Morte digna na Suíça: análise do caso Hass

AutorHenrique Gonçalves Ribeiro e Marcelo Sarsur
Ocupação do AutorMédico graduado pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, especializado em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
Páginas195-214
MORTE DIGNA NA SUÍÇA:
ANÁLISE DO CASO HASS
Henrique Gonçalves Ribeiro
Médico graduado pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo,
especializado em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo. Médico assistente da Unidade de Cuidados Paliativos Infantil da Santa Casa
de São Paulo. Médico colaborador e supervisor do Núcleo de Cuidados Paliativos do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Mé-
dico Psiquiatra do Hospital Sírio Libanês, Hospital Israelita Albert Einstein e Hospital
Samaritano de São Paulo.
Marcelo Sarsur
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular de
Direito Penal no Centro Universitário Newton Paiva. Advogado criminalista, sócio
do escritório Lins & Sarsur Advogados.
Sumário. 1. Introdução. 2. Breve sumário do caso e dos argumentos das partes. 3. Delineando
o direito à vida, identicando o direito à vida e à morte dignas. 4. Considerações médicas
psiquiátricas. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro, na atualidade, ainda não contempla a pos-
sibilidade de se conferir a alguém, seja ele portador de doença incurável, seja ele
dotado de enfermidade gravíssima sem possibilidade de reversão terapêutica, seja
ele portador de sofrimento mental, a possibilidade de praticar a eutanásia passiva,
na modalidade do suicídio assistido1. À luz do Código Penal brasileiro, quem induz
1. A bem do rigor terminológico, essencial em trabalhos científ‌icos, cumpre destacar o que se entende como
eutanásia, no espaço dessa investigação. A eutanásia (boa morte) representa manobra, realizada por qualquer
pessoa, entre as quais pode se incluir o prof‌issional de saúde, por motivo altruístico, ou por misericórdia,
no intuito de abreviar a sobrevida de pessoa portadora de quadro de saúde incurável, que a priva funda-
mentalmente de qualquer bem-estar. É pressuposto da eutanásia a existência de um sujeito de direitos,
acometido por doença grave ou incurável, ou por quadro de saúde irreversível, que lhe acarreta intenso
sofrimento, e que não pode ser ef‌icazmente aliviado por outros meios menos incisivos. São elementos da
eutanásia o motivo altruístico ou misericordioso, não merecendo a alcunha de eutanásia a conduta praticada
por motivo egoístico, utilitarista ou econômico; a alteridade, não se confundindo a eutanásia com o suicídio,
exigindo-se que a eutanásia seja sempre realizada por sujeito outro que o paciente, portador de doença
grave; e a ef‌icácia da manobra, que é apta a eliminar a sobrevida do paciente, que, sem tal conduta, seria
capaz de ter sobrevida por prazo indeterminado, ainda que sem qualquer qualidade de vida. Nesse sentido,
diferencia-se a eutanásia da ortotanásia (morte correta), que nada mais é que a recusa do tratamento incapaz
de trazer melhorias na condição de saúde do paciente. A nítida distinção entre a eutanásia e a ortotanásia
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ou instiga outrem ao suicídio, ou então lhe presta auxílio, de qualquer forma, na
realização da conduta suicida, incorre nas penas previstas no artigo 122 daquele
diploma legal, recebendo a pena de reclusão, de dois a seis anos, caso se consume o
suicídio; ou de reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão
corporal de natureza grave. Se da indução, instigação ou auxílio ao suicídio não
resulta sequer a lesão corporal de natureza grave, ou se a manobra suicida sequer
for tentada, não se impõe qualquer punição ao terceiro que a induziu, instigou ou
a auxiliou.
Em outros ordenamentos jurídicos, entretanto, o suicídio assistido já foi alçado
à condição de faculdade do sujeito, acolhida pelo direito positivo. Trata-se do caso da
Suíça, onde se reconhece, de modo oblíquo, tal situação. O artigo 115 do Código Penal
Suíço de 1937 enuncia: “Aquele que, possuído por um motivo egoístico, tenha incitado
uma pessoa ao suicídio, ou lhe tenha prestado assistência para cometer suicídio, será,
se o suicídio for consumado ou tentado, punido com uma pena privativa de liberdade
de cinco anos, no máximo, ou com uma pena pecuniária”2 (tradução livre). Deste
modo, se não há motivo egoístico, inexiste crime, sendo assim possível auxiliar uma
pessoa a cometer suicídio sem receio de repercussão criminal. Não existe, no direito
suíço, diploma legal que regule, propriamente, o suicídio assistido, como ocorre nos
casos da Bélgica (Loi relative à l’euthanasie)3 e do Canadá (Bill C-14, que modif‌icou o
Código Penal canadense)4, entre outros. Tal faculdade é condicionada ao diagnóstico
e acompanhamento médico e à prescrição da substância letal, a saber, o pentobarbital
sódico, ao paciente que faça jus a este tratamento.
À luz desse quadro, um nacional suíço, Ernst G. Haas, promoveu ação contra a
Confederação Suíça perante a Corte Europeia de Direitos Humanos, em 2007. Ale-
gou o mesmo a infringência, por aquele país, do Artigo 8º da Convenção Europeia
sobre Direitos Humanos, que reconhece o direito à vida privada e familiar. Segundo
situa-se no plano da sobrevida do paciente: enquanto nesta última a cessação do tratamento fútil apenas
permite que o processo do morrer culmine com o óbito do paciente, naquela a própria manobra tem o
condão de extinguir a vida do paciente. Há também que se distinguir entre a eutanásia ativa (aquela na qual
a manobra letal é realizada diretamente pelo terceiro) e a eutanásia passiva (aquela na qual o paciente recebe
auxílio ou apoio do terceiro para, diretamente, praticar a manobra letal). Assim, é possível qualif‌icar, por
esses critérios, o suicídio assistido (situação em que uma pessoa comete suicídio com o apoio de terceiro,
prof‌issional de saúde ou não) como uma modalidade de eutanásia passiva.
2. No original em francês: “Celui qui, poussé par un mobile égoïste, aura incité une personne au suicide, ou
lui aura prêté assistance en vue du suicide, sera, si le suicide a été consommé ou tenté, puni d’une peine
privative de liberté de cinq ans au plus ou d’une peine pécuniaire”. CONFEDERAÇÃO SUÍÇA. Code pénal
suisse. Disponível em . Acesso
em 02 mai. 2018.
3. BÉLGICA. Loi relative à l’euthanasie, de 28 de maio de 2002. Disponível em
be/sites/default/f‌iles/uploads/f‌ields/fpshealth_theme_f‌ile/loi20020528mb_frnl.pdf>. Acesso em 02 mai.
2018.
4. CANADÁ. Bill C-14. An Act to amend the Criminal Code and to make related amendment to other Acts
(medical assistance in dying). Disponível em . Acesso em
02 mai. 2018.
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a ação, Haas desejava obter, para si, pentobarbital sódico, com vistas à prática do
suicídio assistido com o apoio da Dignitas, organização sem f‌ins lucrativos que se
destina a defender o direito ao suicídio assistido. Contudo, ante a ausência de uma
prescrição médica, foi-lhe negado acesso à droga almejada. Haas padecia de doença
psiquiátrica (transtorno afetivo bipolar), que lhe causava intenso sofrimento, tendo
tentado o suicídio em duas ocasiões, sem sucesso. Seu pleito foi negado no âmbito
nacional, por decisão da Corte Federal Suíça, o que motivou a ação no plano do
direito convencional europeu. O caso Haas v. Switzerland (Haas contra Confedera-
ção Suíça) foi decidido em 20 de janeiro de 2011, e julgou improcedente o pedido
do reclamante, entendendo que o procedimento imposto pelas autoridades suíças
para condicionar o acesso ao suicídio assistido não implica violação ao direito à
vida privada do autor.
Propõe-se, neste estudo, examinar o teor da decisão Haas v. Switzerland, tomada
pela Corte Europeia de Direitos Humanos, como pano de fundo para três ref‌lexões
acerca do suicídio assistido e de seu funcionamento prático. Primeiramente, cumpre
esquadrinhar os argumentos do autor da ação e do Estado suíço; em seguida, serão
examinadas as normas pertinentes da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos
e as razões de decidir empregadas no caso. Por f‌im, e a título de conclusão, pretende-
se ref‌letir sobre o impacto da decisão do caso no tratamento do suicídio assistido,
do ponto de vista do direito comparado.
2. BREVE SUMÁRIO DO CASO E DOS ARGUMENTOS DAS PARTES
A ação Haas contra a Confederação Suíça foi iniciada por uma representação,
inscrita sob o Artigo 34 da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, em 18 de
julho de 2007. O fundamento do pedido foi o Artigo 8º da Convenção, tendo o autor
protestado que o Estado suíço interferiu em seu direito de decidir como e quando
sua vida deveria se encerrar. A Corte Europeia de Direitos Humanos admitiu a ação
por decisão de 20 de maio de 2010. O Estado suíço manifestou-se nos autos, e foi
admitida, como amicus curiae, a associação Dignitas.
O autor nasceu em 1953 e, por vinte anos, padeceu com os sintomas de um
“sério transtorno afetivo bipolar”. Durante este período o autor fez duas tentativas
de suicídio e teve diversas passagens em hospitais psiquiátricos. Em 2004, Haas in-
gressou nos quadros da Dignitas, uma associação que oferece, entre outros serviços,
o suicídio assistido. Por considerar que sua doença torna sua vida indigna, o autor
procurou diversos psiquiatras, solicitando a estes a prescrição de pentobarbital
sódico para praticar o suicídio assistido com o apoio da Dignitas5.
5. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018.
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O autor tentou obter pentobarbital sódico diretamente de farmácias, sem a
prescrição médica, por intermédio da Dignitas. Seu pedido foi negado pelo Escritório
Federal de Justiça, pelo Departamento Federal de Saúde Pública, pelo Departamento
de Saúde do Cantão de Zurique e pelo Departamento Federal do Interior. Por f‌im,
Haas recorreu à Corte Federal suíça, impugnando as decisões do Departamento
Federal do Interior e da Corte Administrativa do Cantão de Zurique:
Apoiando-se em particular no Artigo 8º da Convenção, ele alegou que esta disposição garante o
direito a escolher morrer e que a interferência do Estado com este direito seria aceitável apenas
sob as condições postas no segundo parágrafo do Artigo 8º. Na opinião do autor, a obrigação de
entregar uma receita médica para obter a substância necessária para o suicídio, e a impossibilidade
de produzir tal prescrição – o que, em seu ponto de vista, era atribuível à ameaça que pairava sobre
os médicos, de terem suas licenças revogadas pelas autoridades caso receitassem a substância em
questão para pessoas com doenças mentais – representava uma interferência sobre seu direito ao
respeito por sua vida privada. Ele argumentou que, enquanto tal interferência era, admitidamente,
conforme ao direito e seguia um objetivo legítimo, ela não era, no seu caso, proporcional.6
A Corte Federal suíça, em 03 de novembro de 2006, recusou o pleito do autor
Ernst G. Haas. A Corte fundamentou que o pentobarbital sódico só pode ser obtido
mediante receituário médico; e que não houve qualquer violação do Artigo 8º da
Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, porque não se infringiu o direito do
autor em optar por morrer, mas se suscitou se o Estado tem o dever de auxiliar o
potencial suicida em levar a cabo sua decisão (DA MESMA MANEIRA, NÃO TEM
O MÉDICO O DEVE DE AUXILIAR O POTENCIAL SUICIDA A LEVAR A CABO
SUA DECISÃO, SOBREUTDO DIANTE DE UMA DOENÇA MÉDICA PSIQUIA-
TRICA COM IMPLICAÇÕES DIRETAS NA CAPACIDADE DE AJUIZAMENTO
DA REALIDADE DE AUTO-DETERMINAÇÃO, SENDO ESSAS CONDIÇÕES,
CINLUSIVE, SINTOMAS MANIFESTOS DA DOENÇA MENTAL:
6.2.1. O direito a escolher morrer, o qual não está em discussão aqui, deve, contudo, ser distinguido
do direito à assistência no suicídio por parte do Estado ou de terceiros. A princípio, tal direito não
pode ser inferido nem do Artigo 10, parágrafo 2, da Constituição Federal [que consagra a liberdade
individual] ou do Artigo 8º da Convenção; um indivíduo que deseja morrer não tem um direito em ser
assistido no cometimento do suicídio, seja pelo oferecimento dos meios necessários ou pela assistência
ativa quando ele ou ela não é capaz de encerrar sua própria vida (LEVANDO EM CONSIDERAÇÃO
O MÉTODO PARA FINDAR A VIDA, NESSE CASO, BASTARIA O SOLICITANTE CONSOLIDAR O
SUICIDO ATRAVES DE METODO QUE NÃO ENVOLVESSE O ESTADO OU TECEIROS)... O Estado
tem uma obrigação fundamental de proteger a vida. (A MEDICINA TAMBÉM TEM COMO OBRIGA-
ÇÃO FUNDAMENTAL PROTEGER A VIDA) Admitidamente, tal proteção não é geralmente estendida
contra a vontade de uma pessoa que é capaz de formar suas próprias visões... Não obstante, disso não
resulta que o Estado tem uma obrigação positiva de assegurar que uma pessoa que deseja morrer tenha
acesso a uma substância perigosa, escolhida para ns de suicídio, ou às ferramentas que se pretende
usar para tal propósito. Nessas circunstâncias, o direito à vida garantido pelo Artigo 2º da Convenção
6. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de 2011.
Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018. Tradução livre.
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obriga o Estado, no mínimo, a instaurar um procedimento para assegurar que uma decisão de cometer
suicídio corresponda, de fato, à vontade livre do indivíduo em questão...
(...)
O caso de Pretty (como aquele caso Rodriguez) não é comparável ao caso em exame: a liberdade do
autor de cometer suicídio, e consequentemente a impunidade de um indivíduo que poderia prover
assistência para tal m, dado que ele ou ela não está agindo com motivos egoísticos (Artigo 115 do
Código Penal), não está em questão aqui. A matéria em disputa é se, com base no Artigo 8º, o Estado
deve tomar medidas para garantir que o autor será capaz de encerrar sua vida sem dor e sem risco de
falha, e que, por consequência, ele seja capaz de obter o pentobarbital sódico sem uma receita médica,
em derrogação da legislação. (...) De modo a garantir efetivamente a liberdade de escolher o m da
própria vida, derivado do Artigo 8º, § 1 da Convenção, não é necessário autorizar a disponibilidade
irrestrita do pentobarbital sódico, mesmo se esta substância é, supostamente, altamente adequada
para o ato de cometer suicídio. O mero fato de que soluções diferentes que o pentobarbital sódico
acarretem riscos maiores de falha e maiores dores não é suciente para justicar a concessão, sem
receita, desta substância para ns de suicídio. Uma obrigação positiva como esta não pode ser extraída
nem do Artigo 10, § 2 da Constituição Federal nem do Artigo 8º da Convenção...
(...)
A obrigação de obter uma receita para o pentobarbital sódico é uma garantia de que os médicos
não ministrarão esta substância sem que todas as condições necessárias tenham sido atendidas,
já que, de outro modo, eles estariam abertos a sofrer sanções criminais, civis ou disciplinares...
Ela protege indivíduos contra decisões apressadas e irreetidas... e garante a existência de uma
justicação médica para a ação (A JUSTIFICAÇÃO MÉDICA PARA UM PACIENTE PORTADOR
DE DOENÇA MENTAL GRAVE OBTER ACESSO AO SUICIDIO NÃO É CONSENSUAL NA LITE-
RATURA MÉDICA, NÃO HAVENDO CRITÉRIOS OBJETIVOS DE TERMINALIDADE DA VIDA
EM DOENÇA PSIQUIÁTRICA, TAMPOUCO CRITÉRIOS PARA DEFINIÇÃO DE AUTONOMIA).
... Uma interferência potencial com o direito à autodeterminação protegido pelo Artigo 8º da
Convenção tem apenas um peso relativo em face das consequências vinculadas à ministração do
pentobarbital sódico para o propósito do suicídio. ... Em contraste, a proteção da vida, a proibição
do homicídio e a delimitação desta proibição em face do suicídio assistido, que não é, a priori,
sujeita a penalidades, representam um interesse público signicativo. ...
(...)
Em conclusão, é apropriado notar que – ao contrário do que alega o autor – nem o Artigo 8º da
Convenção, nem o Artigo 10 § 2 da Constituição Federal... impõe uma obrigação ao Estado para
fornecer, sem receituário médico, pentobarbital sódico para organizações para o suicídio assis-
tido ou para pessoas que desejam encerrar suas vidas. A exigência de uma receita médica para
o pentobarbital sódico tem uma base legal, é dirigida a proteger a segurança e a saúde públicas
e para manter a ordem no interesse público, e é também uma medida proporcional e necessária
numa sociedade democrática. Ao sopesar os interesses em jogo, nominalmente a proteção da
vida – que requer, como vericação (mínima), em cada caso concreto, se as decisões dos indiví-
duos em terminar suas vidas correspondem genuinamente à sua vontade livre e reetida quando
optarem pelo suicídio assistido usando um produto submetido à legislação sobre drogas ou
produtos medicinais – e o direito individual à autodeterminação, o Estado permanece livre – do
ponto de vista do direito constitucional ou da Convenção – a assentar certas condições e, nesse
contexto, a manter, inter alia, a obrigação de se obter uma receita para o pentobarbital sódico.7
7. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de 2011.
Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018. Tradução livre.
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Após a decisão negativa da Corte Federal suíça, o peticionário Haas enviou,
em 02 de maio de 2007, cartas a 170 psiquiatras, pedindo que estes o atendessem
para uma consulta, de modo a obter a receita de pentobarbital sódico. Nenhum dos
médicos consultados atendeu ao pedido do autor, sejam alegando falta de tempo ou
de competência para atender a demanda, ou por razões éticas. Outros prof‌issionais
ainda alegaram que a doença do requerente era tratável8.
O autor, em suas razões à Corte, alegou que teria, conforme o Artigo 8º da
Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, o direito a dar cabo da própria vida,
e que tal direito era embaraçado por exigências desproporcionais, formuladas pelo
Estado suíço. Sustentou Haas que a ingestão de pentobarbital sódico
era o único método digno, certo, rápido e indolor de cometer o suicídio. Ademais, o fato de que
nenhum dos 170 psiquiatras atuando na região de Basle contatados por ele estava disposto a
ajudá-lo era, em sua opinião, prova de que era impossível satisfazer as condições postas pela
Corte Federal.9
Haas ainda alegou que seu desejo de se matar era inequívoco, e que não existe
necessidade em demonstrar a seriedade de seu intento, seja por uma análise psiquiá-
trica mais aprofundada, seja por um acompanhamento psiquiátrico por um período
alongado. Ao se demandar a obtenção de uma receita médica, e diante da ausência
de prof‌issionais dispostos a ajudá-lo nesse objetivo, o direito do autor a decidir seu
próprio f‌im de vida estava sendo violado.
O Estado suíço entendeu, entre outros argumentos, que as limitações impostas
por aquele país ao fornecimento de pentobarbital sódico estariam amparadas pelo
Artigo 8º, § 1 da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos. Segundo o Estado,
ao autor estavam disponíveis outros métodos para cometer o suicídio, sem que
fosse empregada a substância pleiteada. Entendeu-se, ainda, que as limitações ao
fornecimento do pentobarbital sódico estariam amparadas pelo parágrafo segundo
do Artigo 8º da Convenção, atendendo à proteção da saúde e segurança públicas e
à prevenção dos crimes.10
Dentre os argumentos do Estado suíço, destaca-se:
(...) o Governo armou que, em psiquiatria, o desejo de cometer suicídio era visto como um
sintoma de doença mental, para a qual a resposta apropriada era a terapia competente. Em
sua visão, era, portanto, necessário traçar uma distinção entre o desejo de cometer suicídio
8. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018.
9. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018. Tradução
livre.
10. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018.
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como uma expressão de doença e o desejo de cometer suicídio como uma decisão autônoma,
considerada e rme. Dada a complexidade das doenças mentais e seu desenvolvimento dife-
renciado, tal distinção não poderia ser feita sem uma análise aprofundada, por um período de
tempo que tornaria possível vericar a consistência do desejo de cometer suicídio. Tal exame
necessitaria de conhecimento psiquiátrico aprofundado e poderia ser conduzido apenas por
um especialista.
(...) O Governo ainda armou que a obrigação de apresentar uma certicação médica impli-
cava certas ações por parte do autor. Em sua visão, contudo, elas não pareciam insuperáveis
se sua escolha de cometer o suicídio resulta de uma decisão autônoma e rme. Tal obrigação
representaria um meio apropriado e necessário para proteger a vida de pessoas vulneráveis cuja
decisão de cometer suicídio seria baseada numa crise temporária que alterou sua capacidade de
discernimento. É bem sabido que muitos suicídios não eram uma resposta a um desejo genuíno
de morrer, mas era mais um pedido de socorro, dirigido a atrair a atenção das pessoas próximas
para um problema. Assim, facilitar o acesso ao suicídio assistido poderia resultar em empurrar
tais indivíduos a usar um método infalível de terminar suas vidas.11
A discussão posta perante a Corte Europeia de Direitos Humanos foi encarada
de formas diferentes pelas partes: enquanto, para o autor Haas, a questão situava-se
no âmbito do direito à vida privada, e na faculdade de o sujeito escolher os termos de
sua própria morte, o Estado suíço, ora demandado, centrou-se na proibição de acesso
amplo ao pentobarbital sódico sem receituário médico, entendendo tais limitações
como proporcionais, lícitas e necessárias ao bem-estar coletivo.
3. DELINEANDO O DIREITO À VIDA, IDENTIFICANDO O DIREITO À VIDA E
À MORTE DIGNAS
Quando se argui, como em Haas v. Switzerland, o conteúdo do chamado “direito
à vida”, ou, ainda, do “direito à vida privada”, cumpre examinar no que consistem tais
direitos. A Convenção Europeia sobre Direitos Humanos assim versa sobre o tema:
Artigo 2º. Direito à vida.
1. O direito à vida de qualquer pessoa será protegido pela lei. Ninguém será privado de sua vida
intencionalmente, exceto quando da execução de uma sentença de um tribunal, que determina
sua condenação por um crime para o qual esta pena é prevista por lei.
2. A privação da vida não será considerada como causada em violação deste Artigo quando
resulta do uso da força que não é mais do que a absolutamente necessária:
a) na defesa de qualquer pessoa contra violência ilícita;
b) de modo a efetuar uma prisão legal ou prevenir a fuga de uma pessoa detida licitamente;
c) em ação tomada licitamente a m de dispersar uma revolta ou insurreição.
11. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018. Tradução
livre.
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Artigo 8º. Direito ao respeito à vida privada e familiar.
1. Todos têm o direito ao respeito à sua vida privada e familiar, seu domicílio e sua correspondência.
2. Não haverá interferência por uma autoridade pública no exercício deste direito exceto con-
forme a lei e quando for necessário, numa sociedade democrática, pelo interesse da segurança
nacional, da segurança pública ou do bem-estar econômico do país, para a prevenção da desor-
dem ou do crime, para a proteção da saúde ou da moral, ou para a proteção dos direitos e das
liberdades de terceiros.12
Salta aos olhos, desde logo, que o direito à vida – como qualquer direito, ressalte-
se – não é um direito absoluto. Embora esteja protegida pela ordem jurídica, a vida
pode ser objeto da execução da sanção capital, quando prevista em lei (Artigo 2º, 1,
in f‌ine). Também é possível privar alguém da vida em situações de legítima defesa,
ou na defesa da ordem pública, seja por ação de agente estatal, seja por parte de ter-
ceiro. A proteção da vida, assegurada pelo direito, não tem a pretensão de impedir o
f‌im da vida por causas naturais, porque tal objetivo seria patentemente impossível;
tal comando jurídico se dirige, basicamente, a dois destinatários: ao particular, que
não pode privar seu semelhante da vida (a criminalização do homicídio atende a
esse objetivo), e ao próprio Estado, que não pode impor a uma pessoa humana a
pena de morte sem o devido processo legal.
Já o direito ao respeito à vida privada impõe o reconhecimento de um espaço
inviolável da pessoa, insuscetível de ingerências estatais: a vida privada e familiar,
o âmbito do domicílio e da correspondência. Reconhece-se, pela dicção do Artigo
da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, a autonomia privada, enquanto
plano de realização da dignidade humana. Em sua origem, os direitos fundamentais
representavam um anteparo contra os abusos do Estado, mormente à luz da experi-
ência histórica europeia, na qual a autoridade monárquica, amparada nos preceitos
religiosos, tentou impor, à força, a fé na igreja of‌icial do Estado, sob pena de degredo,
conf‌isco, tortura ou morte. Quando a fonte da legitimidade do Estado deixa de ser a
fé e passa a ser o consentimento dos governados, não mais súditos, mas cidadãos, o
Estado se converte em árbitro indiferente nas questões de foro íntimo. Não mais se
sustenta uma religião of‌icial, em detrimento das demais, mas se reconhece, a cada
um, as liberdades de convicção religiosa e política que melhor lhe aprouverem. Não
basta que se reconheça a alguém o direito à vida, se não é dado a essa mesma pessoa
viver de acordo com suas convicções, crenças, preferências e vontades. Viver, para
o ser humano, não é mero processo biológico, mas realizar, a cada momento, a sua
individualidade, tornar-se pessoa.
Mas é possível que exista contradição entre o direito à vida e o reconhecimento
da autonomia individual? Caso o sujeito decida por seu autoextermínio, pode o
12. CONSELHO DA EUROPA; CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. European Convention on
Human Rights. Disponível em .coe.int/Documents/Convention_ENG.pdf>. Acesso em
02 mai. 2018.
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Estado intervir nessa decisão, impedindo-o de se matar? Até que ponto pode um
sujeito controlar seu destino, e até que ponto pode o Estado exercer alguma forma
de ingerência sobre tais decisões? Dito de outro modo: o direito à vida é oponível
contra terceiros e contra o próprio Estado, mas seria ele oponível contra seu próprio
titular? É a vida um direito indisponível?
Vale dizer que, muito antes das primeiras declarações de direitos humanos,
quando o direito estatal ainda não havia se diferenciado do direito eclesiástico e da
moral religiosa, a proscrição do suicídio encontrava assento nos textos normativos,
inclusive criminais. Encontram-se, nas obras dos f‌ilósofos da Ilustração, protestos
contra a criminalização do suicídio, que não raro recaía sobre a família do morto, e
não sobre o autor da conduta. Assim retratava Voltaire tais comandos normativos:
Depois de falar daqueles que matam o próximo, convém dizer uma palavra sobre os que matam
a si mesmos. Pouco se lhes dá, aos que estão bem mortos, se na Inglaterra a lei ordena que eles
sejam arrastados pelas ruas com um pau atravessado no corpo, ou que, em outros Estados, os
bons juízes criminalistas mandem dependurá-los pelos pés e consquem seus bens; mas a seus
herdeiros importa muito. Não vos parece cruel e injusto despojar um lho da herança do pai,
unicamente porque está órfão? Esses antigos costumes, hoje negligenciados mas nem por isso
abolidos, eram outrora leis sagradas: pois a Igreja repartia com o senhor feudal, fosse ele rei ou
barão, o dinheiro, a terra e os bens móveis do homem que se desgostara da vida. Era ele visto
como um escravo que fugira ao senhor, e tomavam-lhe o pecúlio.
(...)
Tudo o que se disse para dissuadir dessa ação, descrita ora como corajosa, ora como covarde,
resume-se a isto: pertenceis à república; não vos é permitido abandonar o posto sem ordem dela.13
O movimento de reforma das legislações criminais, ocorrido no f‌inal do século
XVIII na Europa e em larga parcela dos países do Ocidente, fez triunfar a ideia de
que a criminalização do suicídio seria inócua, por recair sobre o corpo morto, ou
violadora do princípio da individualização das penas, por recair sobre pessoa diversa
daquele que praticou a conduta. Nesse sentido, reproduz-se a lição de Cesare Beccaria:
Suicídio é crime que parece não poder admitir pena, propriamente dita, pois ela só poderia incidir
sobre inocentes, ou sobre o corpo frio e insensível. Se, neste último caso, a pena não há de im-
pressionar os vivos mais do que o chicotear uma estátua, no primeiro caso, ela é injusta e tirânica,
porque a liberdade política dos homens supõe necessariamente que as penas sejam estritamente
pessoais. (...) Quem teme a dor obedece às leis, mas todas as fontes dessa dor se extinguem no
corpo pela morte. Qual será, então, o motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida?14
Apesar de os Códigos Penais modernos não mais contemplarem a punição pela
tentativa de suicídio, ou pelo suicídio consumado, ainda persiste – a exemplo do
Código Penal suíço e do Código Penal brasileiro – a punição da conduta de indução,
13. VOLTAIRE. O preço da Justiça. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 22-23.
14. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. José Cretella Júnior e Agnes Cretella. 3. ed. rev. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006. p. 90.
Morte Digna nos Tribunais.indb 203Morte Digna nos Tribunais.indb 203 11/05/2020 16:41:5911/05/2020 16:41:59
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instigação e auxílio ao suicídio. A diferença reside no fato de que, de acordo com a
legislação suíça, faz-se a exigência de que a conduta suicida tenha sido favorecida
por motivos egoísticos, ressalva que a legislação penal brasileira não faz. De acordo
com o Código Penal brasileiro, o suicídio assistido representa ilícito penal, mesmo
quando praticado com motivo altruístico, com a intenção de abreviar o sofrimento
do paciente e a pedido deste. Adverte Cezar Roberto Bitencourt:
O suicídio ofende interesses morais e éticos do Estado, e só não é punível pela inocuidade de
tal proposição. No entanto, a ausência de tipicação criminal dessa conduta não lhe afasta
a ilicitude, já que a supressão de um bem jurídico indisponível caracteriza sempre um ato
ilícito. (...) O ordenamento jurídico vê no suicídio um fato imoral e socialmente danoso, que
deixa de ser penalmente indiferente quando concorre com a atividade da vítima outra energia
individual provinda da manifestação da vontade de outro ser humano. E é exatamente sua
natureza ilícita que legitima, excepcionalmente, a coação exercida para impedi-lo (art. 146,
§ 3º, II, do CP), sem constituir o crime de constrangimento ilegal. Assim, embora não seja
considerado crime (faltando-lhe tipicidade e culpabilidade), constata-se que o suicídio não é
indiferente para o Direito Penal. E, para reforçar a proteção da vida humana ante a diculdade
e inocuidade em punir o suicídio, o legislador brasileiro, com acerto, pune toda e qualquer
participação em suicídio, seja moral, seja material. A repressão, enm, da participação em
suicídio é politicamente justicável, e a sanção penal é legitimamente aplicável, objetivando
suas nalidades declaradas.15
Também no âmbito do Direito Constitucional se encontra a ideia de que a vida
é bem indisponível, que nem sequer pode ser renunciado por seu titular:
Sendo um direito, e não se confundindo com uma liberdade, não se inclui no direito à vida a opção
por não viver. Na medida em que os poderes públicos devem proteger esse bem, a vida há de ser
preservada, apesar da vontade em contrário do seu titular. Daí que os poderes públicos devem
atuar para salvar a vida do indivíduo, mesmo daquele que praticou atos orientados ao suicídio.16
Ora, a ordem jurídica se destina a regular as relações entre pessoas, ou entre as
pessoas e o Estado, mas nunca a relação do sujeito consigo mesmo. À lei é indiferente
que uma pessoa cuide de seus próprios interesses, se alimente corretamente, pratique
exercícios, gaste seu tempo e seus bens de modo que melhor produza resultados para
ela mesma. Protege-se a pessoa contra as agressões de terceiros, mas não daquelas
feitas por ela mesma. Não há, no direito positivo, qualquer preceito que sancione a
autolesão. Tampouco há a imposição de qualquer sanção a quem pratica manobras
suicidas, seja em caso de consumação do resultado, seja em caso de tentativa. No
primeiro caso, afrontar-se-ia a lógica, ao impor castigo a um objeto insensível, que
é o cadáver; no segundo caso, afrontar-se-ia a humanidade das punições, aplicando
castigo sobre pessoa já f‌lagelada pelas repercussões de seu próprio ato, e para quem
15. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. V. 2. Crimes contra a pessoa. 17.
ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 151-152.
16. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev.
atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 260.
Morte Digna nos Tribunais.indb 204Morte Digna nos Tribunais.indb 204 11/05/2020 16:41:5911/05/2020 16:41:59
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MORTE DIGNA NA SUÍÇA: ANÁLISE DO CASO HASS
a imposição da sanção não representa elemento capaz de dissuadi-la a fazer nova
tentativa, num momento posterior. Dizer que o suicídio é contrário ao direito é
inócuo, vez que, sem a imposição de sanções, a proibição despe-se de caráter jurí-
dico e passa a ter conteúdo exclusivamente moral; é conselho, não norma jurídica
imperativa. Tampouco é possível falar num direito ao suicídio, vez que tal direito não
corresponde a um dever de abstenção de terceiros. Pelo contrário: o Estado brasileiro
legitima até mesmo o emprego de coação física para impedir a realização do suicí-
dio, a teor do disposto no artigo 146, § 3º, inciso II do Código Penal17. Do mesmo
modo, é exigível do Estado que preste socorro a quem praticou manobra suicida,
tentando preservar a vida daquela pessoa mesmo contra sua vontade expressa. O
suicídio, enquanto ação individual, está fora do alcance do direito. É ato de vontade
e de força, não ato jurídico18.
Ainda que se deseje extrair, a partir do reconhecimento da inviolabilidade da
vida privada, um direito pressuposto ao suicídio, tal conclusão não mereceria acolhi-
da. No direito brasileiro, o Estado legitima até mesmo o ingresso não autorizado no
domicílio de uma pessoa que tenta o suicídio, quando se tem como objetivo prestar
socorro19. O suicídio é expressão da vontade individual, que independe de beneplá-
cito do Estado: não há direito ao suicídio, nem tampouco há como se impedir que
o mesmo venha a ocorrer.
Em resumo, o suicídio não pode ser def‌inido como um direito, porque não
há dever correspondente de se abster de interferir em tal ato; nem tampouco como
um ilícito, porque não existem sanções cominadas a quem pratica o suicídio, em
sua modalidade tentada ou consumada. O suicídio foge à dinâmica binária do or-
denamento jurídico, representando um fato jurídico, e não uma conduta dirigida a
terceiros e, portanto, suscetível de regulação.
A assistência ao suicídio, contudo, pode ser proibida, em maior ou menor grau
(como ocorre no Brasil ou na Suíça), ou mesmo regulada (como ocorre na Bélgica e
no Canadá, entre outros países). No caso, trata-se da ação de interposta pessoa, que
colabora para a realização da manobra suicida sem, contudo, produzi-la diretamente.
A realização do suicídio ainda é ato do próprio sujeito, mas dotada do apoio, acom-
17. Artigo 146, § 3º, inciso II, Código penal brasileiro: “Constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer
o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
(...) Não se compreendem na disposição deste artigo: (...) a coação exercida para impedir suicídio.”
18. Tomando-se o suicídio como um ato de vontade e de força, no que tange a psicopatologia e, muitas vezes,
as distorções volitivas de uma pessoa acometida por uma doença psiquiátrica, não se pode determinar
que um ato suicida esteja puramente atrelado à vontade individual, ao contrário, muitas vezes estando a
vontade subjugada ao viés cognitivo e afetivo de uma doença mental.
19. Nesse sentido, destaque-se o artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:
“A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador,
salvo em caso de f‌lagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação
judicial”.
Morte Digna nos Tribunais.indb 205Morte Digna nos Tribunais.indb 205 11/05/2020 16:41:5911/05/2020 16:41:59
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panhamento e auxílio de pessoa diversa. Assim, por se tratar de conduta realizada
em face de terceiro, admite-se a intervenção do direito.
A decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Haas v. Switzerland,
depreende, a partir do Artigo 8º da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos,
a existência de um direito à vida digna, que perdura até mesmo quando o sujeito se
acha em estado terminal:
50. Como a Corte já destacou em ocasião anterior, o conceito de “vida privada” é um termo
amplo, não suscetível a denição exaustiva. Ele cobre a integridade física e psicológica de uma
pessoa (...). O Artigo 8º também protege um direito ao desenvolvimento pessoal, e o direito a
estabelecer e desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e com o mundo exterior
(...). No caso Pretty (citado acima, § 67), a Corte sustentou que a escolha da autora por evitar o
que ela considerava um m indigno e incômodo para sua vida recaía dentro do alcance do Artigo
da Convenção [Europeia sobre Direitos Humanos].
51. À luz destes precedentes, a Corte considera que o direito de um indivíduo de decidir por quais
meios e em que ponto a vida dele ou dela se encerrará, dado que ele ou ela é capaz de alcançar
livremente uma decisão sobre esta questão e agir de acordo com a mesma, é um dos aspectos do
direito ao respeito à vida privada, dentro do sentido do Artigo 8º da Convenção.20
Dito de outro modo, a Corte Europeia de Direitos Humanos reconhece não
apenas o direito à recusa de tratamento médico, mas também um pretenso direito ao
suicídio, dentro do escopo do Artigo 8º da Convenção Europeia sobre Direitos Huma-
nos, desde que o sujeito seja capaz de decidir sobre tais questões, e de agir conforme
sua escolha. O suicídio, quando desacompanhado, é decisão de foro íntimo, sobre
a qual o Estado não pode interferir.
Contudo, no caso Haas, a Corte entendeu que a situação se diferencia, de modo
sensível, do caso Pretty:
52. Na opinião da Corte, contudo, o caso em exame deve ser distinguido do caso Pretty,
supracitado. Como a Corte Federal, considera-se que é apropriado enunciar, desde o início,
que o caso em exame não lida com a liberdade de morrer e possível imunidade para uma
pessoa que presta assistência em um suicídio. O tema de discussão neste caso é se, sob o
Artigo 8º da Convenção, o Estado deve assegurar que o autor possa obter uma substância
letal, pentobarbital sódico, sem uma receita médica, por via da derrogação da legislação, de
modo a cometer suicídio sem dor e sem risco de falha. Em outras palavras, diferentemente do
caso Pretty, a Corte observa que o autor alega não apenas que sua vida é difícil e dolorosa,
mas também que, se ele não obtiver a substância em questão, o ato do suicídio em si seria
despido de dignidade. Ainda, e novamente em contraste ao caso Pretty, o autor não pode,
de fato, ser considerado enfermo, no sentido de que ele não está no estágio terminal de uma
doença degenerativa incurável que o preveniria de tirar sua própria vida (conra-se, de modo
oposto, o caso Pretty, citado acima, § 9).
20. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018. Tradução
livre.
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53. A Corte considera que é apropriado examinar o pleito do autor em obter acesso ao pento-
barbital sódico sem uma receita médica a partir da perspectiva de uma obrigação positiva do
Estado em tomar as medidas adequadas para permitir um suicídio com dignidade. Isto pressupõe
um sopesamento dos interesses diferentes em jogo, um exercício no qual se reconhece que o
Estado desfruta de uma certa margem de apreciação (...), o que varia de acordo com a natureza
das questões e a importância dos interesses em jogo. Da sua parte, a Corte possui jurisdição para
rever, in ne, se a decisão doméstica atende aos requisitos da Convenção (conferir Pretty, citado
acima, § 70).21
Entendeu a Corte, no caso Haas, que a matéria submetida à sua apreciação não
era, como no caso Pretty, a existência de uma prerrogativa do sujeito em decidir
como se dará o f‌im de sua vida – questão claramente amparada pelo Artigo 8º da
Convenção Europeia sobre Direitos Humanos –, mas se o Estado é obrigado a forne-
cer os meios para a execução da manobra suicida de forma indolor e bem-sucedida.
Mudou-se o enfoque: do direito individual às próprias decisões sobre sua vida, saúde
e bem-estar para o âmbito das políticas públicas de proteção do direito à vida e de
prevenção ao suicídio.
Tendo em vista a totalidade da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos,
que determina o direito à vida em seu Artigo 2º, e as condições presentes nos ordena-
mentos jurídicos da União Europeia, a Corte decidiu por sustentar o posicionamento
do Estado suíço, nos seguintes termos:
56. Com respeito ao balanceamento dos interesses em competição neste caso, a Corte é simpática
ao desejo do autor de cometer suicídio de uma forma segura e digna e sem dor e sofrimento des-
necessários, particularmente dado o alto número de tentativas de suicídio que são malsucedidas
e que, frequentemente, acarretam sérias consequências para os indivíduos envolvidos e para suas
famílias. Contudo, é da opinião que as regras postas pelas autoridades suíças, nominalmente a
exigência de obter uma receita médica, buscam, inter alia, as nalidades legítimas de proteger a
todos contra decisões afoitas e prevenir abusos e, no particular, de garantir que um paciente que
carece de discernimento não obtenha uma dose letal de pentobarbital sódico (...).
57. Tais regulações são ainda mais necessárias em relação a um país como a Suíça, onde a le-
gislação e a prática admitem um acesso relativamente fácil ao suicídio assistido. Onde um país
adota uma abordagem liberal nesse sentido, medidas de implementação apropriadas nesse campo
e medidas preventivas são necessárias. A introdução de tais medidas é também direcionada a
prevenir que organizações que prestam assistência no suicídio atuem ilegalmente e em segredo,
com risco signicativo de abuso.
58. Em particular, a Corte considera que os riscos de abuso inerentes a um sistema que facilita o
acesso ao suicídio assistido não devem ser subestimados. Como o Governo, é da opinião que a
restrição ao acesso ao pentobarbital sódico é feita para proteger a saúde e a segurança públicas
e para prevenir o crime. Sobre esse tema, compartilha da visão da Corte Federal, que o direito à
vida assegurado pelo Artigo 2º da Convenção obriga os Estados a estabelecer um procedimento
capaz de assegurar que uma decisão de encerrar a vida de alguém corresponde, de fato, à livre
21. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018. Tradução
livre.
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vontade do indivíduo em questão. Considera-se que a exigência de uma receita médica, emitida
com base numa análise psiquiátrica complete, é um meio que permite que tal obrigação seja
atendida. Ademais, esta solução corresponde ao espírito da Convenção das Nações Unidas sobre
Substâncias Psicotrópicas e as convenções adotadas por certos Estados membros do Conselho
da Europa.
(...)
61. Com atenção ao já mencionado e à margem de apreciação posta à disposição das autoridades
nacionais num caso como o presente, a Corte considera que, mesmo assumindo que os Estados
têm uma obrigação positiva de adotar medidas para facilitar o ato de suicídio com dignidade, as
autoridades suíças não falharam em cumprir com esta obrigação no caso em exame.
Por conseguinte, não há violação do Artigo 8º da Convenção.22
A decisão do caso Haas não af‌irma, em qualquer momento – e contrariamente
à pretensão do autor –, a existência de um direito fundamental à assistência no suicí-
dio. Embora cada pessoa seja livre para determinar seu próprio destino, aí incluído
o direito a encerrar sua própria vida, não surge dessa prerrogativa uma obrigação
para o Estado em fornecer os meios de preferência do sujeito para a prática do sui-
cídio. Em suma, a Corte Europeia de Direitos Humanos entendeu que as restrições
ao acesso ao pentobarbital sódico são válidas, pelo balanceamento entre o interesse
estatal em proteger a vida e o direito individual à morte digna.
4. CONSIDERAÇÕES MÉDICAS PSIQUIÁTRICAS
O caso Haas v. Switzerland convoca para ref‌lexão acerca das controvérsias e dos
dilemas no campo ético e clínico da psiquiatria, como a discussão de terminalidade
em doenças psiquiátricas, a autonomia de um paciente psiquiátrico, os limites entre
a ideação suicida e o desejo de abreviar a vida e o papel do prof‌issional de saúde
nessas circunstâncias, sobretudo nos procedimentos de morte assistida, como a
eutanásia e o suicídio assistido.
O desejo por abreviação da vida é um fenômeno que envolve questões com-
plexas e tem uma fronteira imprecisa com a ideação suicida. A intenção suicida
pode se manifestar através de uma vontade passiva de morrer sem planejamento,
pedido por ajuda para morrer ou uma vontade ativa e planejamento de matar-se23.
Comportamentos autodestrutivos que vão desde a interrupção do uso de medica-
ção capaz de reduzir mortalidade (p.ex.: um paciente transplantado que deixa de
tomar as medicações imunossupressoras com rápida evolução para rejeição aguda
do órgão transplantado ou um paciente com insuf‌iciência renal dialítica que deseja
22. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Haas v. Switzerland. Caso decidido em 20 de janeiro de
2011. Disponível em . Acesso em 02 mai. 2018. Tradução
livre.
23. Hudson PL, Schof‌ield P, Kelly B et al. Responding to desire to die statements from patients with advanced
disease: recommendations for health professionals. Palliat Med. October 2006;20(7):703-710.
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interromper a hemodiálise) até fumar ou não aderir a intervenções dietéticas24. O
desejo pela abreviação da vida está presente de maneira mais signif‌icativa em pacien-
tes com doenças avançadas, variando de 25 a 39.8% em paciente oncológicos, 12%
em pacientes com AIDS25 principalmente naqueles com diagnóstico de depressão
(risco 4 vezes maior de apresentar desejo de abreviar a vida do que pacientes sem
depressão)26, baixa religiosidade, baixo status funcional e com maior sofrimento por
sintomas físicos, sociais e psicológicos27. Uma revisão sistemática da literatura, Hud-
son et al identif‌icou os fatores de risco mais comuns para o desejo de abreviação da
vida, incluindo sentimento de ser um problema para os outros, perda de autonomia
para decidir sobre a própria morte, sintomas físicos não controlados (p.ex.: dor),
depressão e desesperança, sofrimento existencial e medo do futuro especif‌icamente
no que diz respeito ao controle da dor28.
A prevalência de depressão em pacientes com doenças avançadas é elevada
mesmo aplicando-se rigor nos instrumentos e critérios diagnósticos utilizados. Um
estudo meta-analítico encontrou prevalência de transtorno depressivo maior em
16.5% dos pacientes oncológicos, hematológicos e em Cuidados Paliativos29. Outro
estudo encontrou uma prevalência de 58% de depressão em pacientes com doenças
avançadas que apresentavam desejo intenso de antecipar a morte. Ademais, pacientes
deprimidos tem um risco de suicídio 25 vezes maior comparado a população geral,
além disso a depressão é um fator presente em 50% dos suicídios30.
As mortes causadas pela eutanásia e pelo suicídio assistido crescem rapidamen-
te nos últimos anos, tendo atingido a proporção de 1 morte por eutanásia a cada
30 na Holanda, três vezes mais desde a sua legalização em 2002. Na Bélgica essa
proporção é ainda maior, chegando a 1 morte por eutanásia a cada 22, além disso,
a aprovação dos pedidos de eutanásia também cresceu, de 55% em 2007 para 77%
em 2013, demonstrando ampliação dos critérios de inclusão de pacientes para tal
24. Mishara BL. Synthesis of research evidence on fator affecting the desire of terminally ill or serious chroni-
cally ill persons to hasten death. Omega.1999;39(1)1-70.
25. Emmanuel EJ, Fairclough DL, Daniels ER, Clarridge BR. Euthanasia and physician assisted suicide: A
comparative survey of physicians, terminally-ill cancer patients, and the general population. Lancet. 1996;
347:1805-1810
26. Bretibart W, Rosenfeld B, Pessin H, et al. Depression, hopelessness, and desire for hastened death in ter-
minally ill patients with cancer. JAMA. December 13, 2000; 284(22):2907-2911.
27. Bretibart W, Rosenfeld B, Pessin H, et al. Depression, hopelessness, and desire for hastened death in ter-
minally ill patients with cancer. JAMA. December 13, 2000; 284(22):2907-2911.
28. Hudson PL, Kristjanson LJ, Ashby M, et al. Desire for hastened death in patients with advanced disease
and evidence base of clinical guidelines: a systematic review. Palliat Med. October 2006;20(7):703-710.
29. Mitchell AJ, Chan M, Bhatti H, et al. Prevalence of depression, anxiety and adjustment disorder in onco-
logical, hematological and palliative-care settings: a meta-analysis of 94 interview-based studies. Lancet
Oncol 2011;12:160-174
30. Chochinov HM, Wilson KG, Enns M, et al. Desire for death in the terminally ill. Am J Psychiatry. August
1995;152(8):1185-1191
Morte Digna nos Tribunais.indb 209Morte Digna nos Tribunais.indb 209 11/05/2020 16:41:5911/05/2020 16:41:59
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procedimento, abarcando populações vulneráveis como idosos, pobres, minorias,
pessoas com baixo suporte familiar e pacientes psiquiátricos31.
Diante do exposto, os transtornos psiquiátricos severos e persistentes desaf‌iam
os prof‌issionais de saúde a garantir qualidade de vida e dignidade em detrimento
de remissão ou modif‌icação da doença, e isso não signif‌ica matar o paciente. Assim,
o investimento de todos os cuidados paliativos disponíveis para esses pacientes
ocasionaria uma redef‌inição dos objetivos terapêuticos com consequente melhora
qualitativa do cuidado e, por sua vez redução da busca por procedimentos de morte
assistida32.
Um documento da Associação Holandesa de Psiquiatria é utilizado na Bélgica
com a f‌inalidade de instrumentalizar os médicos na condução dos pedidos de eu-
tanásia por pacientes psiquiátricos, no qual propõe: a) qualquer intervenção tera-
pêutica deve oferecer uma possibilidade real de melhora, b) o tratamento deve ser
administrado por um tempo razoável e c) deve ser ponderado o benefício e potencial
malefício causado pelo tratamento. Para isso, operacionaliza uma abordagem que
compreende 4 caminhos: a) uma avaliação psiquiátrica rigorosa para determinar
diagnóstico psiquiátrico, estado mental e histórico através de revisão sistemática do
prontuário médico do paciente, b) todas as opções terapêuticas capazes de aliviar o
sofrimento, incluindo cuidados paliativos, devem ser discutidas com o paciente, c)
todos os aspectos procedimentais devem ser explicados e discutidos com o paciente,
incluindo a necessidade do paciente manifestar repetidamente a intenção de realizar
eutanásia. Há uma prerrogativa legal que exige um período de 1 mês entre o pedido
formal escrito e o início do processo, e d) a família ou algum representante indicado
pelo paciente deve ser envolvido no processo, após permissão do paciente para tal.
Contudo não há necessidade de consentimento dos mesmos33.
Ainda que a doença psiquiátrica seja potencialmente fatal, inexistem critérios
objetivos de terminalidade dos transtornos psiquiátricos descritos na literatura
médica. A inclusão de pacientes psiquiátricos em protocolos de morte assistida
acarreta um perigoso risco para a humanidade, historicamente comprovado pelo
programa nazista de eugenia psiquiátrica conhecido por T4, liderado por médicos
psiquiatras e responsável pela morte de aproximadamente 400.000 pacientes psi-
quiátricos, incluindo crianças34.
31. Lerner BH, Caplan LA. Euthanasia in Belgium and Netherlands on a slippery slope? JAMA Intern Med.
2015;175(10):1640-1641
32. Trachsel M, Irwin SA, Biller-Andorno N, et al. Palliative psychiatry for severe persistente mental illness as
a new approach to psychiatry? Def‌inition, scope, benef‌its and risks. BMC Psychiatry 2016;16:260.
33. Tholen AJ, Berghmans RLP, Huisman J, et al. Guideline dealing with the request for assisted suicide by
patients with a psychiatric disorder. Utrecht: Dutch Psychiatric Association. De Tijdsstroom, 2009. http://
steungroeppsychiaters.nl/wp-content/uploads/ Richtlijn-hulp-bij-zelfdoding_NVvP-2009.pdf (in Dutch).
34. Komrad MS. “Moral disengagement” – a cautionary lesson for Society and medical profession. Journal of
Ethics in Mental Health. May 2018;10:1-6
Morte Digna nos Tribunais.indb 210Morte Digna nos Tribunais.indb 210 11/05/2020 16:41:5911/05/2020 16:41:59
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MORTE DIGNA NA SUÍÇA: ANÁLISE DO CASO HASS
O pedido por suicídio assistido do caso Haas foi declinado por todos os psi-
quiatras consultados, fato este que comprova a ausência de fundamentação técnico-
científ‌ica e reaf‌irma princípios éticos e morais da prática da medicina. Além disso,
tratar uma manifestação volitiva prejudicada por distorções afetivas e cognitivas
secundárias a uma doença psiquiátrica e aceitá-la como expressão de autonomia sig-
nif‌ica expor pessoas vulneráveis ao extermínio em nome de uma moral supostamente
virtuosa e progressista comprometida com o alívio do sofrimento e a promoção de
dignidade. Ainda que a medicina seja incapaz de evitar o suicídio, endossá-lo implica
um risco de desvalorização da vida humana com consequências catastróf‌icas para
a sociedade e para a medicina.
5. CONCLUSÃO
A decisão em Haas v. Switzerland não avança, em termos jurisprudenciais, para
além do que a Corte Europeia de Direitos Humanos havia af‌irmado em Pretty v. United
Kingdom: reconhece-se que o direito ao respeito à vida privada, enunciado no Artigo
da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, consagra o direito de escolher
como cada pessoa deseja encerrar sua vida – nominalmente, a Corte reconhece o
direito à recusa de tratamento médico, e um forma rudimentar de “direito” ao sui-
cídio, mas não institui um dever positivo para o Estado, obrigando-o a fornecer os
meios para que o sujeito pratique o suicídio de modo confortável, indolor e conf‌iável.
O limite à autonomia privada é f‌ixado pelas necessidades de proteção da vida
das pessoas vulneráveis e incapazes de decidir – ref‌lexo do dever imposto ao Estado
pelo Artigo 2º da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos –, pela preservação
da saúde pública e da segurança pública. O acesso irrestrito ao pentobarbital sódico,
com dispensa de receituário médico, representaria um risco coletivo muito supe-
rior à pretensa vantagem advinda da acolhida da pretensão do autor, em termos do
respeito à vida privada.
O direito é incapaz de limitar ou de conter o suicídio, enquanto expressão radical
da renúncia de uma pessoa à sua própria vida. Nesse sentido, é de todo impróprio
que se reconheça um “direito” ao suicídio, a menos que se imponha, até mesmo ao
Estado, o dever de se abster diante da escolha do potencial suicida. Contudo, a ins-
trução que ordinariamente se dá nos serviços de saúde pública consiste na tentativa
de preservação da vida do autor de tentativa de suicídio, mesmo quando nítido o
intuito de autoextermínio.
A decisão pelo suicídio não pode ser tomada levianamente. Mesmo quando se
reconhece que à pessoa, e apenas a ela, pode ser dada a faculdade de decidir sobre
sua vida ou morte, se o perecimento é melhor do que a sobrevida tida como indigna,
cumpre perquirir se a escolha pela cessação da vida foi tomada em condições sóbrias,
sendo o sujeito devidamente capaz de entender sua situação e as consequências gra-
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víssimas e irreversíveis de sua escolha. Muitas vezes, a manobra suicida é praticada
pelo sujeito longe da vista de terceiros, que poderiam, potencialmente, impedi-lo
de levar à frente sua ação. No caso do suicídio assistido, contudo, a presença de
terceiro serve não apenas como estímulo, mas, não raro, como única maneira de se
garantir o efetivo sucesso da prática suicida. Deste modo, naqueles ordenamentos
jurídicos nos quais se reconhece a possibilidade de prestar, impunemente, o auxílio
no suicídio, fazem-se necessários meios para perquirir acerca da solidez da decisão
tomada, e da capacidade individual de compreensão.
Não se af‌irma, à evidência, que toda manobra suicida é realizada de modo irre-
f‌letido ou frívolo; entretanto, o impulso suicida pode traduzir apenas uma angústia
momentânea ou uma depressão passageira, e não uma decisão consequente sobre
o melhor rumo a ser tomado pelo sujeito. Daí a importância do acompanhamento
adequado daquele sujeito que deseja dar cabo à própria vida, para que este possa
entender a natureza e a repercussão de sua escolha.
Confere-se ao prof‌issional da Medicina, no direito suíço, a pesada tarefa de
selecionar quem é sincero em seu desejo de morrer, e quem apenas manifesta um
sintoma passageiro de uma perturbação psiquiátrica. Trata-se de elevadíssimo ônus,
imposto sob pena de sanções éticas, civis e criminais, em caso de negligência, de
imperícia ou mesmo de malícia ou dolo. Além do risco à reputação, ao patrimônio
e até mesmo à liberdade do médico, há de se indagar se uma tradição prof‌issional
tão acostumada ao juramento hipocrático, ao primum non nocere, receberá pacif‌ica-
mente o encargo de deliberar pelo cabimento e pela adequação do suicídio por meio
da ingestão de substância letal. Se, por um lado, curva-se a lei ao reconhecimento
da prof‌iciência científ‌ica – em última análise, o psiquiatra dispõe de instrumental
técnico para compreender a solidez da decisão suicida, e a capacidade de escolha do
autor –, por outro lado se expõem os prof‌issionais da saúde aos rigores da análise ex
post facto de seus diagnósticos e de seu receituário, especialmente quando a morte
não é o infeliz resultado do insucesso do tratamento, mas sim o próprio objetivo a
ser atingido.
Por f‌im, e talvez este seja o aspecto mais controverso do caso Haas, impõe-se a
indagação acerca do cabimento do suicídio assistido para pacientes acometidos por
sofrimento mental. Se é bem verdade que a eutanásia representa a morte por mise-
ricórdia quando a condição de saúde do paciente atinge estado irreversível, muitas
vezes a mesma é associada apenas às moléstias físicas, e não aos transtornos psiqui-
átricos. Um portador de sofrimento mental seria, de fato, apto a escolher o suicídio
assistido a f‌im de obter o alívio de seu mal, ou tal recurso estaria disponível apenas
a quem sofre de doenças degenerativas, ou que ocasionam atrozes sofrimentos? Há
eutanásia para as dores da alma, e não do corpo?
A depender da modalidade de sofrimento mental, restam comprometidas tanto
a capacidade de compreensão do paciente acerca de suas condições quanto a própria
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MORTE DIGNA NA SUÍÇA: ANÁLISE DO CASO HASS
manifestação de vontade, que deve ser livre de pressões ou coações. A especial fra-
gilidade do paciente portador de sofrimento mental suscita particular proteção por
parte do Estado e dos prof‌issionais de saúde, que não representa um paternalismo
a ser combatido, mas zelo condigno à situação delicada daquela pessoa. É de todo
antiético tomar o desejo suicida por seu valor de face, quando o sujeito não dispõe
da cognição propícia à tomada de uma decisão tão profunda.
De fato, o acesso ao suicídio assistido, quando vier a ser reconhecido como
direito individual, não restará livre de condições ou de ressalvas. Tais limitações
devem, entretanto, prestar-se à preservação da saúde e da segurança públicas, não
f‌igurando como meio indireto de inviabilizar o exercício dessa faculdade. Se a escolha
pela morte representa um ato de liberdade, é no mínimo lógico que só se lhe possa
escolher quem, de fato, age livremente.
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