Mulher, patriarcalismo e direito do trabalho

AutorTânia Mara Guimarães Pena
Páginas501-515

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Ver Nota1

Em excelente artigo sobre a visão que se tem das mulheres no mundo ocidental2(adotado como referência neste trabalho), Vânia N. P. Vasconcelos advoga que a mulher, ao longo da história, sempre foi vista com olhar predominantemente

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masculino. Olhar revelado de forma dicotômica: ora enxerga a mulher como frágil, ora como forte; vítima ou culpada, santa ou pecadora; não é possível saber quando surgiu essa visão ambígua sobre a mulher3. Bloch (1995) sugere que isso advém do cristianismo, embora seja “difícil determinar quando o cristianismo tornou-se dividido entre a possibilidade da salvação e do prazer e, ao mesmo tempo, entre atitudes de igualdade sexual versus a subordinação da mulher ao homem”4.

No século XII, ao se falar das mulheres, homens da Igreja buscavam subsídio no livro do Gênesis. Duby (2001) “relata a origem do gênero humano, a fundação da ordem moral, da ordem social e fornece, em algumas frases, uma explicação global da condição humana”5.

Muraro (1993) sustenta que, por meio do mito do Gênesis, o homem, além de culpar a mulher por todos os males da humanidade – em virtude da expulsão do paraíso – supera um complexo inconsciente: na criação, quando a mulher é tirada da costela do homem, ele se convence de que pariu a primeira mulher, considerando o mito judaico-cristão como a base da civilização ocidental: “é o mito dos que crêem e dos que não crêem nele, dos antigos e dos modernos, porque o mito não é aquilo que ele diz, mas a estrutura psíquica que ele produz”6.

Outra versão no século XII assegurava que Deus teria feito Eva da costela de Adão para mostrar a união monogâmica como indissolúvel. Nesse sentido argumenta Liège (2001)7:

Se o homem separa-se de sua mulher por causa qualquer que não seja fornicação, mutilado de uma costela, já não é completo. Para a mulher é bem pior: se abandona

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seu homem, ela não existirá mais para Deus, pois não é, de início, um corpo completo nem uma carne completa, mas apenas uma parte oriunda do homem (DUBY, 2001, p. 51).

Porque Deus teria criado a mulher?

Leal (1994), ancorando-se no mito do Gênesis, assevera que a mulher não estava nos planos de Deus e foi criada apenas como decorrência das necessidades do homem. Fundamenta sua teoria na seguinte passagem: “não é bom que o homem esteja só, façamos-lhe um adjutório semelhante a ele”8.

A mulher teria sido criada, então, para procriar. Este seria o adjutorium (a ajuda) para o homem. Tal ideia, afirma Duby, está bem de acordo com o que pensavam os padres do século XII a respeito das mulheres: conversadeiras, desobedientes e sedutoras e, portanto, seria melhor um casal de amigos que um casal formado por marido e mulher. Assim, esta criação estaria relacionada à vontade de Deus de crescer e multiplicar.

Logo em seguida à criação da mulher, em Gênesis, há a passagem em que Eva é tentada pela serpente e comete o pecado original, passando a ser culpada por todos os males da humanidade.

Interessante mencionar que também Adão desobedece a Deus, mas a versão que se tem é de que o faz por ser tentado pela mulher. Sedutora, e ao mesmo tempo poderosa, Eva convenceu Adão a obedecê-la, mesmo indo contra a vontade de Deus. Veja-se que no livro Adão se justifica com Deus dizendo: “a mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da árvore e comi”.

Eva desestabilizou a relação do homem com Deus. Rompeu com a ordem criada por Deus, estabelecendo uma nova ordem. Criada para ser passiva, tornou-se subversiva, ao fazer o homem pecar. Então Deus a recoloca no seu lugar, punindo-a com a submissão ao homem.

Como se pode ver, a desigualdade entre homens e mulheres, segundo alguns intérpretes, teria esteio na Bíblia. Até hoje, em várias partes do mundo, o Livro Sagrado é invocado para sustentar o trato desigual entre os sexos.

Debate instigante se travou à época do Iluminismo, quando os pensadores procuraram encontrar uma saída para explicar a subordinação da mulher ao homem, em uma sociedade que defendia os valores da igualdade e fraternidade.

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A saída encontrada pelos iluministas foi sustentar que a mulher não era inferior ao homem, mas sim complementar e o que justificaria funções sociais diferentes seria o fato de homens e mulheres serem biologicamente diferentes.

Assim, na sociedade idealizada pelos iluministas, a mulher deveria cuidar da casa, do marido e dos filhos, e o homem voltar a sua atenção para a esfera pública. Para os iluministas, a natureza determinou os papéis sociais de gênero, razão porque as mulheres deveriam se convencer de que o seu destino natural é ser mãe. Natural, ainda que as mulheres vivessem trancafiadas em suas casas e os homens escrevessem a história da humanidade.

No Brasil, à época da colonização, a visão da mulher, pelo homem, não era distinta; dela se exigiam submissão, recato e docilidade. Formou-se o estereótipo de que as mulheres deveriam ficar relegadas ao âmbito do lar, tendo como obrigação cuidar da casa, dos filhos e do marido, sem espaço para expressar seus pensamentos, suas ideias.

O controle masculino atingia todas as esferas da vida da mulher, dentro de casa, desde a infância; o controle ideológico, relacionado aos ideais de recato, respeito e falta de instrução formal; a escolha do marido, que manteria o controle a que a mulher estava subjugada em casa. O homem era chefe e senhor da família na sociedade patriarcal.

A chegada da Família Real ao Brasil trouxe algumas mudanças para a situação das mulheres. A abertura comercial propiciou a “penetração do capitalismo e a gravitação do universo do neocolonialismo, proporcionando a penetração de novos ventos para o universo feminino, que passou a ter maior participação social”9.

Observou-se, também, mudança quanto aos costumes; as mulheres passaram a frequentar espaços públicos, como ruas e teatros, antes destinados, como regra, aos homens.

Em meados do século XIX, ainda no Império, o patriarcalismo sofre seus primeiros enfrentamentos, quando as mulheres passam lutar para ampliar seus papéis na sociedade. Logo, “pôde-se ver avanços na luta por direitos no campo do trabalho, da educação e da política”, setores antes destinados exclusivamente aos homens10.

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O século XX foi marcado por mudanças, no que tange à luta empreendida pelas mulheres na busca por seus direitos e igualdade com os direitos dos homens. As mulheres passaram a reclamar publicamente, demonstrando o seu inconformismo com as restrições que lhes eram impostas pelos homens. Buscaram mais participação na vida econômica, na política e lutaram pelo seu reconhecimento como cidadãs. Reivindicaram “a liberdade [...] ou pelo menos a sua igualdade com o homem, o nosso déspota, o nosso tirano”11.

No Brasil o patriarcalismo ainda era forte, mesmo após a sua independência. Segundo Souza, a maior transformação ocorreu “[...] na década de 1870, quando mudanças socioeconômicas foram minando as bases do patriarcalismo”12.

Somente a partir da metade do século XX a história das mulheres e de sua contribuição para a história da humanidade passou a despertar interesse acadêmico. O vocábulo gênero passou a ser adotado para caracterizar as relações entre homens e mulheres e foi concebido como uma convenção social, baseado nas diferenças sexuais. É “a construção sociológica, política e cultural do termo sexo”. Muda de acordo com o período histórico e a sociedade estudada.

Mergár (2006) destaca que:

As relações de poder entre os gêneros, da mesma forma que os significados, os valores, os costumes e os símbolos, divergem através das culturas. A religião, a economia, as classes sociais, as raças e os momentos históricos estabelecem significados que se consolidam e se relacionam integradamente e agindo em todos os aspectos do dia-a-dia13.

O termo gênero, como se pode constatar, não se baseia apenas na questão biológica, “não significa homem e mulher tal como nascem, mas tal como [se] fazem, com diferentes poderes, diferentes comportamentos, diferentes sentimentos.

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[...] Conceitos de gêneros estruturam a percepção do mundo e de nós mesmos, organizam concreta e simbolicamente toda a sociedade”14.

As questões de gênero não se limitam ao enfoque homem/mulher e o patriarcalismo não é a única causa do trato desigual entre homens e mulheres. Não é possível, pois, entender as questões de gênero sem relacioná-los aos problemas raciais, étnicos e de classe social, pois o patriarcalismo não é homogêneo15. Assim, deve ser entendido como “a base e o sustento de todo tipo de dominação autoritária ou totalitária”16.

Para definir patriarcalismo é necessário atentar para as seguintes etapas:

Primeira, politicamente, o patriarcalismo supõe uma configuração da realidade que prima o abstrato sobre o concreto, as funções prometeicas sobre as relacionais e a desigualdade; segunda, axiologicamente, o patriarcalismo impõe um conjunto de valores, crenças e atitudes não deduzidas, nem dedutíveis, da realidade, a partir das quais um grupo humano se ab-roga “por natureza” superioridade sobre o resto; e, terceira, sociologicamente, o patriarcalismo constitui a base da exclusão, é dizer, “o conjunto de mecanismos enraizados na estrutura da sociedade a partir dos quais determinadas pessoais e grupos são rechaçados ou afastados sistematicamente da participação plena na cultura, na economia e na política...

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