O Movimento Antimanicomial como sujeito coletivo de direito/The Anti-asylum Movement as a collective subject of law.

AutorCorreia, Ludmila Cerqueira

"O manicomio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida." (Trecho do Manifesto de Bauru, 1987) "É preciso sustentar que uma sociedade sem manicomios reconhece a legitimidade incondicional do outro como o fundamento da liberdade para todos e cada um; que a vida é o valor fundamental; que a sociedade sem manicomios é uma sociedade democrática, socialista e anticapitalista. NENHUM PASSO ATRÁS: MANICOMIO NUNCA MAIS! POR UMA SOCIEDADE SEM MANICOMIOS!" (Trecho da Carta de Bauru--30 anos, 2017) Introdução

Este artigo baseia-se em resultados da pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília (1). Portanto, o estudo integra uma pesquisa mais ampla, que teve como objetivo principal analisar as experiências de assessoria jurídica popular universitária em direitos humanos e saúde mental no Brasil, na perspectiva do acesso ao direito e à justiça. A partir da leitura e análise de artigos, livros e teses que tratam sobre diversos aspectos da luta antimanicomial no Brasil, pretende-se trazer as reflexões sobre a configuração do Movimento Antimanicomial enquanto um sujeito coletivo de direito, na perspectiva de O Direito Achado na Rua.

A discussão sobre a violência, os aspectos da exclusão, a privação da liberdade, os maus tratos, as práticas de tortura e todas as ordens de abuso de poder nos manicomios brasileiros foi propulsora do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA), ator fundamental para as reflexões acerca da dimensão jurídico-política da Reforma Psiquiátrica brasileira. Tal Movimento se originou do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), com o processo de redemocratização do país, durante as mobilizações contra a ditadura civil-militar que reuniam movimentos populares oriundos da sociedade civil que se organizavam e lutavam para ampliar a participação política na esfera pública.

Em meados da década de 1970, além de reivindicar melhores condições de trabalho nos manicomios do país, a ampliação do número de funcionários e o aumento dos investimentos do setor público na área da saúde mental, o MTSM passou a denunciar as violações de direitos civis de pessoas internadas nos hospitais e clínicas psiquiátricas e o modelo privatizante e hospitalocêntrico adotado pelo estado brasileiro (AMARANTE, 1997, 1998). Em 1978, o MSTM é organizado como movimento nacional e com o objetivo de constituir-se em "espaço de luta não institucional, em lugar de debate e onde se encaminham as propostas de transformação da assistência psiquiátrica, que aglutina informações, organiza encontros, reúne trabalhadores da saúde, associações de classe", além de amplos setores da sociedade (AMARANTE, 1998, p. 60). Nesse sentido, Amarante (1998) destaca o MTSM como um movimento de luta popular engajado no campo da saúde mental.

É preciso ressaltar que o MTSM não estava dissociado do Movimento da Reforma Sanitária, o que pode ser observado a partir da sua luta pela necessária democratização na área da saúde para reorganização da assistência em saúde mental. Daí a importância de outro ator nesse processo, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) que, em outubro de 1979, apresentou o documento "A Questão Democrática na Área da Saúde" no I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde na Câmara dos Deputados (CAMARGO et al., 2016). O texto desse documento alinhavava as diretrizes fundamentais que apontavam para "uma saúde autenticamente democrática": a saúde como direito; criação de um Sistema Único de Saúde com a responsabilidade do Estado e a descentralização (CAMARGO et al., 2016, p. 13).

Além disso, o MTSM tinha como referência principal o movimento da Psiquiatria Democrática, liderado por Franco Basaglia na Itália, que efetivou a ruptura com o hospital psiquiátrico, substituindo o modelo asilar/carcerário por uma rede diversificada de serviços de atenção diária em saúde mental de base territorial e comunitária (BASAGLIA, 1982). Vale frisar que Franco Basaglia esteve no Brasil nos meses de junho e julho de 1979, participando de conferências e debates realizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Durante esse período, ele manteve contato com integrantes do MTSM, fortalecendo ainda mais as reivindicações do movimento e abrindo um novo campo de reflexões (BASAGLIA, 1979). As suas conferências influenciaram profundamente as pessoas que delas participaram e os percursos no projeto de mudança das instituições psiquiátricas brasileiras (AMARANTE, 1998; NICÁCIO; AMARANTE; BARROS, 2000; FERNANDES; SCARCELLI, 2005).

O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) nasceu em dezembro de 1987, após a I Conferência Nacional de Saúde Mental (junho/1987), no II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, realizado em Bauru - SP, com o lema "Por uma sociedade sem manicomios", que exigia que os hospitais psiquiátricos fossem substituídos por outras formas de tratamento, capazes de garantir a dignidade e a liberdade das pessoas em sofrimento mental, com base nos seus direitos (AMARANTE, 1997, 1998). Naquele momento, com o Manifesto de Bauru, documento da fundação do MNLA, este é identificado enquanto movimento social, como veio a se confirmar no I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial realizado em Salvador-BA, no ano de 1993, com o lema "O Movimento Antimanicomial como movimento social" (BARBOSA; COSTA; MORENO, 2012).

Ao enfatizar que as ações e lutas do Movimento Antimanicomial estão direcionadas e impactando as diferentes dimensões da vida social, Luchmann e Rodrigues (2007) o reafirmam como um movimento social importante na sociedade brasileira, uma vez que se organiza e se articula para transformar as condições, relações e representações acerca da loucura na sociedade. Desse modo, o MNLA passou a contribuir para a reconstrução da relação da sociedade com a louca e a loucura, visando a superação do estigma e da desqualificação das loucas e loucos (2). Mais adiante, o Movimento iniciou a discussão sobre a necessidade de uma Reforma Psiquiátrica no país, na perspectiva da garantia dos direitos humanos das pessoas em sofrimento mental.

Embora se reconheça, atualmente, a existência de vários grupos oriundos do MNLA, sobretudo após as divergências e embates no início dos anos 2000, não é objetivo deste artigo discutir as cisões e as novas correntes e organizações surgidas nesse percurso histórico--MNLA, RENILA - Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, associações de usuários e familiares etc (BARBOSA; COSTA; MORENO, 2012; VASCONCELOS, 2010, 2012). No bojo dessa discussão está a discordância radical entre grupos diversos no que diz respeito à autonomização e à institucionalização do Movimento (VASCONCELOS, 2012, 2016). Como explicita Vasconcelos (2016, p. 94), a divisão dessas correntes tem bases geográficas definidas, praticamente inexistindo a corrente oposta em cada um dos estados, e além disso, tal autor aponta que a RENILA "polariza a maior parte das associações, núcleos e fóruns estaduais", ficando o MNLA restrito aos ativistas, grupos e coletivos de apenas dois estados.

É importante fazer esse registro, uma vez que isso faz parte da caracterização de um movimento social popular com tamanha amplitude e inserção na luta por políticas públicas de saúde inclusivas, e, sobretudo, com a participação de atores diversos, com destaque para as loucas e loucos. Corrobora, ainda, a análise de Vasconcelos (2016, p. 93), que, ao pesquisar os núcleos e coletivos de militância do Movimento Antimanicomial, refere-se aos mesmos como "conjunto do movimento", concluindo pela existência de um "movimento antimanicomial" no país.

Sendo assim, neste artigo adota-se a denominação Movimento Antimanicomial (MA) para se referir ao conjunto de grupos, organizações, núcleos, frentes e coletivos da sociedade civil que têm lutado por uma Reforma Psiquiátrica antimanicomial no Brasil, ou seja, que reivindicam políticas públicas de saúde mental garantidoras de direitos e baseadas num modelo comunitário e territorial. Esta escolha baseia-se, ainda na organização do "Encontro de Bauru: 30 anos por uma sociedade sem manicomios", realizado em dezembro de 2017 em Bauru-SP, que teve a participação dos diversos segmentos que compõem o Movimento Antimanicomial, articulados num coletivo amplo que constituiu a "Articulação Nacional Pró Encontro Bauru: 30 anos de luta por uma sociedade sem manicomios" (3).

Este artigo tem como objetivo analisar se o Movimento Antimanicomial se constitui como sujeito coletivo de direito e alguns elementos da sua mobilização político-jurídica para salvaguardar as conquistas sociais e os direitos por ele realizados em face de ameaças e de mudanças que têm sido implementadas nas políticas de saúde mental no Brasil. Para tanto, a partir de uma pesquisa bibliográfica (livros, capítulos de livros, artigos e teses), traz aspectos históricos da criação desse movimento, com destaque para a significativa participação das pessoas loucas, na perspectiva do marco teórico de O Direito Achado na Rua, sobretudo com as formulações de Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Junior (COSTA et al., 2008).

Ao dedicar-se à superação das ideologias jurídicas hegemónicas, Roberto Lyra Filho (1982, p. 86) desconstrói as falsas imagens sobre o direito, e, assim, faz críticas ao jusnaturalismo e ao positivismo jurídico, afirmando o direito como processo dentro do processo histórico: "não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas...

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