Muito além do concurso: cotas para pessoas com deficiência no serviço público

AutorFernando Donato Vasconcelos
Páginas205-218

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Introdução

Há várias décadas, normas e políticas internacionais vêm ampliando a proteção aos direitos das pessoas com deiciência (PCD), sendo progres-sivamente incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio.

Em 1975, a Organização das Nações Unidas — ONU aprovou a De-claração dos Direitos das Pessoas Deicientes, airmando que é direito das pessoas com deiciência serem respeitadas em sua dignidade humana, independente da origem, natureza e gravidade de suas deiciências, deven-do ter o direito de desfrutar uma vida tão normal e plena quanto possível (UN, 1975).

A Assembleia Geral da ONU de 1982, ao instituir o período compreen-dido entre 1983 e 1992 como a Década da Pessoa Deiciente, aprovou o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deiciência, recomendando a adoção de medidas para a prevenção da deiciência e para a reabilitação, enfatizando a busca da igualdade e participação plena das PCDs na vida social e no desenvolvimento (UN, 1982).

O mencionado programa conceituou igualdade de oportunidades como um processo mediante o qual a sociedade — o meio físico e cultural, a habitação, o transporte, os serviços sociais e de saúde, as oportunidades de educação e de trabalho, a vida cultural e social, inclusive as instalações esportivas e de lazer — torna-se acessível a todos. Ressaltou o documento que o meio, em grande medida, determina o efeito de uma deiciência ou de uma incapacidade sobre a vida cotidiana da pessoa (UN, 1982).

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No ano seguinte, a Organização Internacional do Trabalho — OIT aprovou a Convenção n. 159 sobre Reabilitação Proissional e Emprego de Pessoas Deicientes. Esta norma, incorporada pelo Brasil em 1991, conceituou como deicientes “todas as pessoas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo iquem substancialmente reduzidas devido a uma deiciência de caráter físico ou mental devidamente comprovada”, recomendando aos países signatários a adoção de “medidas positivas especiais” com a inalidade de atingir a igualdade efetiva de oportunidades e de tratamento entre trabalhadores deicientes e os demais trabalhadores (BRASIL, 1991b).

A Constituição FederalCF de 1988 acolheu diversos aspectos dessas normas e políticas internacionais, ampliando a proteção então vigente, com destaque para a proibição de qualquer discriminação no tocante a sa-lário e critérios de admissão do trabalhador portador de deiciência (art. 7º,
XXXI); a deinição de que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deiciência e deinirá os critérios de sua admissão (art. 37, VIII); e a garantia de habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deiciência e a promoção de sua integração à vida comunitária (art. 203, IV), dentre outros.

Nos dois anos seguintes, o Brasil aprovou normas infraconstitucionais que deiniram como crime o preconceito contra a pessoa com deiciência, punível com reclusão de um a quatro anos, e multa; disciplinaram as ações civis públicas destinadas à proteção de interesses coletivos ou difusos das PCD; e estabeleceram que o Ministério Público deve intervir obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais em que se discutam interesses relacionados à deiciência das pessoas.

Ampliando a proteção do trabalho das PCDs no Brasil, em 1991, foi incluído na Lei n. 8.213, que trata dos benefícios da previdência social, o art. 93, segundo o qual as empresas com 100 ou mais empregados passaram a ser obrigadas a preencher de 2 a 5% dos seus cargos com beneiciários reabilitados ou PCDs habilitadas. Introduziu-se assim no país o sistema de cotas140 de mercado de trabalho para as PCDs (BRASIL, 1991c).

Como ressaltam Mendonça & Lorentz (2012), as cotas de reserva legal de postos de trabalho são, do ponto de vista jurídico, uma espécie do gênero “ação airmativa”, ou seja, de uma política destinada a concretizar

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o direito à igualdade real. E foi no sentido de realizar ações airmativas de proteção aos veteranos de guerra com deiciência que surgiram as primeiras cotas para esse segmento na Áustria, Alemanha, França e Itália, atendendo acordos pós-I Grande Guerra e recomendações da recém-criada OIT, reservando postos de trabalho e ixando um sistema de penalidades para que descumprissem tal reserva. Posteriormente, as cotas passaram a incorporar pessoas acidentadas no trabalho e, após a II Grande Guerra, Reino Unido, Holanda, Irlanda, Bélgica, Grécia e Espanha adotaram sis-temas de cotas mais amplos, abrangendo outros tipos de deiciência ou incapacidade (METTS, 2000).

O sistema de cotas ixado pela Lei n. 8.213/91 foi uma modificação da reserva estabelecida no art. 55 da Lei n. 3.807/1960 que obrigava as empresas com 20 ou mais empregados a reservar de 2% a 5% das suas vagas aos trabalhadores “readaptados ou reeducados proissionalmente” (BRASIL, 1960). A norma de 1991 ampliou a cota para as PCDs, ao tempo que reduziu o espectro das empresas obrigadas.

Bem verdade que o projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo mantinha a previsão de 1960 de que as empresas obrigadas seriam aquelas com 20 ou mais empregados (BRASIL, 1991 b), mas prevaleceu no Congresso Nacional a opção de exigir a cota apenas das empresas com 100 ou mais trabalhadores.

Criou o legislador, por outro lado, o que Oliveira (2000) chama de “estabilidade provisória sem prazo certo”, pois o § 1º do art. 93 da Lei n.
8.213/91 estabelece que o trabalhador reabilitado ou deiciente habilitado somente pode ser dispensado se a empresa tiver contratado substituto com condição semelhante (trabalhador reabilitado ou deiciente habilitado), além de cumprir o requisito do percentual mínimo legal.

Mais recentemente, a aprovação pela ONU em 2007 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deiciência, incorporada ao nosso ordenamento como Emenda Constitucional, em conformidade com o disposto no § 3º do art. 5º da CF, consolidou e ampliou muitas conquistas para as PCDs, com um amplo art. 27 dedicado ao trabalho e emprego, que, dentre outros direitos, estabelece:

  1. Direito ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, com acomodações adequadas, sem qualquer forma de discriminação ou assédio, inclusive quanto às “condições de recrutamento, contratação e admissão, permanência no emprego, ascensão proissional, direitos trabalhistas e condições seguras e salubres de trabalho”;

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  2. Acesso efetivo a programas de aprendizagem, orientação técnica e proissional e a serviços de colocação no trabalho e de treinamento proissional e continuado;

  3. “Assistência na procura, obtenção e manutenção do emprego e no retorno ao emprego”;

  4. “Oportunidades de trabalho autônomo, empreendedorismo...

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