O 'Motoboy'. Uma Figura ainda Marginal no Direito do Trabalho

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas329-343

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1. Introdução

Segundo o vernáculo, o vocábulo “marginal” denota, dentre outras acepções, ora o “assunto, questão ou aspecto de importância secundária e escassa”, ora algo ou alguém “que vive à margem da sociedade”.1Ao ter-se em mente a figura dos “motoboys” não é crível, à primeira vista, que esta possa ser classificada como um elemento estranho ao cotidiano das grandes cidades ou como uma coletividade relegada ao segundo plano na organização do espaço urbano e do trânsito, cuja irrelevância não despertaria a atenção da sociedade para sua existência e para suas especificidades.

De fato, sob alguns aspectos, os “motoboys” não podem dizer-se marginalizados. São eles uma presença constante e facilmente visível nas metrópoles brasileiras, estando plenamente integrados na paisagem urbana. Estima-se, nesse sentido, que a profissão é exercida atualmente, no Brasil, por 1,2 milhão (um milhão e duzentos mil) trabalhadores.2

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Em São Paulo, por exemplo, é improvável utilizar o automóvel em horário comercial, por menor que seja o trajeto, sem se deparar com um deles. Muito mais fácil do que isto é constatar que sem tal categoria a realização cotidiana das atividades comerciais na capital paulista simplesmente não ocorreria, pois somente a agilidade das motocicletas é capaz de garantir a pontualidade das entregas de mercadorias no trânsito caótico da cidade.

Por isso mesmo, os “motoboys” são assunto constante na imprensa escrita, televisiva e digital, não apenas por conta dos muitos acidentes de que são vítimas, mas em função do clamor instaurado em torno da regulamentação do tráfego de seus veículos nas vias públicas. Nesse sentido, em atendimento a tais apelos midiáticos, editou-se em 2009 uma lei federal destinada à fixação dos requisitos básicos para o exercício da profissão (Lei n. 12.009, de 27.7.2009) e, posteriormente, várias resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) e uma miríade de normas municipais destinadas ao tema.

Portanto, também sob os quesitos “atenção da mídia” e “atenção do legislador” os “motoboys” não podem se considerar marginalizados. Então, a essa altura do texto — perguntaria o leitor — qual a razão do título conferido ao presente artigo? Em que aspectos os “motoboys” — essas figuras tão integradas ao panorama urbano das ruas e avenidas brasileiras e tão temidas pelos proprietários de automóveis ciosos de seus retrovisores — seriam “marginais”, na acepção acima formulada?

Para responder a tais perguntas é preciso fazer uma reflexão mais detida — ou, metaforicamente, um “olhar microscópico — sobre o conteúdo da abordagem midiática e da legislação existente sobre os “motoboys”, pois a “marginalidade” destes últimos, de fato, não é visível a olho nu. Se nos dispusermos a realizar tal empreitada, veremos que, a despeito da abundância normativa sobre as exigências para o exercício da profissão e sobre os equipamentos de uso obrigatório (alguns de utilidade duvidosa), há um incômodo e instigante vazio no que concerne à regulamentação das condições específicas de trabalho da referida categoria, que se revestem, conforme se verá mais adiante, de notas próprias de penosidade, periculosidade e insalubridade.

Tal vácuo igualmente se faz presente no que diz respeito à abordagem midiática das angústias trabalhistas e previdenciárias experimentadas cotidianamente pela categoria. De fato, não é comum nos depararmos com notícias a respeito de questões que abarrotam os tribunais trabalhistas pátrios, tais como a terceirização ilícita de entregadores por grandes redes de refeições rápidas, ou com a criação fraudulenta de cooperativas e de pessoas jurídicas. Nem tampouco é usual vermos matérias a respeito dos riscos ergométricos e físicos a que estão sujeitos os “motoboys” em seu labor cotidiano, a justificarem a contagem especial do tempo de serviço exercido nessa profissão para fins de aposentadoria.

Em suma, a concepção do “motoboy” talhada pela mídia e encampada pela legislação atualmente em vigor o tem como o vilão inconsequente do trânsito, indiferente às regras de segurança no tráfego e ao dever de zelar pela integridade dos veículos de terceiros e sedento por danificar retrovisores alheios. Daí surgiu, segundo tal lógica, a necessidade de “civilizar” o exercício da profissão, em nome do “interesse público” “bem comum”, por intermédio de uma série de restrições e exigências.

A figura do “motoboy” enquanto trabalhador preocupado com sua integridade física e carente de uma tutela legislativa adequada às suas especificidades profissionais, de outro turno, permanece no limbo midiático e normativo. Aí, sim, temos o “motoboy” como um ser marginalizado, tratado como assunto de importância secundária. Nesse tocante, a mesma urgência e relevância a ensejar a edição das normas federais e municipais atualmente existentes não se faz presente.

Pode-se dizer, portanto, que o “motoboy” no atual ordenamento jurídico brasileiro guarda — dadas as devidas proporções — identidade com a própria figura do trabalhador perante o

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arcabouço legislativo do Estado burguês dos séculos XVIII e XIX que, àquela ocasião, tinha suas peculiaridades sociais e econômicas ignoradas pela legislação estatal ainda entorpecida pela ideia de igualdade formal entre os contratantes a justificar a aplicação singela do código civil às relações de trabalho.3É justamente essa vertente que o presente artigo pretende explorar nos próximos tópicos, ao formular uma análise crítica das normas atualmente existentes a respeito da “regulamentação” da profissão de “motoboy” e ao elencar os principais anseios e problemas enfrentados pela categoria, a justificarem não só a elaboração de um marco normativo específico, mas uma mirada mais atenta a tais questões por parte dos operadores jurídicos.

2. A “regulamentação” da profissão de “motoboy” Regulamentar “o que” e “para quem”?

Não há lei, portaria ou regulamento editado sem que haja um interesse ou motivo por detrás. As normas, muitas vezes, são fruto dos clamores sociais vigentes no momento prévio ao seu advento e, na sociedade contemporânea, dotada de grande complexidade, os meios de comunicação exercem o papel de agentes canalizadores (e formadores) desses anseios.4

Nas duas últimas décadas, a carência de investimentos em infraestrutura urbana nas grandes cidades brasileiras fez com que o estado da malha viária não lograsse acompanhar o aumento exponencial do número de automóveis, o que contribuiu substancialmente para a piora do trânsito. Nesse contexto, o comércio de mercadorias e serviços — que igualmente cresceu no período — precisou buscar meios para manter o dinamismo e a pontualidade nas entregas e, diante de tais circunstâncias, as motocicletas apresentaram-se como as alternativas naturais para o atendimento a tal necessidade.

Tal fenômeno foi o fator decisivo para a perenização dos “motoboys” na paisagem das metrópoles brasileiras, o que obrigou os motoristas ao convívio forçado com este novo personagem urbano. A partir daí, a mídia passou a explorar frequentemente a temática dos “motoboys”, dando sempre ênfase aos “transtornos” por eles causados no trânsito, tais como a utilização dos espaços existentes entre as laterais dos automóveis nas vias (corredores), a pressa na entrega das mercadorias, os acidentes em que a referida categoria se envolve e, naturalmente, os danos à propriedade veicular alheia, aí incluídos — é claro — os retrovisores.

O clamor midiático nesse sentido acabou ecoando no Congresso Nacional que, em 29.7.2009, editou a Lei n. 12.009/2009, a ter por objeto a regulamentação do “exercício das atividades dos profissionais em transporte de passageiros, ´mototaxista´, em entrega de mercadorias e em serviço comunitário de rua, e ´motoboy´, com o uso de motocicleta”, bem como as “regras de segurança dos serviços de transporte remunerado de mercadorias em motocicletas e motonetas — motofrete”.

A análise da norma em apreço demonstra que a preocupação central do legislador quando da “regulamentação” da profissão fez-se representada, antes, pela tutela da segurança daqueles

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que convivem com os “motoboys” no trânsito (o que, diga-se de passagem, não é algo de somenos importância) do que pelo atendimento às necessidades específicas da referida categoria em face dos riscos e das condições de trabalho inerentes à sua atividade.

Ou seja, o “pecado original” da Lei n. 12.009/2012 não reside na regulamentação das condições necessárias para o exercício da profissão de “motoboy” no nobre intuito de resguardar a segurança dos pedestres, motoristas e passageiros nas vias urbanas. Ao revés, o grande defeito a afetar a norma consiste, justamente, no silêncio eloquente a respeito das necessidades profissionais específicas da categoria.

De fato, já em seu art. 2º a Lei n. 12.009/2009 traz uma série de requisitos necessários para o exercício da profissão de motofretista, tais como a idade mínima de 21 (vinte e um) anos, a posse de habilitação na categoria “A” por, pelo menos, 2 (dois) anos, a aprovação em curso especializado e a utilização de colete com dispositivos autorrefletivos.

E como se já não bastassem as exigências constantes do art. 2º, a Lei n. 12.009/2009 inseriu o art. 139-A no Código Nacional de Trânsito para impor aos motofretistas uma série de requisitos físicos e burocráticos necessários à circulação de suas motocicletas, nos seguintes termos:

Art. 139-A. As motocicletas e motonetas destinadas ao transporte remunerado de mercadorias — motofrete — somente poderão circular nas vias com autorização emitida pelo órgão ou entidade executivo de trânsito dos...

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