Monogamia: considerações sobre o instituto e abordagens quanto ao poliamorismo e seus efeitos jurídicos

AutorGustavo Henrique Velasco Boyadjian/Lorena Bruno Boyadjian
Páginas183-206

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Ver Nota12

1 Considerações iniciais

A Constituição Federal de 1988, ao consagrar a concepção de ser a família o núcleo fundamental de organização social, rompeu com a ideia de sua exclusiva formação pelo vínculo matrimonial, reconhecendo verdadeiro rol de entidades familiares. Nesse contexto, veriica-se que as constantes modiicações comportamentais impõem questionamentos quanto à existência e à possibilidade de produção de efeitos jurídicos por situações cada vez mais frequentes e que não se enquadram, necessariamente, nas modalidades de família descritas constitucional e legalmente.

Faz-se referência, aqui, tanto às entidades que não se enquadram em nenhuma das formas descritas pelo art. 226, da Carta Magna ? quais sejam, o casamento, a união estável e a família monoparental ?, bem como as que coexistem simultaneamente, em razão da inobservância, inocente ou não, da idelidade entre os seus partícipes.

Ao longo do trabalho, consideram-se os conceitos de idelidade recíproca, lealdade e monogamia, decorrentes das famílias matrimonializadas ou convivenciais, bem como analisa-se a possibilidade de existência das chamadas famílias

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simultâneas, de modo a serem a elas atribuídos efeitos jurídicos típicos das entidades familiares.

2 Proteção constitucional à família

Historicamente, o conceito de família tem sofrido signiicativas alterações, à medida que as necessidades humanas são igualmente transformadas. Ademais, a compreensão do instituto por áreas distintas como a Antropologia, a Sociologia e diferentes ramos do Direito, caracteriza a existência de signiicados múltiplos.

Para Venosa3o conceito de família pode ser analisado sob dois prismas. No primeiro, de forma ampla, aproximando-se do próprio parentesco, caracterizado pelo conjunto de pessoas unidas por um vínculo jurídico de natureza familiar, abrangendo, assim, os ascendentes, descendentes, colaterais, o cônjuge e os ains. Num segundo momento, é considerado um conceito restritivo, estabelecendo como família apenas o núcleo permeado pelo poder familiar, formado por pais e ilhos, ou qualquer um dos pais e seus ilhos.

O Direito de Família se transformou em Direito das Famílias, à medida que foram reconhecidas novas formas de relações familiares. Com o advento da Constituição de 1988, foram reconhecidas a união estável e as relações monoparentais, sendo superada a ideia de que somente o casamento era meio apto para a formação de uma família. Segundo Farias e Rosenvald4. “[...] a família deixa de ser compreendida como um núcleo reprodutivo, avançando para uma compreensão socioafetiva”.

Em voto dissonante no julgamento do RE 397.762-85, o Ministro Ayres Brito conceituou família sob a ótica do texto constitucional como:

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[...] espaço usual da mais próxima, topograicamente, e da mais íntima, afetivamente, convivência humana. Depurada expressão de gregarismo doméstico. Com a força, portanto, de transformar anódinas casas em personalizados “lares” (§ 1º do art. 230). Vale dizer, a família como ambiente de proteção física e aconchego amoroso, a se revelar a primeira das comunidades humanas. O necessário e particularizado pedaço de chão do mundo. O templo secular de cada pessoa física ou natural, a que a Magna Lei apõe o rótulo de “asilo inviolável do indivíduo” (inciso XI do art. 5º). Logo, a mais elementar “comunidade” (§ 4º do art. 226) ou o mais apropriado lócus de desfrute dos direitos fundamentais à “intimidade” e à “privacidade” (art. 5º, inciso X), porquanto signiicativo de vida em comunhão (comunidade vem de comum unidade, é sempre bom remarcar).

Na Magna Lei, está expresso o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, valor absoluto moral e espiritual, característico de toda pessoa humana, derivado da formulação clássica Kantiana, que estabelecia a necessidade de que os seres humanos fossem tratados como um im em si mesmo, ao invés de serem considerados como meros objetos6.

Tal princípio constitucional foi responsável também por traçar os contornos do Direito de Família moderno. Deve ser considerado como o vetor máximo interpretativo do ordenamento pátrio, não sendo errada, a nosso ver, sua consideração como um superprincípio que foi construído com o decorrer da História e que tem os seres humanos como centro do ordenamento jurídico. É a dignidade da pessoa humana que assegura e justiica a proteção constitucional dada à família e a cada um de seus partícipes. Esse superprincípio fundamenta-se no inciso III, art. 1º, da Constituição da República, e serve como garantidor dos Direitos Fundamentais igualmente expressos no texto constitucional, funcionando como verdadeiro norteador das relações familiares que passam a ser fundadas em laços de afeto.

Saliente-se, também, ainda a título introdutório, que se apresenta como uma decorrência da dignidade da pessoa humana o Direito à Felicidade, verdadeiro princípio do Direito de Família. A obtenção da felicidade carece de resguardo da dignidade humana. A felicidade de cada um está fundada também na observância dos princípios constitucionais tutelados.

Sob a ótica desses princípios constitucionais, decisões recentes das cortes superiores reconheceram e conferiram status de família às relações homoa-

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fetivas, no julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132, bem como do REsp
1.183.378/RS, ampliando ainda mais o rol de entidades familiares não presentes no texto constitucional. Em razão desse posicionamento, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 175, de 14 de maio de 2013, proibindo a negativa dos Cartórios de Registro Civil de realizarem casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Diante disso, foi sob o prisma da dignidade da pessoa humana e com a inalidade de se salvaguardar a felicidade dos partícipes das entidades familiares, que se desenvolveu o próximo tópico do presente estudo.

2. 1 Análise do art 226 da Constituição Federal

Em que pese o fato de o Direito de Família ser um dos livros do Código Civil, é a Constituição Federal que se apresenta como seu principal instrumento normativo. A família obtém proteção constitucional em diversos dispositivos, entre os quais pode ser feita menção aos arts. 5º, 7º, 201, 208 e ao Capítulo que contempla os arts. 226 a 230, intitulado “Da Família, Da Criança, Do Adolescente, Do Jovem e Do Idoso”.

O caput do art. 226 da CF reconhece a importância das entidades familiares como núcleos fundamentais de organização social, conferindo-lhes especial proteção estatal. Referida proteção autoriza normas infraconstitucionais, como o Código Civil, por exemplo, a fazer previsão quanto aos efeitos pessoais, sociais e patrimoniais oriundos de tais núcleos.

As formas de constituição de família foram previstas pelo art. 226. São elas: o casamento, a união estável e a entidade formada por qualquer um dos genitores e seus ilhos, denominada família monoparental. Observe-se, entretanto, após a superação de questionamentos doutrinários e jurisprudenciais, haver, atualmente, consenso quanto ao mencionado rol ser meramente exempliicativo, haja vista não estarem previstas todas as formas de família existentes, sendo essas apenas as mais comuns. A título de exemplo, pode-se citar a universalidade de ilhos que convivem sem seus pais, denominada de família anaparental e as uniões homoafetivas, já mencionadas no início deste trabalho.

Nessa trilha, consolida-se o afeto como o fator precípuo e determinante para a coniguração de uma entidade familiar. É ele o substrato comum de todas as modalidades de entidades familiares. Portanto, deve ser salientado que o referi-

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do vínculo deve-se sobrepor, inclusive, aos laços biológicos7. Segundo os ensinamentos de Dias8:

É necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetivi-dade, independente de sua conformação.

Ainda na análise do art. 226, veriica-se, em seu § 5º, prova irrefutável do im da imagem patriarcal da família, uma vez consagrada a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres no tocante à sociedade conjugal. O antigo Código Civil de 1916 traduzia valores do século XIX, em que o marido possuía verdadeira função de chefe da família, enquanto a mulher se limitava a cuidar apenas dos afazeres domésticos, em situação de clara inferioridade.

A promulgação da Constituição em 1988 constitui um marco no tocante aos direitos da mulher. A partir desse momento, passou a ser desconsiderada a preponderância masculina na sociedade conjugal, que até então subjugavam as mulheres às vontades do pai de família. Como exemplo dessa diferenciação, tem-se a “incapacidade relativa” da mulher casada que perdurou até a edição da Lei
4.121 de 27 de agosto de 1962.
É nesse contexto, de reconhecimento da família plural e da consagração da isonomia entre os sexos, que surge o Código Civil de 2002. Tal diploma abandona o matiz individualista e até certo ponto egoístico do Código de 1916 e se alicerça em uma perspectiva solidária em busca do atendimento da função social da família. O novo Código busca, ainda, a valorização da pessoa, rompendo com os ideais patrimonialistas de seu antecessor, em que o ter se sobrepunha ao ser.

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3 Casamento, união estável e concubinato

Como supramencionado, a Constituição Federal reconhece como entidades familiares, além das famílias monoparentais, o casamento e a união estável, esta anteriormente denominada de concubinato puro. Nesse diapasão, percebe-se que o texto constitucional excluiu do conceito de família o denominado concubinato impuro...

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