Morar no Cantagalo e no Vidigal: favelas, comunidades ou bairros?

AutorFabiana Luci de Oliveira
Páginas41-63
CAPÍTULO 2
Morar no Cantagalo e no Vidigal:
favelas, comunidades ou bairros?
FABIANA LUCI DE OLIVEIRA
O surgimento das favelas no Rio de Janeiro remonta ao final do século XIX,
com a ocupação do morro da Providência e do morro de Santo Antônio (1897
e 1898, respectivamente), principalmente por ex-combatentes da guerra de ca-
nudos, ex-escravos e por moradores dos cortiços que estavam sendo demolidos
no centro da cidade. Ao tratar da origem das favelas, Valladares1 atenta para a
influência que Euclides da Cunha exerceu sobre os primeiros observadores do
fenômeno no Rio, contribuindo para construir o imaginário social desse espa-
ço, como lugar de habitação rudimentar, marcado pela ausência do Estado e
da propriedade da terra, lugar de perigo, da marginália, das “classes perigosas”.
Assim como Euclides fazia a oposição sertão × litoral, os observadores da favela
passaram a utilizar a dualidade cidade × favela, que permanece até hoje nas con-
cepções de cidade partida, ou na oposição morro × asfalto.
A ideia de comunidade, tão presente no arraial analisado por Euclides da Cunha,
acaba se transpondo para a favela, servindo como modelo aos primeiros observado-
res que tentaram caracterizar a organização social dos novos territórios da pobreza
1 VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro:
FGV, 2005.
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UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
na cidade. À semelhança de Canudos, a favela é vista como uma comunidade de mi-
seráveis com extraordinária capacidade de sobrevivência diante de condições de vida
extremamente precárias e inusitadas, marcados por uma identidade comum. Com
um modus vivendi determinado pelas condições peculiares do lugar, ela é percebida
como espaço de liberdade e como tal valorizada por seus habitantes. Morar na favela
corresponde a uma escolha, do mesmo modo que ir para Canudos depende da von-
tade individual de cada um. Como comunidade organizada, tal espaço constitui-se
um perigo, uma ameaça à ordem moral e à ordem social onde está inserida. Por suas
regras próprias, por sua persistência em continuar favela, pela coesão entre seus mo-
radores e por simbolizar, assim como Canudos, um espaço de resistência.2
Alba Zaluar e Marcos Alvito resumem bem o senso comum sobre favelas: o
lugar da carência, da desordem, de moradias irregulares, sem arruamento, sem
plano urbano, sem esgoto, sem água e sem luz.3 Segundo os autores, as favelas
foram vistas no Rio de Janeiro desde o início do século XX como um duplo
problema: sanitário e urbano. Uma mancha na paisagem urbana da cidade,
as favelas foram retratadas nas já citadas oposições asfalto × favela e formalidade
× informalidade, e nas alegorias de negação da cidade e avesso do urbano. Assim, é
negado ao morador da favela o direito à cidade.
Cunha e Mello indicam com maestria a constituição de dois mundos dife-
renciados, marcando a distância entre cidade formal e cidade real:
Enquanto na cidade temos casas, na favela temos barracos; enquanto na cidade te-
mos ruas, na favela temos becos; na cidade temos fornecimento legal de energia
elétrica, e na favela, gatos de luz; na cidade temos TV a cabo; na favela, a “gatonet”.
É uma série infindável de oposições que enfatizam a falta: de forma, de ordem, de
regras morais.4
2 Valladares, A invenção da favela, 2005, p. 11-12.
3 ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 7.
4 CUNHA, Neiva Vieira da; MELLO, Marco Antonio da Silva. Novos conflitos na cidade: a UPP e
o processo de urbanização na favela. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 4, n. 3, p. 371-401, 2011. Disponível
em: . Acesso em: 21
mar. 2012. p. 395.

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