A Nova Morfologia do Trabalho, as Formas Diferenciadas da Reestruturação Produtiva e da Informalidade no Brasil

AutorRicardo Antunes
Páginas158-165

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As transformações ocorridas no capitalismo recente no Brasil, particularmente na década de 1990 foram de grande intensidade, impulsionadas pela nova divisão internacional do trabalho e pelas formulações definidas pelo Consenso de Washington e desencadearam uma onda enorme de desregulamentações nas mais distintas esferas do mundo do trabalho. Houve também um conjunto de transformações no plano da organização sociotécnica da produção, presenciando-se, ainda, um processo de reterritorialização e mesmo de desterritorialização da produção, entre tantas outras consequências da reestruturação produtiva e do redesenho da divisão internacional do trabalho e do capital. Vamos indicar, então, alguns traços particulares e singulares da nossa reestruturação produtiva do capital.

O capitalismo brasileiro, de desenvolvimento hipertardio quanto ao seu modo de ser, vivenciou, ao longo do século XX, um verdadeiro processo de acumulação industrial, especialmente a partir do getulismo. Pôde, então, efetivar seu primeiro salto verdadeiramente industrializante, uma vez que as formas anteriores de indústria eram prisioneiras de um processo de acumulação que se realizava dentro dos marcos da exportação do café, no qual a indústria tinha o papel de apêndice.

De corte fortemente estatal e feição nacionalista, a industrialização brasileira somente deslanchou a partir de 1930 e, posteriormente, com Juscelino Kubitschek, em meados da década de 1950, quando o padrão de acumulação industrial arte deu seu segundo salto. O terceiro salto foi experimentado a partir do golpe de 1964, quando se aceleraram fortemente a industrialização e a internacionalização do Brasil (ANTUNES, 1982 e 1992).

O país estruturava-se, então, com base em um desenho produtivo bifronte: de um lado, voltado para a produção de bens de consumo duráveis, como automóveis, eletrodomésticos etc., visando a um mercado interno restrito e seletivo; de outro, prisioneiro que era de uma dependência estrutural ontogenética, o Brasil continuava também a desenvolver sua produção voltada para a exportação, tanto de produtos primários quanto de produtos industrializados.

No que concerne à dinâmica interna do padrão de acumulação industrial, estruturava-se pela vigência de um processo de superexploração da força de trabalho, dado pela articulação entre baixos salários, jornada de trabalho prolongada e fortíssima intensidade em seus ritmos, dentro de um patamar industrial significativo para um país que, apesar de sua inserção subordinada, chegou a alinhar-se, em dado momento, entre as oito grandes potências industriais.

Esse padrão de acumulação, desde Juscelino Kubitschek e especialmente durante a ditadura militar, vivenciou amplos movimentos de expansão, com altas taxas de acumulação, entre os quais a fase do "milagre econômico" (1968-1973). O país vivia, então, sob o binômio ditadura e acumulação, arrocho e expansão.

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Foi somente em meados da década de 1980, ao fim da ditadura militar e sob a chamada "Nova República" de Sarney que esse padrão de acumulação - centrado no tripé setor produtivo estatal, capital nacional e capital internacional - começou a sofrer as primeiras alterações. Embora, em seus traços mais genéricos, muito ainda se mantenha em alguma medida vigente, foi possível presenciar o início das mutações organizacionais e tecnológicas no interior do processo produtivo e de serviços em nosso país, mesmo que num ritmo muito mais lento do que aqueles experimentados pelos países centrais, que viviam intensamente a reestruturação produtiva de capital e seu corolário ideopolítico neoliberal.

No fim da ditadura militar e durante o período Sarney, o Brasil ainda se encontrava relativamente distante do processo de reestruturação produtiva do capital e do projeto neoliberal, em curso acentuado nos países capitalistas centrais, mas já se faziam sentir os primeiros influxos da nova divisão internacional do trabalho.

A nossa singularidade começava a ser afetada pelos emergentes traços universais do sistema global do capital, redesenhando uma particularidade brasileira que pouco a pouco foi se diferenciando da fase anterior, inicialmente em alguns aspectos e, posteriormente, em muitos de seus traços essenciais.

Foi durante a década de 1980, que ocorreram os primeiros impulsos do nosso processo de reestruturação produtiva, levando as empresas a adotar, no início de modo restrito, novos padrões organizacionais e tecnológicos, novas formas de organização social do trabalho. Iniciou-se a utilização da informatização produtiva e do sistema just in time; germinou a produção baseada em team work, alicerçada nos programas de qualidade total, ampliando também o processo de difusão da microeletrônica.

Deu-se, também, o início da implantação dos métodos denominados "participativos", mecanismos que procuram o "envolvimento" (na verdade, a adesão e a sujeição) dos trabalhadores com os planos das empresas. Estruturava-se, ainda que de modo incipiente, o processo de reengenharia industrial e organizacional, cujos principais determinantes foram decorrência:

1) das imposições das empresas transnacionais, que levaram à adoção, por parte de suas subsidiárias no Brasil, de novos padrões organizacionais e tecnológicos, em maior ou menor medida inspirados no toyotismo e nas formas flexíveis de acumulação;

2) da necessidade, no âmbito dos capitais e de seus novos mecanismos de concorrência, de as empresas brasileiras prepararem-se para a nova fase, marcada por forte "competitividade internacional" (ALVES, 2000);

3) da necessidade de as empresas nacionais responderem ao avanço do novo sindicalismo e das formas de confronto e de rebeldia dos trabalhadores que procuravam estruturar-se mais fortemente nos locais de trabalho, desde as históricas greves da região industrial do ABC e da cidade de São Paulo, no pós-1978.

Mas foi a partir dos anos 1990 que se intensificou o processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil, processo que vem se efetivando mediante formas diferenciadas, configurando uma realidade que comporta tanto elementos de continuidade como de descontinuidade em relação às fases anteriores.

Nossa pesquisa demonstrou que há uma mescla nítida entre elementos do fordismo, que ainda encontram vigência acentuada, e elementos oriundos das novas formas de acumulação flexível e/ou influxos toyotistas no Brasil, que também são por demais evidentes.

No estágio atual do capitalismo brasileiro, enormes enxugamentos da força de trabalho combinam-se com mutações sociotécnicas no processo produtivo e na organização do controle social do trabalho. A flexibilização e a desregulamentação dos direitos sociais, bem como a terceirização e as novas formas de gestão da força de trabalho, implantadas no espaço produtivo, estão em curso acentuado e presentes em grande intensidade, coexistindo com o fordismo, que parece ainda preservado em vários ramos produtivos e de serviços.

Mas quando se olha o conjunto da estrutura produtiva, pode-se também constatar que o fordismo periférico e subordinado, que foi estruturado no Brasil, cada vez mais se mescla fortemente com novos processos produtivos, em grande expansão, consequência da liofilização organizacional, dos mecanismos próprios oriundos da acumulação flexível e das práticas toyotistas que foram assimiladas com vigor pelo setor produtivo brasileiro.

Se, por um lado, é verdade que a baixa remuneração da força de trabalho - que se caracteriza como fator de atração para o fluxo de capital estrangeiro produtivo no Brasil - pode- -se constituir, em alguma medida, como elemento obstaculizador para o avanço tecnológico, devemos acrescentar, por outro, que a combinação entre padrões produtivos tecnologicamente mais avançados e uma melhor "qualificação" da força de trabalho oferece como resultante um aumento da superexploração da força de trabalho, traço constitutivo e marcante do capitalismo brasileiro. Isso porque, para os capitais produtivos (nacionais e transnacionais), interessa a mescla entre os equipamentos informacionais e a força de trabalho "qualificada", "polivalente", "multifuncional", apta para operá-los, percebendo, entretanto, salários muito inferiores àqueles alcançados pelos trabalhadores das economias avançadas, além de regida por direitos sociais amplamente flexibilizados.

Ainda na década de 1990, no contexto da desregulamentação do comércio mundial, a indústria automobilística brasileira foi submetida a mudanças no regime de proteção alfandegária, com a redução das tarifas de importação de veículos. Desde então, as montadoras intensificaram o processo de reestruturação produtiva por meio das inovações

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tecnológicas, introduzindo, inicialmente, robôs e sistemas CAD/CAM - o que acarretou transformações no layout das empresas -, ou por meio da introdução de mudanças organizacionais, envolvendo uma relativa desverticalização, forte subcontratação e terceirização da força de...

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