Mulheres na luta: primeira república

AutorLaura Nazaré de Carvalho - Gustavo Seferian Scheffer Machado - Giovana Labigalini Martins - Luana Duarte Raposo - Victor Emanuel Bertoldo Teixeira
Páginas29-43

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(*) Este artigo é fruto do empenho do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da FD-USP, coordenado pelo professor Jorge Souto Maior visando dar visibilidade a luta das trabalhadoras no Brasil. Nosso sincero agradecimento a todas as mulheres que se dedicam a esta causa.

Ver notas 1, 2, 3, 4 y 5

"Devemos demonstrar enfim que somos capazes de exigir o que nos pertence; e se todas forem solidárias, se nos acompanharem nesta luta, se nos derem ouvidos, nós começaremos por desmascarar a cupidez dos patrões sanguessugas. (...) E nós também queremos as nossas horas de descanso para dedicarmos alguns momentos à leitura, ao estudo, porque, quanto à instrução temos bem pouca; e se esta situação continua, seremos sempre, pela nossa inconsciência, simples máquinas humanas manobradas à vontade pelos mais cúpidos dos assassinos e ladrões."

Tecla Fabbri, Teresa Cari e Maria Lopes, 1906 6

Durante a Primeira República as diversas trajetórias femininas reivindicando voz e espaço na esfera pública trouxeram à tona embates sobre a condição feminina em diversas dimensões, constituindo transformações na nossa sociedade.

Nesse momento histórico em que ocorreu a tentativa de empreender um novo projeto político transformador da nação, que eliminaria os resquícios de um passado colonial, as assimétricas relações de gêneros continuavam como permanências históricas na socie-dade brasileira, gerando mobilizações que exigiam que os papéis sociopolíticos da época fossem revistos. Mulheres pertencentes a vários setores (intelectuais, anarquistas, operárias) exigiam, para além dos direitos políticos, o direito à educação, e começavam a contestar as relações de gênero, bem como as questões referentes às precárias condições de trabalho, isto bem presente no movimento anarquista e no Partido Comunista Brasileiro, refutando a imagem simbólica que os estratos dominantes da época buscavam reforçar sobre a mulher - "esposa-mãe-dona-de-casa" assexuada e só dedicada aos filhos, ao marido e ao lar. Enfim, às tarefas caracterizadoras do trabalho reprodutivo.

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Esse modelo ideal de mulher que se apoiou nas bases teóricas do Positivismo, da moral católica e da ciência, defendia a inferioridade natural da mulher. A burguesia apregoava que a moral era essencial para a manutenção da ordem e da sociedade, sendo a mulher o pilar da sociedade burguesa e capitalista, responsável por transmitir aos filhos os valores sociais através da educação no lar e, por consequência, manter uma das maiores, senão a maior, das instituições da sociedade burguesa: a família.7

A inferioridade da mulher também era respaldada por parte da filosofia iluminista, que afirmava não ser a mulher dotada de razão, tendo permanecido na etapa da imaginação e da infantilidade. Respaldando-se em teses como essa, a medicina social e as ideias higienistas passaram a defender que, com base na inferioridade feminina, por conta do predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, uma nova conduta social deveria ser colocada em prática, a fim de assegurar a saúde psíquica e física da família. 8

Essa misoginia do pensamento médico também foi dominante no ideário religioso, reforçando o pressuposto da oposição "natureza x cultura" e enfatizando o argumento biológico que atribuiu às mulheres o papel exclusivo de mãe e esposa. Contra esses discursos, vozes se levantaram, como a do médico Titio Lívio de Castro9, no final do período Imperial, que afirmava não haver obstáculos para o desenvolvimento mental feminino, sendo as características tidas como femininas, resultado de um processo histórico-social.

Com a consolidação da Puericultura, que tinha por objetivo o corpo social, os comportamentos e os hábitos, se afirmando e conquistando maior autoridade no corpo médico e na sociedade, desenvolve-se o ideal da maternidade científica e do aleitamento materno natural, condenando a amamentação realizada pelas amas de leite e valorizando o papel da mulher na função de mãe. O ideal da maternidade científica foi incorporado por mulheres das classes médias e altas urbanas, pois, para muitas, a adesão aos princípios da puericultura representou possibilidade de obter uma educação de melhor qualidade e a admissão na esfera pública, por meio do acesso aos campos profissionais e acadêmicos que envolvessem habilidades "maternais", como o magistério, a enfermagem, dentre outros. 10

Essa inclusão na esfera pública, retirando a mulher apenas do espaço privado da família, ainda que limitada pelas condições históricas, foi um passo importante na luta feminina. Esta circulação ampliou a influência feminina na sociedade. Apesar das investidas masculinas no sentido de impedir esta liberação, as mulheres se apoderaram dos espaços que lhes eram deixados. Neste contexto social, a ideologia da maternidade científica foi o resultado da atuação dinâmica e complexa de múltiplos agentes sociais, entre eles, as próprias mulheres, que, por meio de estratégias ativas como resistência, seleção, negociação, aliança e parceria aproveitaram o movimento de valorização da função maternal para transformá-la em instrumento de poder feminino.

Este processo também ocorria no cenário europeu e estadunidense, onde a valorização da maternidade impulsionou os movimentos femininos no final do século XIX, para a defesa do que consideravam os "direitos de todas as mães", reivindicando a intervenção estatal na proteção à maternidade e chegando, em alguns casos, a requerer um "salário de mãe", pois a maternidade era equiparada a um emprego remunerado. Este "feminismo maternal" ou maternalismo feminista estava pautado no ideal de sororidade.11

O discurso do operariado masculino não se diferia muito da fala médica. Aqueles definiam a mulher como o "sexo frágil", demonstrando uma atitude paternalista que visava proteger a moral das mulheres, visto que, naquela época, predominava o pensamento que a sexualidade da mulher encontrava-se condicionada ao seu instinto maternal, materializando-se em duas re-

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presentações femininas dominantes: a mulher passiva sexualmente destinada à satisfação do marido e a pros-tituta, considerada uma degenerada nata, pois perverteu o estatuto da natureza frágil e delicada da mulher. Nesse contexto, as primeiras medidas na luta pela reivindicação dos direitos da mulher trabalhadora foram no sentido de colocar em primeiro plano a proibição do trabalho noturno, considerado imoral para o sexo feminino, e as garantias relativas à maternidade. Entretanto, foi nesse ambiente que se estabeleceu limites claros aos mecanismos de controle e repreensão sexual.

Apesar da resistência à ocupação pelas mulheres do espaço público, dados estatísticos da época revelam que as mulheres de estratos sociais mais empobrecidos trabalhavam nas indústrias e sustentavam suas famílias, atividades notoriamente masculinas à época. Na cidade de São Paulo, no ano de 1872, dos 10.256 operários da indústria de algodão, 9.514 eram mulheres. Os censos do século XX revelam, em certas cidades, uma proporção surpreendente de mulheres chefes de família (até 40%)12.

O trabalho feminino foi incorporado sobretudo nas atividades que anteriormente se realizava no espaço doméstico, como, por exemplo, a fiação, a tecelagem, a produção do fumo, de chocolates e de redes, sendo a indústria têxtil o setor o que mais empregava mulheres. No entanto, existiam muitos entraves à inclusão da mulher no mercado de trabalho13: apesar da numerosa cota de mulheres operárias, sua submissão aos homens ainda era fortemente defendida e seu trabalho encarado como suplemento a renda masculina. Além disso, existia uma disparidade salarial: os empregadores preferiam contratar as mulheres e crianças justamente porque essa mão de obra custava em média 30% menos.14

Nesse contexto, as mulheres anarquistas passam a enxergar a educação da mulher trabalhadora como um dos principais instrumentos de luta pela sua libertação e essa ideia é difundida em Jornais como "O Amigo do Povo"15. A educação proporcionaria à operária a desmistificação dos modelos de mulher. As anarquistas compreendiam que a única solução para a mulher conseguir se emancipar do cativeiro que se encontrava seria sua emancipação intelectual. Por meio da educação, a mulher poderia se emancipar da sociedade burguesa e capitalista, que criava modelos de mulher respaldados na ciência e na igreja16. Assim, os debates sobre emancipação feminina foram tangenciados pela luta pelo direito à educação, inclusive a de nível superior, capaz de elevar a condição feminina, dar-lhe uma profissão e habilitá-la a participação política.

Em contraposição à luta das mulheres anarquistas, as mulheres da elite buscavam conquistar apoio de sua classe, especialmente da elite dirigente e elaboradora das leis, e por isso, não subvertiam as normas e valores vigentes da sociedade burguesa. Elas defendiam uma proposta de educação para reforçar a condição de mãe. Mas, essa luta possibilitou o avanço das mulheres na conquista de espaço público e direitos políticos.

A análise histórica deste período permite desmistificar estereótipos criados em relação as mulheres, revelando outras faces, ignoradas pelo paradigma do sujeito universal iluminista e masculino17. Se tradicionalmente, as mulheres são retratadas como passivas e submissas, vemos que a atuação feminina não deixa de se fazer sentir, por intermédio de complexas estratégias: poder maternal, poder social, poder sobre outras mulheres e "compensações" no jogo da sedução, inclusão no mercado de trabalho, luta por qualificação e luta política. Trataremos de algumas estratégias de luta, a seguir.

1. Incorporação das mulheres no mercado de trabalho

A formação de um...

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