Mulher de favela: interseccionalidades e territorialidades/Favela woman: intersectionalities and territories.

AutorNunes, Nilza Rogeria de Andrade

Introdução

Nos locais onde as desigualdades tornam-se acentuadamente expressões múltiplas de vulnerabilidades sociais, encontramos um sujeito político que vem atuando com estratégias, disponibilidade e ousadia. Estamos falando das (re)conhecidas lideranças comunitárias (1) ou o que chamamos "mulher de favela". Essas protagonistas aqui em cena estão geopoliticamente localizadas nos territórios segregados socioespacialmente a que se nomeia "favelas" no Rio de Janeiro e cujo reconhecimento público veio se construindo a partir dos anos 1980, ganhando impulso e visibilidade a partir da década de 1990.

Num lócus que permeia o tecido urbano da cidade do Rio de Janeiro, as favelas constituem-se e se expressam num mosaico de violências e violações de direitos. No entanto, ainda que sejam esses locais notadamente demarcados por fronteiras (in)visíveis, as mulheres vêm fazendo existência e resistência. As popularmente nomeadas lideranças comunitárias, ou ativistas sociais, vêm construindo e consolidando seu lugar e protagonismo. Com pautas diversas, essas mulheres subvertem a ordem que historicamente as colocou em condições de subalternidade e vêm conquistando espaços de luta em uma escala micro, local, mas que trazem consigo um projeto de cidade e de país.

Este estudo está baseado em uma pesquisa em curso (2) cujo objetivo é refletir sobre quem são e o que fazem as mulheres publicamente reconhecidas por suas atuações sociais e políticas nas favelas do Rio de Janeiro. Buscamos, ainda, compreender o fenómeno da feminização do poder nos espaços populares a partir de um mapeamento das lideranças femininas que articulam suas práticas aos sentidos coletivos amplos. Até o presente, realizamos 100 entrevistas com mulheres que são publicamente reconhecidas como pessoas de referência nos seus territórios. Essas atuam na saúde, na educação, na cultura, no meio ambiente, na segurança pública e onde mais puderem se fazer presentes. Promovem a mobilização comunitária, articulam políticas públicas, participam de espaços de controle social, fazem advocacy por seus locais de moradia, entre tantas outras ações.

A construção cotidiana dessa mulher e seu lugar de destaque social e político se conforma através de práticas e atitudes que evidenciam que há um protagonismo dessa mulher em condições de subalternidade. Falar dessas lideranças é falar de um corpo estético-político, uma vez que traz experiências singulares de exclusão, a quem homologamos falar da mulher negra em sua grande maioria.

Ser negra e ser mulher no Brasil é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo sexismo, pelo racismo e pela classe social a coloca na extremidade da condição subalterna, aqui acrescida ainda pela dimensão territorial. Nessa perspectiva interseccional, essas mulheres subvertem a ordem e desenvolvem um modo particular de fazer política. Fazem gestão de territorialidades (redes) que se constroem como teias no interior do território da favela e se engajam na busca de transformação de um coletivo que transcende suas relações pessoais. Em uma escala micro local que nos compete explorar, o exercício do poder dessa mulher, ainda que desempenhado de forma simbólica, produz mudanças efetivas na vida da favela devido à sua capacidade de se articular com as políticas públicas, com os movimentos sociais, com coletivos e com quem mais estiver ao seu alcance.

Elas transcendem o local, acessam a cidade, o estado e muitas vezes o país, num movimento permanente em defesa da cidadania dos moradores de seus territórios e na afirmação de uma sociedade democrática e participativa, nos ensinando que é necessário examinar como as experiências participativas dessas mulheres vêm se construindo como espaços de luta no enfrentamento das desigualdades sociais e em prol da sua cidadania e dos demais moradores das favelas onde vivem.

Para tais reflexões, estamos tratando de um poder que rompe com as fronteiras demarcadas pelo colonialismo e pelo racismo. Estamos falando de mulheres-negras e pobres-que trazem no corpo múltiplas expressões de uma sociedade marcada pela opressão, pelo patriarcado e pela desigualdade. Junto a essas incorporamos as brancas, igualmente pobres e moradoras das favelas, e que também estão subjugadas às tais condições de opressão. Assim, ancoramos nossas reflexões principalmente nos referenciais do feminismo negro, nos estudos decoloniais e na concepção da favela como espaço geopolítico demarcado por uma sociabilidade que se estabelece nas contradições entre suas ausências e violências, mas também pelas presenças que se estabelecem pela solidariedade e laços de vizinhança.

Aprendizados com a interseccionalidade

Vivemos em uma sociedade de classes, que estratifica os acessos aos direitos e à liberdade. Como o tema em questão trata das mulheres, iniciamos nossas reflexões a partir de uma breve explanação acerca do que essa categoria nos revela.

Para as mulheres, se acrescem as desigualdades de gênero e poder, que por vezes são tidas como naturais, atribuídas a uns e outros, conforme sinaliza Piscitelli (2009). No entanto, as relações de poder são determinadas por marcadores sociais que se conformam em construções identitárias. Nesse sentido, destaca Saffioti (2009, p. 82) que "mais do que papéis sociais que se aprende nos processos de socialização, são as identidades sociais (gênero, raça e etnia, classe) que vão gestando a subordinação, a partir das experiências vividas que colocam as mulheres nesse lugar".

Angela Davis (2016) e bell hooks (2014) argumentam criticamente a "estabilidade homogeneizante da categoria 'mulher' e a necessidade de se atentar igualmente às formas combinadas de diferenciações e desigualdades como 'raça' e classe social, entrecortando as experiências de mulheres" (HENNING, 2015, p. 107), o que podemos considerar como um "sistema de opressão interligado (AKOTIRENE, 2019, p. 21). Do ponto de vista das suas pertenças raciais, lembramos com Jurema Werneck, Mendonça e White (2000) que as mulheres negras não são todas iguais, nem são completamente diferentes; mas, conforme destacaram Davis (1981) e hooks (1981), a racialização possibilitou conquista de espaço político e afirmação da identidade dessas mulheres, impulsionando os sentidos de fazerem ecoar suas vozes.

Não cabe aqui reproduzir a historicidade desse processo, mas sim pontuar suas marcas na identidade do povo brasileiro, em especial dessas mulheres. A partir do final do período colonial a configuração do lugar da mulher negra na sociedade brasileira manteve-se no lugar de sempre: na "periferia" da família patriarcal, com seu uniforme, avental e espanador. Não estar nesse lugar de serviçal da família a levou para serviçal nos outros espaços ocupacionais da sociedade capitalista, nos quais estiveram a ela reservados os lugares das condições mais subalternas entre as subalternas reservadas às mulheres até os dias de hoje. Assim, "ser negro é enfrentar uma história de quase quinhentos anos de resistência à dor, ao sofrimento físico e moral, à sensação de não existir, à prática de ainda não pertencer a uma sociedade na qual consagrou tudo o que possuía, oferecendo ainda o resto de si mesmo" (NASCIMENTO, 1974 apud RATTS, 2006, p. 98).

Ao homologarmos o sujeito político das mulheres de favela que exercem um papel de liderança, estamos relacionando uma confluência de opressões que recaem sobre essas e as outras mulheres que coabitam o espaço da favela. Para tal, trazemos as dimensões de gênero, raça e classe que nos remetem à noção de interseccionalidade propagada por Kimberlé Crenshaw (2002). Embora muitas vezes seja creditada a ela a triangulação desses termos, esse advém do black feminism e dos movimentos abolicionistas do século XIX. Importa-nos refletir, no entanto, acerca da confluência entre ações e políticas específicas que geram essas opressões quando adicionamos a localização geográfica de onde advêm, o que potencializa as violências de gênero. Essas estruturas se intensificam, vulnerabilizandoas em uma ou mais categorias simultaneamente. Assim, a interseccionalidade, conforme sinalizada por Akotirene (2019), vai além quando propõe enfrentar questões de violência contra as mulheres, verificar a identidade produzida pelo racismo, exploração de classe, patriarcado e homofobia.

Seguindo algumas teóricas do feminismo negro (GONZALEZ, 1982; hooks, 2014; CARNEIRO, 2002; COLLINS, 2016; WERNECK, 2016; AKOTIRENE, 2019; KILOMBA, 2019), podemos afirmar como as opressões estruturais estariam interconectadas numa matriz de dominação que influencia todos os níveis das relações sociais e perpassa os planos individuais e coletivos, e como essas estruturas são visíveis e permeáveis quando nos referimos às mulheres das favelas. No entanto, evidenciamos que elas subvertem essa ordem e rompem com esses limites impostos pela estrutura social vigente.

Suas construções identitárias nos chamam a atenção para o que, segundo Cheryk Gilkes (1981), remete a resistência de mulheres negras à opressão que vivenciam, sendo constantes as ameaças ao status quo. Como forma de punição e de controle são construídas diversas imagens negativas e degradantes sobre elas. Segundo Collins (2016), os estereótipos negativos, os corpos hipersexualizados e o mito de que são mais resistentes à dor e às outras formas de exploração-no contraponto das mulheres brancas, associadas à imagem da fragilidade e da docilidade-definem as mulheres negras como "um outro negativo, a antítese virtual da imagem positiva dos homens brancos" (COLLINS, 2016, p. 105). Isso corrobora com o que hooks (2014) aponta como a construção da imagem e da identidade da...

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