A mulher do discurso jurídico

AutorCarol Smart
CargoProfessora na Universidade de Warwick (Inglaterra) quando o artigo foi publicado. Professora aposentada da Universidade de Manchester (Inglaterra)
Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N.02, 2020 p. 1418-1439.
Carol Smart
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/50335| ISSN: 2179-8966
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A mulher do discurso jurídico
The Woman of Legal Discourse
Carol Smart¹
¹ Universidade de Warwick, Coventry, Inglaterra. E-mail: carol.smart@manchester.ac.uk
Versão original
SMART, Carol Christine. The Woman o f Legal Discourse. In Social & Leg al Studies, Vol. 1, 1992, p.
29 44. [Os direitos autorais foram adquiridos pelas tradutoras e concedidos para publicação na
Revista Direito e Práxis]. A versão original deste artigo foi apresentada em 16 de maio de 1991, no
formato de Palestra Inaugural, quando assumi (temporariamente) a Cátedra Belle v an Zuylen, na
Faculdade de Estudos Feministas na Universidade de Utrecht, Holanda. O estilo oral foi mantido.
Tradução:
Alessandra Ramos de Oliveira Harden
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail: oliveira.ales@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2473-057X.
Fernanda de Deus Garcia
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
fernanda.deusgarcia@gmail.com
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N.02, 2020 p. 1418-1439.
Carol Smart
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/50335| ISSN: 2179-8966
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Introdução1
A teoria feminista sociojurídica tem se desenvolvido de modo instigante e (felizmente)
polêmico nos últimos vinte anos. É possível afirmar, com relativa segurança, que os
progressos obse rvados nessa área se equiparam aos desdobramentos do pensamento
feminista em outros campos. Esse paralelo nã o deveria ser motivo de espanto; contudo,
o direito suscita, para a t eoria feminista, questões i ntelectuais e políticas bastante
específicas, que não necessariamente são encontradas em outras áreas2. Esses problemas
apresentam três ramificações e são surpreendentemente acumulativos, levando-se em
consideração que se originam em vertentes distintas. A primeira delas, que pode ser
chamada de vertente “da letra negra”3, ou do direito inquestionável, manifesta
resistência à ideia de a análise teórica ser relevante para o direito fora dos limites dos
cursos sobre a própria disciplina do direito. A segunda, por sua vez, exprime resistência à
ideia de que uma teoria especificamente feminista é relevante ao direito, porque este já
teria t ranscendido ao menos na maioria dos países desenvolvidos o “viés sexual”.
Trata-se da vertente liberal. A terceira linha evidencia uma forma de resistência a toda e
qualquer teoria, com base no argumento de que, como o direito é uma prática que produz
consequências materiais para as mulheres, a resposta necessária teria de surgir no âmbito
da prática em sentido contrário, e não da teoria. É uma vertente que demanda
engajamento “de ação”, continuamente considerando inadequada a (mera?) prática
teórica. Esse argumento é usado por determinadas correntes feministas que definem o
1 Essa tradução foi feita no âmbito do Projeto Tecendo Fios das Críticas Feministas ao Direito no Brasil.
2 É importante definir o que quero dizer por “área do direito”. Embora o termo “lei” sugira uma singularidade
ou unidade, o direito é muitas coisas. Em um nível, lei é o que se aprova como um resultado de um processo
político. Essa lei é aberta a interpretações, é claro, embora não haja uma interpretação “livre”. Nesse âmbito,
aplica-se uma série de convenções, o que podemos chamar de metodologia jurídica. Em outro nível, há a
prática do direito. Enquanto o método jurídico adapta-se a convenções que podem ser (discutivelmente)
reveladas, a prática do direito é bem menos visível. Refiro-me à forma como advogados e outros atores
jurídicos, como a polícia, usam a lei (e a interpretam sem tanta reflexão minuciosa) na prática do dia a dia.
Esse tipo direito é conhecido por ser bastante distante do direito ‘dos livros’ ou da jurisprudência, mas, claro,
os dois estão vinculados.
O direito, entretanto, também é muito mais que a soma desses elementos. Ele também é o qu e as pessoas
acreditam que ele é, uma vez que podem usá-lo para guiar suas ações. De fato, podemos até mesmo sugerir
que o direito cria subjetividades, bem como posições de sujeito. Veja, por exemplo, o conceito de bastardo,
que se tornou a categoria de ilegitimidade no século XX. Era uma mera categoria jurídica, mas se tornou um
fator de classificação econômica e uma questão psicológica. Por meio dela, produzimos crianças
desfavorecidas e adultos sem direito a herança.
3 N.T.: Em inglês, Black Letter Law é expressão usada para se referir a elementos ou princípios básicos que são
amplamente conhecidos e aceitos pela comunidade jurídica. Consiste em regras que podem ser usadas
mecanicamente e não levantam questionamentos morais nem discussões.

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