Morte digna nos Estados Unidos da América: análise do caso Nancy Cruzan

AutorJosé Eduardo de Siqueira e Jussara Maria Leal de Meirelles
Ocupação do AutorDoutor em Medicina pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)/Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR
Páginas93-109
MORTE DIGNA
NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA:
ANÁLISE DO CASO NANCY CRUZAN
José Eduardo de Siqueira
Doutor em Medicina pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Mestre em Bioética
pela Universidade do Chile; Professor Titular do Curso de Medicina da PUCPR; Coor-
denador do Curso de Medicina da PUCPR/Campus Londrina; Professor do Programa
de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR – Curitiba – Paraná- Brasil.
Jussara Maria Leal de Meirelles
Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR; Pós-Doutorado no Centro de
Direito Biomédico da Universidade de Coimbra; Professora do Programa de Pós-Gra-
duação em Direito Econômico e Socioambiental (Mestrado e Doutorado) e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Bioética (Mestrado) da PUC-PR. Curitiba – Paraná - Brasil.
Sumário: 1. Breve histórico do caso – 2. O processo judicial e seus desdobramentos – 3.
Outras reexões derivadas da decisão da suprema corte – 4. Sobre a morte e o morrer na
era da medicina tecnológica – 5. A eutanásia e a legislação brasileira – 6. Considerações
nais – 7. Referências.
1. BREVE HISTÓRICO DO CASO
Na noite do dia 11 de janeiro de 1983, a jovem de 25 anos Nancy Cruzan, ao
dirigir próximo à cidade de Carteville, no Estado de Missouri, perdeu o controle
de seu carro e após capotar, teve seu corpo arremessado para fora do veículo, tendo
sido encontrada por prof‌issionais paramédicos inconsciente e sem sinais vitais. Os
atendentes procederam as manobras de reanimação cardiorrespiratória e a transpor-
taram para hospital da região. Examinada por neurocirurgião que após estimar ter
transcorrido prazo superior a dez minutos para que a recuperação dos dados vitais
da paciente fosse restaurada, condição que teria promovido anoxia severa ao sistema
nervoso central, formulou a hipótese diagnóstica de dano cerebral irreversível com
provável estado vegetativo persistente (EVP).
Após a internação, Nancy permaneceu em estado de coma por três semanas,
sem esboçar qualquer sinal de retomada de contato com o meio ambiente. Como
deglutia irregularmente, a equipe médica optou por alimentá-la por sonda gástrica,
procedimento consentido pelo seu esposo. Passados dez meses de internação, em
outubro do mesmo ano, não tendo ocorrido mudança no quadro clínico, com diag-
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nóstico def‌initivo de EVP, os pais e o marido da paciente solicitaram aos médicos a
suspensão dos procedimentos de suporte vital, incluindo alimentação e hidratação.
Argumentaram os familiares que, conforme explicação detalhada dos prof‌issionais de
saúde, o EVP constituía condição clínica irreversível e que Nancy jamais recuperaria
vida de relação, permanecendo indef‌inidamente em estado vegetativo. O hospital e
a equipe médica se negaram a atender à solicitação dos familiares, admitindo rever
a decisão somente diante da apresentação de uma ordem judicial que determinasse
expressamente a suspensão dos procedimentos que mantinham a vida da paciente.
A busca empreendida pelos familiares para a obtenção da ordem desencadeou um
prolongado debate na esfera judicial, cujos pormenores vêm apresentados a seguir,
neste ensaio.
2. O PROCESSO JUDICIAL E SEUS DESDOBRAMENTOS
Em primeiro grau de jurisdição, o pedido dos familiares de Nancy foi julgado
procedente, tendo sido concedida a ordem de interrupção do tratamento. No entanto,
um Curador nomeado pelo mesmo Tribunal do Estado de Missouri, considerando
haver possível conf‌lito de interesses entre Nancy e seus familiares peticionantes,
recorreu à Suprema Corte do Estado, que reformou a decisão, recusando o pedido
de interrupção dos procedimentos de suporte vital, por entender inexistir, no mo-
mento, prova clara e convincente de expressão da vontade autônoma da paciente.
Os pais recorreram, então, à Suprema Corte do país, alegando violação a um
direito constitucional de Nancy, qual seja o de rejeitar um tratamento médico não
desejado. Alegaram os familiares peticionantes que a jovem, em conversa pretérita
mantida com colega de quarto, por ocasião do período de graduação acadêmica,
havia explicitamente declarado sua vontade de renunciar a tratamentos fúteis caso
padecesse de enfermidade incurável que a mantivesse em estado vegetativo.
Observa-se que a grande questão que chegou à Suprema Corte dos Estados Uni-
dos, de início, era se as cláusulas constitucionais do devido processo legal e da igual
proteção concedida pela lei permitiriam que os pais de Nancy decidissem pela recusa
em manter a vida da f‌ilha, ainda que em EVP. No entendimento dos progenitores, na
condição de autênticos representantes da paciente, então inconsciente, teriam sim, o
direito de solicitar fossem cumpridas as manifestações prévias de vontade da f‌ilha, o
que justif‌icaria, portanto, a suspensão das medidas de suporte vital que mantinham
Nancy artif‌icialmente viva. Argumentaram, outrossim, que o direito constitucional
à privacidade, permitiria que a decisão de suspender as medidas de suporte artif‌icial
da vida da paciente fosse tomada diretamente com os médicos.
Entretanto, o problema passou a assumir contornos ainda mais abrangentes e
de difícil solução imediata, pois qualquer decisão tomada pela Suprema Corte não
afetaria tão somente o caso em pauta, já que à época, outras dez mil pessoas nos EUA
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