"Mulher de bandido": A Construção de Uma Identidade Virtual

AutorLaiza Mara Neves Spagna
CargoGraduada no curso de Sociologia da Universidade de Brasília. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM, vinculado ao Instituto de Ciências Sociais – ICS da Universidade de Brasília.

Atualmente, a possibilidade de o Estado brasileiro encontrar uma solução efetiva à problemática da segurança pública encontra-se deveras distante. Isso se evidencia diante da ineficiência dos órgãos responsáveis pela promoção da seguridade e da justiça social, que contam, em sua maioria, com um Judiciário lento e desacreditado, com uma polícia ostensiva, e com a progressiva decadência das Instituições Prisionais do país. Esse contexto pode ser considerado reflexo do processo de fortalecimento do Estado Penal, acarretado pela desregulamentação econômica neoliberal e pela destituição do Estado Social, a partir do século XX, sobretudo em países capitalistas de industrialização recente. Ou seja, a partir da década de 1970, tais países passaram a adotar ajustes econômicos defendidos pelas nações do capitalismo central como sendo contrapartidas para a participação na economia mundial. As questões sociais, enquanto entraves ao desenvolvimento nacional, deveriam ser rapidamente extirpadas; e assim, a miséria foi criminalizada1. Seguindo as regulamentações políticas da economia de mercado globalizante, o Brasil delegou muitos de seus problemas sociais à repressão policial e à penalização judiciária. A associação desses dois espectros: pobreza e criminalidade, geraram um olhar discriminatório sobre todo o simbólico advindo das instituições prisionais, corroborado pela incompetência estatal em administrar tais instituições.

Do ponto de vista das representações morais socialmente hegemônicas, o presídio pode ser apontado como um lugar não respeitável2 ou um local impuro3, repositório do socialmente desprezível, isto é, o espaço reservado para ocultar aqueles que desafiam o status quo e as regras que produzem a rotina de normalidade da sociedade. E o Estado brasileiro parece não fazer muito para romper com esse estereótipo ao tratar suas instituições prisionais com evidente irresponsabilidade, que se manifesta de formas cada vez mais deflagradas: presídios superlotados, calamitosas rebeliões carcerárias, e situações maus tratos indescritíveis. As deficiências do Estado em atender às necessidades de seguridade social e às condições básicas de vida nos presídios também são claras. Enfim, trata-se de uma realidade intra-muros insustentável, tanto do ponto de vista humanitário, quanto da perspectiva da manutenção da segurança e do comportamento dos agentes institucionais.4 Todas essas questões também recaem diretamente, e de forma impactante, sobre um contingente social muitas vezes não evidenciado: os familiares e afetos dos internos das penitenciárias brasileiras.

A atual situação do sistema carcerário do país também deve ser analisada no âmbito das implicações geradas na rotina de vida dos familiares que visitam seus internos. Nesse sentido, ao se submeterem a visitações freqüentes, os familiares e correlatos são atingidos pelo descaso estatal e pelas mazelas das instituições prisionais, juntamente com os internos. E ainda, são socialmente condenados por terem supostamente falhado na contenção social daquele ente, ou são considerados coniventes de seu crime. Acabam por arcar com as conseqüências sociais, políticas e econômicas de um crime que não cometeram, cumprindo, extra-muros, a punição referente àquela que seu afeto está institucionalmente submetido. Especificamente, esse grupo social é composto por um contingente feminino que constitui a expressiva maioria das visitas sistemáticas que os detentos recebem. São mães, esposas, noivas, namoradas, companheiras, entre outras, que mantêm com o interno algum tipo de interação afetiva, estabelecida antes ou após seu encarceramento, e que se materializa em alguma forma de apoio à sustentação dessa nova condição sócio-jurídica.

Dessa forma, o presente trabalho aborda a temática das relações entre violência, gênero e estigma5, centrando-se nas condições de vida das mulheres que visitam periodicamente os detentos do Complexo Penitenciário da Papuda/DF. O segmento feminino estudado é composto por aquelas que mantêm vínculos afetivos com os internos, desafiando as complicações sociais que acompanham esse papel. E assim, são socialmente categorizadas como “mulheres de bandido”.

O interesse principal deste trabalho diz respeito à compreensão da condição social dessas mulheres, dos fatores motivacionais que as submetem às visitações, ao estigma advindo, e principalmente, na análise do processo de construção dessa nova identidade social construída. Para tanto, os estudos de Goffman sobre estigma6, dramaturgia social7 e as Instituições Totais8, bem como as análises de Foucault9 sobre o poder constituíram o referencial teórico basilar. Ambos os autores trabalham a importância da visitação aos internos de instituições prisionais - em função da condição de isolamento físico e social imposta – e, concomitantemente, abordam os reflexos extra-muros da lógica da segurança das instituições prisionais.

Nessa perspectiva, indivíduos submetidos ao sistema de detenção nas chamadas Instituições Totais são privados do contato com a realidade social externa e submetidos a processos de socialização que levam à desconstrução de suas identidades subjetivas, no sentido de despojá-los do respectivo “eu” até então socialmente construído. Contudo, o apelo que os internos fazem a estratégias de resgate das respectivas identidades é explícito. Principalmente em tentativas de reproduzir um microcosmo que recupere o antigo ambiente social habitado, representando-o no espaço físico de que dispõem. Desse modo, é notória a importância das visitas feitas periodicamente por familiares e afetos, pois remetem os internos aos cenários e situações sociais anteriormente vivenciados. É nesse momento que os detentos entram em contato com uma pequena reprodução da realidade externa, o que é muito eficiente e relevante para o desenvolvimento de uma resposta reativa aos processos de institucionalização e adaptação à vida intra-muros.

Goffman10 destaca os impactos socialmente nocivos à representação social do eu advindos com incorporação de um aspecto desvalorizante à identidade subjetiva. Nesse sentido, o vínculo com o detendo gera, para a visitante, um atributo socialmente condenável, pois passam a ser identificadas segundo a condição do relativo detento. Fato que se repercute em uma série de complicadores sociais, políticos e econômicos que alteram toda sua rotina de vida, colocando a visitante em uma polarização de representações desconexas: desempenham o papel de dedicação ao companheiro preso, em função dos papéis sociais que lhe são atribuídos por sua condição feminina, ao mesmo tempo em que se percebem obrigadas a reconstruir diariamente uma identidade socialmente aceitável e confiável.

A categoria “mulher de bandido” é aqui entendida como um conjunto de caracteres imputados, pelo senso comum, às visitantes, em função da marginalidade a que permanecem socialmente vinculadas: a figura do detento. Através da utilização dos conceitos de pureza e perigo, tal como propostos por Mary Douglas11, pode-se entender essa categorização retomando suas reflexões acerca da relação entre ordem e desordem. A civilização contemporânea perseguiu intensamente o controle e o domínio de qualquer forma de perigo. A sociedade pretendeu disciplinar não apenas os homens, mas todas as coisas que estivessem fora da correspondente localização na estrutura social. Aquilo que não se enquadra em seu sistema de classificação ou se encontra na margem desse sistema é comumente visto como ameaçador e, portanto, impuro, sujo; devendo ser evidenciado para ser evitado. Assim, o crime cometido pelos detentos choca-se com o socialmente aceito, gerando desordem. E o isolamento a que os infratores (dessa ordem) são submetidos deve ser mantido para se evitar a contaminação social. Uma vez que as mulheres quebram essa lógica, e ousam manterem-se vinculadas ao “impuro”, a marginalização social estende-se a elas, pois se tornam também um “risco”. A criminalidade dos internos abarca suas visitantes, que adquirem qualificações provenientes da imagem social do companheiro preso: a falta de caráter, a imoralidade, a desonestidade; dado que estão socialmente poluídas por contigüidade. O perfil social que resulta desta estigmatização, bem como as identidades subjetivas transpassadas por ele, social constitui o objeto de estudo deste trabalho.

1)Metodologia e problemática

A partir de uma análise sociográfica geral da população de visitantes foram selecionadas algumas companheiras de internos para compor os estudos de caso que serviram de base empírica para este trabalho, que se pautou, em grande medida, nas histórias de vida narradas em entrevistas semi-diretivas e em profundidade. Esse recorte empírico deveu-se à redimensionalização dos objetivos da pesquisa, após a análise do perfil socioeconômico da população visitante. Foi impressionante desproporção de gênero observada entre os/as visitantes: dentre os cem questionários aplicados e as vinte sete entrevistas realizadas, o percentual feminino correspondeu a 96% das vistas, e o masculino a 4%. Essa constatação motivou não só o recorte empírico por questões estatísticas, como também o interesse em desvendar as razões desse fenômeno. Assim, fez-se necessária essa posição propositalmente unilateral, focando-se somente nas visitantes mulheres - ligadas de alguma forma aos internos - com vistas a apreender suas maneiras de dar significado ao mundo e à experiência vivida.

Tratou-se como objeto de estudo o estereótipo “mulher de bandido”, aqui compreendido como categoria estigmatizante das mulheres que visitam com alguma regularidade os internos do Complexo Penitenciário da Papuda. Partindo da...

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