Apresentação. Justiça, segurança e moradia: caminhos para a promoção da cidadania nas favelas do Rio de Janeiro

AutorFabiana Luci de Oliveira
Páginas9-22
APRESENTAÇÃO
Justiça, segurança e moradia: caminhos para a
promoção da cidadania nas favelas do Rio de Janeiro
FABIANA LUCI DE OLIVEIRA
O ano de 2011 se encerrou no Brasil com a celebração de termos atingido o
posto de sexta maior economia do mundo. Não é de agora que se comemora
o bom desempenho do país no cenário econômico global, e esse desempenho
tem provocado importantes reflexos na estrutura socioeconômica brasileira,
como a diminuição da pobreza e o crescimento da classe média.
Indicadores para o Brasil como o índice de Gini1 e o índice de desenvolvi-
mento humano (IDH)2 melhoraram substantivamente nas últimas duas déca-
das. O índice de Gini, que em 1990 era de 0,61, passou para 0,54 em 2009. Já o
IDH do país saltou de 0,72 em 1990 para 0,81 em 2009. A movimentação desses
dois indicadores aponta para uma tendência de diminuição da desigualdade na
sociedade brasileira.
1 Indicador que mensura a iniquidade de renda. De acordo com definição do Pnud, o Índice de Gini
“mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar
per capita. Seu valor varia de 0, quando não há desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem
o mesmo valor), a 1, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda
da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula)”. Disponível em:
popup/pop.php?id_pop=97>. Acesso em: 25 mar. 2012.
2 Indicador desenvolvido pelo Pnud que mensura o grau de desenvolvimento econômico e a
qualidade de vida da população, levando em conta a longevidade (esperança de vida), a renda
(rendimento nacional bruto per capita); e a escolaridade (média de anos de estudo). O IDH varia de
0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1 (desenvolvimento humano total).
UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
10 Mas o quanto essa diminuição na desigualdade tem impactado o desenvol-
vimento e o aperfeiçoamento da cidadania no país? Interessa-nos discutir uma
dimensão específica da cidadania: o acesso à Justiça.
É importante frisar que, apesar da melhoria econômica verificada, o país
continua bastante desigual quanto à distribuição de renda. De acordo com o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil ainda
figura entre os 10 países mais desiguais do mundo no que se refere à distribui-
ção de renda. É fácil perceber isso quando observamos dados do Censo de 2010
sobre o rendimento domiciliar per capita do brasileiro, que em 2010 era de R$
668,00. No entanto, 25% dos brasileiros recebiam até R$ 188,00 e metade da
população recebia até R$ 375,00 — valores bem inferiores ao salário mínimo
naquele período, que era de R$ 510,00.3
Essa constatação nos leva a indagar o quanto o Brasil é também desigual
em termos de acesso à Justiça. Existem estudos de âmbito nacional que apon-
tam que a desigualdade socioeconômica tem reflexo na desigualdade de acesso
à Justiça,4 sendo os brasileiros de baixa renda e de baixa escolaridade os mais
excluídos do sistema formal de Justiça.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio do Suplemen-
to de vitimização e Justiça da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad),
identificou que 12,6 milhões de brasileiros a partir dos 18 anos de idade estiveram
envolvidos em algum tipo de conflito grave nos cinco anos anteriores à data de re-
alização da entrevista (de 2004 a 2009) — e, destes, 7,3 milhões (ou 58%) buscaram
a justiça para solucionar o conflito vivido. Os dados mostram que, quanto maior a
renda e a escolaridade da população, maior é a procura pelo Judiciário.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica essa mes-
ma tendência de que a utilização do Judiciário para a resolução de conflitos
3 Ver primeiros resultados do Censo 2010, disponível em: .censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso
em: 25 mar. 2012.
4 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Suplemento de vitimização e Justiça. Rio
de Janeiro: IBGE, 2009; IPEA. SIPS — Sistema de Indicadores de Percepção Social: Justiça. Brasília: Ipea,
2010, 2011. Disponível em: .br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/110531_sips_
justica.pdf>. Acesso em: 2 maio 2012; SADEK, Maria Tereza. Acesso à Justiça: visão da sociedade.
Justitia, v. 1, p. 271-280, 2009; CUNHA, Luciana Gross et al. Índice de confiança na Justiça.
Relatório ICJ Brasil, 4o trim. 2011, 4a onda, ano 3. São Paulo: Direito GV. Disponível em:
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/9282>. Acesso em: 2 maio 2012.
APRESENTAÇÃO
11
está associada a atributos socioeconômicos. Na pesquisa Sistema de Percepção
Social sobre Justiça (Sips-Justiça), os entrevistados foram perguntados sobre o
problema mais sério que enfrentaram no último ano, e a forma que buscaram
para solucioná-lo. No ano de 2010, 63% dos brasileiros que declararam ter vi-
venciado um problema sério no último ano não procuraram o Judiciário para
solucionar a questão. A pesquisa mostra que, além de renda e escolaridade, o
tipo de problema influencia na procura pela Justiça, com a probabilidade de
acionar o Judiciário sendo maior nos casos criminais e menor nos casos en-
volvendo disputas de consumo e vizinhança. Análise do Ipea com base nesses
resultados do Sips e nos dados do Justiça em Números5 indica que 63,85% de
todas as demandas judiciais podem ser explicadas por níveis de escolaridade
e renda: um aumento de um ano na escolaridade média da população de um
estado, por exemplo, aumentaria a demanda por serviços judiciais em 1.682
casos novos por ano para cada 100 mil habitantes. A redução de um ponto no
percentual de pobres em um estado aumentaria a demanda por serviços judi-
ciais em 59 casos novos por ano para cada 100 mil habitantes.
Assim, a conclusão que podemos tirar a partir desse estudo do Ipea é a de
que renda e escolaridade são os fatores preditores mais importantes para a ex-
plicação do acesso à Justiça formal — mas eles não são os únicos, uma vez que
36,15% da demanda populacional por Justiça formal não é explicada apenas
por renda e escolaridade.
A pesquisa Índice de Confiança na Justiça (ICJ Brasil), conduzida por Lucia-
na Gross Cunha6 trimestralmente desde o ano de 2009, também demonstra a
existência de forte relação entre uso do Poder Judiciário, renda e escolaridade.
Os dados do ICJ Brasil indicam que 36% das pessoas de baixa renda já utili-
zaram os tribunais, enquanto 57% das pessoas com maior renda já o fizeram.
Entre as pessoas com baixa escolaridade, 45% já acessaram o Poder Judiciário
contra 61% da população com alta escolaridade. O estudo de Cunha e colabora-
5 Ver CUNHA, Alexandre Santos. Painel 2: Indicadores socioeconômicos e a litigiosidade. In:
SEMINÁRIO JUSTIÇA EM NÚMEROS, III, 2010, Brasília. Disponível em:
images/pesquisas-judiciarias/iii-seminario-justica-em-numeros/apre_alexandre_cunha_jn_2010.
pdf>. Acesso em: 25 mar. 2012.
6 Cunha et al., “Índice de confiança na Justiça”, 2011.
UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
12 dores acrescenta outro elemento explicativo na procura pelo sistema de Justiça:
o local de residência (regiões metropolitanas versus interior), concluindo que
moradores dos grandes centros urbanos (capitais e regiões metropolitanas)
utilizam mais o Judiciário (50%) do que os moradores de cidades do interior
(43%).7
Carlin e Howard8 ressaltam a centralidade de dois outros elementos, para
além das condições socioeconômicas e do local de residência, na explicação da
busca e da utilização do sistema formal de Justiça: (1) a consciência e o reco-
nhecimento de que determinado problema caracteriza-se como um problema
jurídico, passível de resolução via Justiça formal e (2) a vontade e a disponibili-
dade para iniciar uma ação judicial para solucionar esse problema.
Ao tratar do tema do acesso à Justiça e da visão da população sobre o Po-
der Judiciário, Sadek9 também estende a explicação para além de elementos
socioeconômicos, apontando que o sistema de Justiça brasileiro estimula um
paradoxo, consistente em ter, de um lado, uma utilização expressiva e exces-
siva do sistema de Justiça (com uma média nacional em 2006 de um processo
para cada 10,2 habitantes) e, de outro, um reduzido rol de agentes fazendo uso
do sistema. Como afirma Sadek, há demandas demais (estimuladas) e deman-
das de menos (reprimidas ou contidas), e a “elevada demanda pelos serviços
do Poder Judiciário não equivale a amplo acesso à Justiça”. Além de a média
nacional mascarar a correlação entre uso do Judiciário e desenvolvimento so-
cioeconômico (São Paulo tinha, em 2006, média de um processo a cada 6,62
habitantes, enquanto Alagoas tinha um processo para cada 62,32 habitantes),
ela esconde, também, o reduzido número de agentes que fazem uso do siste-
7 É essencial ressaltar que há uma diferença metodológica significativa na abordagem dessas
três pesquisas (Pnad, Ipea e ICJ Brasil): a forma de identificação do uso do Judiciário. A Pnad
pergunta sobre vivência de conflito grave nos últimos cinco anos (anteriores à data de realização da
entrevista), a pesquisa do Ipea pergunta sobre o problema mais sério que já enfrentou, a partir de
uma lista descritiva de 13 situações, e o ICJ Brasil pergunta se o entrevistado ou alguém residente
no domicílio da entrevista já utilizou o Judiciário ou entrou com algum processo ou ação na Justiça.
Embora haja tal diferença, as três pesquisas demonstram a mesma tendência, qual seja, a de que,
conforme aumentam a escolaridade e a renda, aumenta a demanda pelos serviços do Judiciário.
8 CARLIN, Jerome; HOWARD, Jan. Legal representation and class justice. UCLA Law Review, n. 12,
p. 381-437, Jan. 1965; CARLIN, Jerome; HOWARD, Jan; MESSINGER, S. Law and Society Review, v.
1, n. 1, p. 9-90, 1966.
9 Sadek, “Acesso à Justiça”, 2009.
APRESENTAÇÃO
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ma — o grande usuário é o poder público (órgãos e autarquias da União, dos
estados ou dos municípios),10 além de setores minoritários e privilegiados da
população.
Sadek explica esse paradoxo a partir de uma combinação de fatores, acres-
centando aos socioeconômicos (extrema desigualdade social) o desconhe-
cimento sobre direitos e sobre os mecanismos e instituições adequados para
pleitear por sua efetivação — entre a população mais pobre e/ou excluída, esse
conhecimento é inexistente ou consideravelmente deficiente.11 Sadek cita, ain-
da, o desconhecimento sobre a localização e a existência de varas judiciais e
dos locais de atendimento da Defensoria Pública como fatores adicionais que
estimulam esse paradoxo.
Disso tudo concluímos que conhecimento (informação) e oportunidade
são aspectos essenciais na compreensão e na promoção do acesso à Justiça — e,
embora conhecimento e oportunidade estejam associados à condição socioeco-
nômica, não se resumem a ela.
Uma vez que o acesso à Justiça é um dos elementos centrais no exercício da
cidadania, fornecendo, inclusive, meios para que outros direitos possam ser rei-
vindicados e se tornar efetivos, é fundamental conhecer os fatores que explicam
a exclusão de parte da população dessa esfera, para com isso pensar políticas
públicas mais inclusivas.
Dada a existência de diagnósticos nacionais sobre os excluídos do sistema
de Justiça formal, decidimos voltar nosso olhar para o Rio de Janeiro e apro-
fundar essa discussão a partir de um estudo de caso. Assim se deu a escolha
da favela como lócus de investigação, em virtude de sua identificação secular
como território de exclusão e pobreza urbana.12
10 Dados da pesquisa Supremo em Números, coordenada pelos professores Joaquim Falcão, Pablo
Cerdeira e Diego Werneck, da FGV Direito Rio, corroboram essa informação, indicando que na
corte máxima o poder público é origem de 90% dos processos. Disponível em:
fgv.br/supremoemnumeros-merval>.
11 Sadek, “Acesso à Justiça”, 2009, p. 274.
12 ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 1998; VALLADARES,
Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
14 A escolha do Cantagalo e do Vidigal
Partimos do pressuposto de que os moradores de favela estariam no grupo
dos mais excluídos do sistema formal de Justiça, por sua condição de renda e
escolaridade mais baixas, mas buscamos entender quais outros fatores, além de
renda e educação, ajudariam a explicar a exclusão dessa população do acesso
à Justiça.
No caso das favelas, existem outros elementos de exclusão, a começar pela
forma irregular e mesmo ilegal de ocupação do espaço urbano, que acabam por
configurar a própria negação do acesso de seus moradores à cidade, nos termos
da metáfora da cidade partida, ou das oposições já consagradas morro × asfalto;
cidade formal × informal; Estado (paralelo) dentro do Estado etc. A forma da ocupa-
ção do solo se torna ela própria um elemento de exclusão. Como indicado por
Boaventura Sousa Santos, ao tratar da favela carioca ficticiamente chamada
de Pasárgada, a ilegalidade coletiva do tipo de habitação nas favelas, à luz do
direito oficial brasileiro, condiciona de modo estrutural o relacionamento de
seus moradores com o aparelho jurídico-político do Estado. Ao estarem exclu-
ídos do sistema legal oficial, os moradores das favelas acabam construindo um
direito próprio, interno e informal, constituindo-se, assim, uma situação de
pluralismo jurídico, com formas de direito oficiais e não oficiais coexistindo
nesses espaços.13 Importante notar que a realidade mapeada por Santos na dé-
cada de 1980 ainda perdura nos dias atuais.
Somando-se à forma de ocupação do espaço, a escassa presença do Es-
tado nas favelas possibilitou o controle do território por grupos armados,
reforçando o discurso criminalizante que vem estigmatizando a população
residente em favelas há muito tempo.14 Isso alimenta uma série de representa-
ções já arraigadas no imaginário coletivo nacional, sobretudo carioca, como
a “metáfora da guerra”. Ou seja, a condição de insegurança nas favelas se co-
13 SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: SOUTO,
Claudio; FALCÃO, Joaquim (Org.). Sociologia e direito. São Paulo: Livraria Pioneira, 1980. p. 108.
14 Ver Zaluar e Alvito, Um século de favela, 1998; Valladares, A invenção da favela, 2005; BURGOS,
Marcelo Baumann. Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro. In: Zaluar e Alvito, Um século de favela,
1998, p. 25-60.
APRESENTAÇÃO
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loca como uma barreira adicional para o exercício dos direitos de cidadania
a seus moradores.
Nesse contexto, o objetivo central da pesquisa se desenhou a partir da busca
por diagnosticar a condição atual do exercício de cidadania nas favelas do Rio
de Janeiro, no que se refere à dimensão de acesso à Justiça.
Não podemos ignorar a existência de um importante projeto do poder pú-
blico que busca, entre outros objetivos, ampliar as condições de exercício da
cidadania nas favelas do Rio de Janeiro, que é a Polícia Pacificadora (Unidades
de Polícia Pacificadora — UPPs). Partindo do pressuposto de que, ao promo-
ver a recuperação do território, visando garantir segurança aos moradores e à
cidade como um todo, a UPP se constitui como etapa antecedente e essencial
para possibilitar o acesso aos demais direitos relacionados à cidadania, nosso
problema de pesquisa passou a abarcar também a questão sobre se e como a ex-
periência da UPP impacta a percepção, os hábitos e as atitudes dos moradores
com relação à existência e à efetivação de direitos, sobretudo no que toca ao
acesso à Justiça.
Como não temos uma medida imediatamente anterior à inauguração das
UPPs nas favelas, a forma mais próxima para viabilizar essa comparação foi
observar, como controle, um caso semelhante em que não houvesse ainda im-
plantação da UPP — tentando controlar da melhor forma possível também a
interferência de outras variáveis, especialmente a localização. Assim, optamos
por estudar as favelas do Cantagalo e do Vidigal, ambas localizadas na Zona
Sul da cidade. A escolha do Cantagalo se deu pela presença da UPP, em contras-
te com o Vidigal, que não tinha UPP no momento de realização da pesquisa.
A opção pela Zona Sul se deu na medida em que essa área concentra o maior
número de equipamentos de Justiça formal na cidade. Assim, trabalhando em
uma mesma área conseguimos controlar o efeito da localização.
É claro que essas são duas favelas com longo histórico de políticas de re-
gularização fundiária e urbanística, e com intensa atuação de movimentos
sociais. Não conseguimos, portanto, isolar completamente o efeito provocado
apenas pela UPP, já que se trata de um processo que vem sendo construído
ao longo do tempo, com experiências de intervenções mais e menos bem-
UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
16 -sucedidas, que culminaram com a UPP. Mas conseguimos trabalhar com as
percepções dos moradores (e de outros atores envolvidos no cotidiano destas
favelas) no que se refere a direitos, utilização dos canais de resolução de con-
flitos, acesso à Justiça, sua experiência e seu imaginário com relação à polícia
e às UPPs.
Acesso à Justiça
Como dito, o principal aspecto do exercício de cidadania que nos interessa ana-
lisar aqui é o acesso à Justiça. Argumentamos que acesso à Justiça é condição
fundamental para o desenvolvimento pleno da cidadania. Quando se fala em
acesso à Justiça, uma referência clássica é o trabalho de Cappelletti e Garth.15
Os autores tratam acesso à Justiça como igualdade de condições a todos os
cidadãos na utilização das instituições e dos canais do sistema pelos quais pos-
sam reivindicar direitos e solucionar conflitos. Eles descrevem três ondas de
acesso à Justiça. A primeira é a que proporciona assistência judiciária à popu-
lação de baixa renda, contribuindo para romper uma barreira econômica no
acesso. A segunda onda refere-se aos direitos difusos e à expansão da solução
de conflitos de massa, via tutela coletiva de direitos. A terceira onda é a da rees-
truturação e democratização da Justiça, com a simplificação de procedimentos
e do próprio processo, e incorporação dos meios alternativos e informais de
resolução de conflitos.
No estudo de caso das favelas partimos dessa definição, concebendo acesso
à Justiça de forma a englobar as três ondas descritas por Cappelletti e Garth,
indo além do acesso às instituições formais de Justiça, não nos restringindo à
solução adjudicada dos conflitos. Entendemos acesso à Justiça como informa-
ção e conhecimento de direitos e acesso a qualquer forma idônea de resolução
de controvérsias e conflitos.
15 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
APRESENTAÇÃO
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Metodologia empregada na pesquisa
Adotamos no estudo uma perspectiva metodológica empírica, valendo-nos de
técnicas qualitativas e quantitativas na reunião de informações e coleta de da-
dos. Em termos qualitativos, conduzimos 16 entrevistas semiestruturadas com
(i) membros das associações de moradores, (ii) ONGs, como AfroReggae, Nós
do Morro, Instituto Atlântico, Horizonte etc., (iii) agentes públicos (policiais
da UPP), (iv) defensores públicos e juízes, e (v) poder público (Instituto Pereira
Passos — IPP, Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro —
Iterj, Secretaria de Estado de Habitação de Interesse Social — Sehab).16
Foram cinco os eixos centrais de abordagem nas entrevistas: (1) descrição
da comunidade em termos de infraestrutura e equipamentos públicos de servi-
ços e mobiliário urbano, assim como atuação de ONGs e movimentos sociais;
(2) principais problemas e conflitos que a comunidade e os moradores enfren-
tam e os mecanismos de solução para tais conflitos; (3) percepções sobre co-
nhecimento e respeito aos direitos de cidadania e Justiça formal — Defensoria,
Judiciário, Ministério Público etc.; (4) propriedade da terra, moradia e regulari-
zação fundiária e (5) percepções sobre segurança, polícia e UPP, especialmente
em relação aos impactos para a comunidade e para a vida dos moradores, e sua
importância e atuação na promoção da cidadania.
Com os moradores das duas favelas conduzimos grupos de discussão focal,
sendo um no Cantagalo e outro no Vidigal, abordando os mesmos cinco eixos
acima mencionados. Os grupos foram realizados nas próprias comunidades,
em espaços de convivência. Tivemos ainda conversas informais com os mora-
dores em visitas a essas localidades.17
As entrevistas qualitativas, os grupos focais com os moradores e as visitas às
favelas ocorreram entre os meses de janeiro e outubro de 2011.
A etapa quantitativa da pesquisa consistiu na realização de um levantamen-
to (survey) a partir de questionário estruturado, entrevistando um total de 802
16 Asseguramos o anonimato de todos os entrevistados, razão pela qual serão identificados apenas
pelo lugar social e/ou institucional que ocupam, sem referência a dados pessoais. As entrevistas
foram conduzidas por Elizete Ignácio dos Santos, por Izabel Nunez e por mim.
17 Os grupos de discussão foram conduzidos por Maria Tereza Aina Sadek e por mim.
UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
18 moradores distribuídos entre as duas favelas. Essas entrevistas aconteceram
entre os dias 16 e 24 do mês de maio de 2011.18
É importante frisar algumas dificuldades ocorridas na realização do levan-
tamento quantitativo na favela do Vidigal. No início do trabalho de campo, a
equipe de entrevistadores foi abordada por pessoas da comunidade que inda-
garam acerca do conteúdo da pesquisa. A equipe não foi impedida de trabalhar
ali, apenas alertada sobre locais da favela a serem evitados. Após quatro dias
frequentando as diversas áreas do Vidigal, os entrevistadores foram novamente
abordados pelas mesmas pessoas, que questionaram sua “presença constante”
na comunidade, afirmando que essa presença começava a incomodar, e reco-
mendaram a saída dos entrevistadores dali. Essas foram as duas únicas aborda-
gens diretas à equipe, mas durante todo o período de realização das entrevistas
não foi incomum a presença de pessoas armadas observando o trabalho de
campo, buscando mostrar que estavam atentas à movimentação dos entrevis-
tadores.
O questionário base das entrevistas foi organizado em torno de dez eixos:
(1) caracterização socioeconômica e demográfica dos entrevistados (gênero,
idade, escolaridade, estado civil, posição no domicílio etc.); (2) caracterização
do domicílio (situação jurídica, infraestrutura de saneamento etc.); (3) percep-
ção das condições de moradia e da qualidade de vida no local; (4) conheci-
mento e percepção de direitos; (5) conhecimento dos meios e instituições para
efetivação de direitos e resolução de conflitos; (6) vivência de situações de con-
flitos e formas de resolução adotadas; (7) familiaridade, percepção, utilização
e satisfação com relação às instituições formais de Justiça; (8) percepção sobre
políticas de regularização fundiária e sobre o direito à moradia; (9) percepção
sobre segurança e (10) percepção e avaliação acerca da UPP.
18 O trabalho de campo foi conduzido pelo Instituto de Pesquisas Sociais e Políticas (Ipesp).
O desenho amostral foi realizado considerando uma margem de erro máxima de 3,5 pontos
percentuais no total (intervalo de confiança de 95%), sendo os entrevistados selecionados a partir
do local de sua residência, procurando cobrir as diversas áreas das comunidades, e respeitando a
distribuição de gênero e faixa etária de acordo com os dados do Censo 2000.
APRESENTAÇÃO
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Estrutura do livro
O livro está organizado em seis capítulos. O primeiro, “As favelas do Cantagalo
e do Vidigal e seus moradores”, trata das características da população sobre a
qual estamos falando e do local em que vive, e reforça a constatação de que a
categoria favela é plural e não um agregado homogêneo de pessoas e coisas. A
diferenciação das favelas se dá externamente, entre as diversas favelas do Rio de
Janeiro, e internamente, com os moradores diferenciando-se principalmente
em termos de escolaridade e renda. No que concerne aos dois casos estudados,
o Vidigal apresenta um nível médio de escolaridade e renda mais elevado, e um
perfil de empregabilidade mais formal, quando comparado ao Cantagalo.
O segundo capítulo, “Morar no Cantagalo e no Vidigal: favelas, comunidades
ou bairros?”, aborda o cotidiano nessas localidades a partir da discussão sobre a
configuração da ocupação desses espaços e sua classificação como favelas, comu-
nidades ou bairros, e destaca a visão de seus habitantes sobre as condições de vida
nas duas favelas. Na fala dos entrevistados a ênfase está na precariedade de infra-
estrutura e urbanização. De maneira geral, as narrativas dos moradores transpare-
cem uma busca por reconhecimento, e um desejo de serem vistos e tratados como
cidadãos cariocas sem distinção com relação aos moradores do asfalto.
O terceiro capítulo, “Cidadania na favela: conhecimento e percepção de di-
reitos e das instituições de Justiça”, trata do conhecimento de direitos e das
formas e instituições para reivindicá-los e torná-los efetivos. A conclusão é a de
que há muito desconhecimento e pouco acesso à informação. Chama atenção
o fato de que nessas áreas os direitos civis são tão mencionados quanto os di-
reitos sociais. Nas duas favelas a liberdade de ir e vir é o direito mais conhecido
e citado, direito suprimido por muito tempo, em razão do domínio do tráfico
e que, talvez por isso, os moradores tenham aprendido a valorizar.
O quarto capítulo, “Vivência de conflitos e usos das instituições formais de
Justiça”, trata dos conflitos enfrentados pelos moradores e das formas de reso-
lução adotadas por eles, com atenção especial para o acesso às instituições for-
mais de Justiça. No Cantagalo, os conflitos mais mencionados foram referentes
ao relacionamento com a polícia, e, no Vidigal, os mais recorrentes tratam do
UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
20 relacionamento com a vizinhança. Problemas ligados aos direitos trabalhistas e
de consumidor foram também relevantes em ambas as localidades.
A maioria dos que vivenciaram conflitos não procurou por uma solução.
Entre os que procuraram resolver o problema, a forma mais citada foi a busca
pelo responsável direto pelo dano e depois pelas instituições formais de Justiça
(polícia, Judiciário e Defensoria Pública). Há relatos residuais da procura por
traficantes para solucionar problemas de vizinhança entre os moradores do
Vidigal, e referências ao passado dessa prática no Cantagalo.
O capítulo evidencia, ainda, a existência de uma diferença significativa no
acesso ao Judiciário entre a população brasileira em geral e os moradores des-
sas duas localidades: 28% no Cantagalo e 20% no Vidigal já utilizaram o Judici-
ário, e o percentual para a população brasileira de baixa renda é de 36%,19 como
vimos. O uso nas duas localidades é bastante recente, com mais da metade
dos moradores que acessaram o Judiciário nessas favelas fazendo-o a partir de
2009. A principal questão que leva os moradores à Justiça formal é sutilmente
diferente nas duas localidades: no Cantagalo são casos de família e, depois, de
consumidor e trabalho. No Vidigal, trabalho, seguido de consumo e família.
O quinto capítulo, “As UPPs e o longo caminho para a cidadania nas favelas
do Rio de Janeiro”, aborda a configuração da política de pacificação no con-
texto das políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro, trazendo também
a visão e o relacionamento dos moradores das duas favelas estudadas com a
polícia, e sua percepção da política de pacificação. É possível afirmar que do
ponto de vista do morador das favelas estudadas, a UPP é algo positivo, tanto
no aspecto de segurança quanto no da promoção de direitos. Os moradores
do Cantagalo e do Vidigal aprovam a política de pacificação, e revelam em seu
discurso um receio de que o programa acabe, como outros que o antecederam.
Esses moradores desejam a UPP como uma política permanente. É evidente
que a convivência com a polícia não se dá sem conflitos — trata-se de um pro-
cesso recente, que requer a adaptação da comunidade a uma nova realidade e a
internalização pelos moradores e também pelos policiais de novas regras. Essa
19 De acordo com dados do ICJ Brasil de 2011. Ver Cunha, “Índice de confiança na Justiça”, 2011.
APRESENTAÇÃO
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interação entre polícia e população tem tido altos e baixos no Cantagalo, mas
a partir dela o morador percebe uma porta de entrada para o relacionamento
com as demais instituições do Estado. A UPP melhorou a autoestima do mora-
dor e tem ajudado a quebrar o estigma da favela como local da criminalidade,
sendo uma via para a mudança do imaginário dualizado da cidade partida, da
segregação favela × asfalto. Mais importante, a UPP abre a porta para que nas
favelas haja melhores condições de exercício da cidadania.
O sexto e último capítulo, “Regularização fundiária urbana: o caminho da con-
quista do direito à moradia nas favelas do Cantagalo e do Vidigal”, discute a polí-
tica de regularização fundiária e a situação atual desse processo nas duas favelas. A
maioria dos moradores desconhece essa política no Vidigal, e grande parte conhece
no Cantagalo, em boa medida devido a uma ação de usucapião e ao início da en-
trega da titulação aos moradores de áreas públicas da comunidade. A maioria vê os
aspectos positivos da regularização e o morador quer ter a propriedade, ainda que
isso implique custos, como pagamento de impostos. Principalmente no Vidigal os
moradores veem o direito à propriedade como uma garantia contra a remoção. No
Cantagalo, o receio da “expulsão branca” é mais marcante, teme-se mais os custos
da regularização — o aumento do custo de vida e a especulação imobiliária. Mas a
política é bem vista e bem-vinda. Reclamada, inclusive. O direito à propriedade é
visto pelo morador como uma garantia de cidadania.
O livro traz ao final a favela vista pelo olhar de seus moradores, a partir de
uma série de fotografias produzidas por Josy Manhães, do Cantagalo, e Luiz
Felipe Marques Paiva, do Vidigal. As imagens retratam qualidades e problemas
nas duas favelas.
Referências
BURGOS, Marcelo Baumann. Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro. In: ZALUAR,
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