
veterinário inexiste?
Cabe registrar, historicamente, que no século XIX o município de São Paulo inseriu
em seu Código de Posturas, de 6 de outubro de 1886, um artigo relacionado à proteção dos
animais explorados em serviços de tração: Artigo 220 - É proibido a todo e qualquer cocheiro,
à à à à à ., maltratar os animais com castigos bárbaros e
imoderados. Esta disposição é igualmente aplicada aos ferradores. Os infratores sofrerão a
multa de 10$, de cada vez que se der a infração. Ainda que esse dispositivo possa ser
considerado um mero esboço das futuras leis de proteção animal, o fato é que o sofrimento dos
equídeos foi observado pelos redatores da pioneira normatização paulistana.
Surgia assim, de forma inédita no Direito brasileiro, um texto legislativo municipal
voltado não ainda a abolir, mas apenas a minimizar ou a controlar os abusos aos cavalos, que na
época eram considerados meio de transporte oficial, como que antecipando um entendimento
que se firmaria, com maior efetividade, apenas no final do século seguinte. A legislação protetiva
de animais, propriamente dita, veio somente com a edição do Dec reto federal nº 24.645/1934
(proibitivo de maus-tratos), durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas, para depois avançar
ao longo do século sob a moldura contravencional (artigo 64 da LCP, "crueldade contra animais")
e se firmar, ao menos no plano teórico, somente após o advento da Constituição federal de 1988.
É possível dizer, em linhas gerais, que o movimento pelos direitos animais
começou a ganhar força, no Brasil, apenas na última década do século anterior, fundamentado
pelo mandamento anticrueldade insculpido na Carta da República (artigo 225 § 1ª, inciso VII, que
veda a submissão de animais a crueldade) e na Lei federal nº 9.605/98 ( artigo 32, que
criminalizou as práticas cruéis). A partir daí, já no novo milênio, várias outras leis tornaram
ilícitas condutas que envolvem abusos, maus-tratos, ferimentos ou mutilações em animais,
fazendo com que estes fossem considerados também em função de seus próprios interesses. Na
atualidade a legislação de alguns países do mundo ocidental (Alemanha, Suíça, Holanda, França,
Portugal etc.) avança a ponto de reconhecer os animais não como coisas, objetos ou
instrumentos, mas como seres sensíveis que possuem direitos. É nesta direção que a legislação
brasileira tende a seguir.
Resta-nos então olhar para Aparecida, cidade que atrai extraordinário turismo
religioso à região do Vale do Paraíba paulista. Aceitar com naturalidade práticas que submetem
a atos cruéis outros seres que, como nós, sentem e sofrem, não é defensável e nem justo. A
atividade regulamentada de charretes (há 38 autorizações formais concedidas pela Prefeitura a
esse meio de transporte) não se sustenta, tanto que outros municípios turísticos brasileiros já se
posicionaram contrariamente à permanência de VTAs, a fim de substitui-los por veículos
motorizados (tuk-tuks, moto-taxis ou similares), como demostraremos ao longo deste arrazoado.
O grave problema das carroças usadas no transporte de carga, igualmente, também não pode

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