Multiculturalismo: O “Olho do furacão” No direito pósmoderno

AutorJosé Alcebíades de Oliveira Junior
CargoDoutor em Direito pela UFSC, Professor dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da URI e UFRGS.
Páginas161-173

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Os Preconceitos São Parte Da Condição Humana Porém, Quando A Idéia De Que Os Outros São Menos Que Humanos Adquire Força Revolucionária, Leva A Destruição De Seres Humanos

Ian Buruma e Avishai Magalit.

Considerações Iniciais

Este artigo pretende ser uma introdução às relações entre Direito e Multiculturalismo – entendido, dentre outras maneiras, como a coexistência de diferentes culturas em um mesmo país, continente ou mesmo na sociedade global2 .

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Nasceu de discussões levadas a efeito no contexto de construção, aprovação e reconhecimento do Mestrado em Direito da URI – Santo Ângelo. Com duas linhas de pesquisa, Direito e Multiculturalismo e Cidadania e Novas Formas de Solução de Conflitos, esse curso constitui-se em um mestrado acadêmico, o que o caracteriza como cenário apropriado à realização de pesquisas científicas na área das ciências sociais aplicadas3 .

Numa tal perspectiva, este texto se inscreve no âmbito das, por assim dizer, denominadas “metamorfoses da cultura contemporânea”, na feliz denominação de seminário internacional realizado na UFRGS4 , pretendendo discutir o que, nas palavras de Heiner Bielefeldt, poderia se traduzir como “desafios do pluralismo cultural à universalidade dos direitos humanos”5 , que colocam em xeque conceitos como o de “identidade cultural”, das pessoas e dos grupos, face aos de “diferença” e de “diversidade”6 dessas mesmas pessoas e grupos.

A metáfora utilizada no título, por seu turno, possui como intuito chamar a atenção para o fato de que o multiculturalismo não só se encontra no núcleo das discussões sociológicas atuais, como porta, consigo, um número enorme de questões interligadas, o que torna difícil para o pesquisador a delimitação de um caminho prévio com objetivos definidos, como seria possível quando se procura acessar lugares já cartografados ou mapeados. Tal constatação reforça o interesse pelo seu estudo em relação com o Direito, ciência que, no final das contas, no âmbito da pósmodernidade7 , é que tem que dar respostas de sentido moral e prático, com caráter institucional, às controvérsias no âmbito da cidadania, tendo que se enfrentar com aspectos objetivos e subjetivos do conhecimento8 .

1 Multiculturalismo

O estar no “olho do furacão” do Direito na pós-modernidade implica, pois, que estamos a tratar de um tema hoje central nas principais universidades do mundo, tal como também ocorreu no “XXII Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social”, em Granada, Espanha, em 2005. Para se ter uma idéia mínima doPage 163que se está a falar com o multiculturalismo, observemos, por exemplo, que o trabalho de Jürgen Habermas tratou a respeito de se seria possível o projeto kantiano da constitucionalização do direito internacional em face do pluralismo cultural?; que o de Will Kymlicka procurou discutir as bases morais e as funções geopolíticas das normas internacionais dos direitos das minorias; que Boaventura de Souza Santos trouxe o tema do uso contra-hegemônico do Direito na luta por uma globalização desde abaixo; que Gunther Teubner abordou o assunto sociedade global e justiça fragmentada; e que, finalmente, Íris Young apresentou trabalho sobre responsabilidade e justiça global: um modelo de conexão social9 .

Michael Walzer10 , um dos importantes pesquisadores do multiculturalismo, ao trabalhar o tema da tolerância (cultural) assinalou a pluralidade de sociedades ou de regimes nos quais vivemos, dentre os quais “os impérios multinacionais” (Pérsia, o Egito ptolemaico, Roma), “a dita sociedade internacional”, “as consociações”, os “Estados-nações”, e, ainda, as “sociedades de imigrantes”. Diante disso, percebese que os movimentos multiculturalistas11 nasceram para chamar a atenção da diversidade cultural e da necessidade de um cuidado com as diferenças que, se continuarem faltando, conduzirão ao que Iam Buruma denominou de Ocidentalismo, isto é, um crescente ódio entre as culturas.

Por certo, os movimentos multiculturalistas não são desinteressados. Como disseram os membros da Escola de Frankfurt, não há conhecimento sem interesse12 . Por isso, talvez, afirmem Robert Stam e Ella Shohat, autores de “Crítica da imagem eurocêntrica”, ao jornal “Estado de São Paulo”13 , que “a idéia do multiculturalismo não significa apenas a constatação de que existem “muitas culturas”, mas um projeto, ao mesmo tempo político e epistemológico”, ao qual acrescentaríamos, o de discussão do possível interrelacionamento entre as culturas.

Uma tal afirmação sugere uma outra: movimento político a favor de quem? Para Pierre Bourdieu, importante sociólogo francês14 , o multiculturalismo trata de um produto da hegemonia anglo-americana, um instrumento da globalização e do imperialismo norte-americano. Contudo, para Charles Taylor, como veremos adiante neste artigo, para o próprio crítico Robert Stam citado e outros, absolutamente, porque se trata de um movimento que vem das minorias, de países como a Indonésia, vem do latino, do asiático, do índio americano. Na polêmica Stam X Bourdieu no Page 164Estadão15 , o primeiro afirma que países que praticaram a escravidão têm dificuldades de falar em multiculturalismo, exatamente o caso da França com suas colônias, o que não deixa de ser uma verdade extensiva a outros países.

Uma interessante metodologia para se compreender o multiculturalismo é aquela adotada por Robert Stam que, no jornal aludido, fala do cinema como instrumento para interpretação da realidade multicultural, ao comentar vários filmes brasileiros e norte-americanos sobre o assunto. No Brasil, os exemplos seriam “Orfeu” e “Cidade de Deus” que, justo pela névoa ideológica que recobre a negação do multiculturalismo, falam de emancipação como uma possibilidade unicamente através da arte, a música num e a fotografia no outro.

Na mesma direção, os “faroestes” americanos servem de paradigma explicativo das relações entre primeiro e terceiro mundo, sobretudo com os exemplos dos assaltos dos índios às “diligências” dos brancos. Diante desses filmes, não seria de nos perguntarmos por que os índios são sempre os bandidos e os brancos os mocinhos? O auditório, no máximo, se compadece com os pobres índios, por lutarem de arco e flecha contra os rifles de fogo dos brancos. Enfim, Stam entende, em franca oposição ao eurocentrismo, “o multiculturalismo como o reconhecimento da alteridade (o ser outro, o colocar-se ou constituir-se como outro), e não como algo para fazer às vezes de um “shopping center” de culturas do mundo, no qual o europeu ocuparia a loja mais cara e exclusiva”16 .

Procurando enquadrar as principais propostas multiculturalistas dentro dos caminhos atuais do debate teórico na filosofia política, uma vez que é nesse âmbito do espaço público que a situação pode evoluir positivamente, tomemos a apresentação de José Eduardo Faria ao livro de Gisele Cittadino, “Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva”17, para enunciar que podemos falar de multiculturalismo a partir de pelo menos quatro correntes:

1- os libertários, como Robert Nozick e Friedrich Hayek;

2- os liberais contratualistas, como John Rawls e Ronald Dworkin;

3- os comunitaristas, como Michael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e Alasdair MacIntyre;

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4- os crítico-deliberativos, como Jürgen Habermas e outros, formados na tradição hegeliano-marxista.

Por outro lado, uma das mais importantes fontes do multiculturalismo são as diferenças entre Oriente e Ocidente, que trazemos não só pela evidência dos conflitos hoje existentes, mas também para poder comentar a discussão que aparece no livro “Ocidentalismo”, de Ian Buruma e Avishai Margalit18 . Em síntese, a obra retrata, em muitos dos seus aspectos, através de escritores, filósofos, cidades, guerras, religiões, etc., a morfogênese dessas civilizações, o que torna possível perceber o fosso das diferenças que separam ocidentais de orientais e vice-versa. Segundo o autor, o retrato desumano do Ocidente pintado por seus inimigos é o que chama de Ocidentalismo. O Ocidente seria a perversão de uma cultura espiritual unificada, na Europa e fora dela. Com efeito, em breve interpretação, se poderia dizer que os movimentos orientalistas e ocidentalistas poderiam ser vistos como antíteses da proposta multiculturalista.

Enfim, na proposta desses autores, que mereceria um espaço mais amplo para ser discutida, procura-se entender os porquês da existência de um ódio com a cidade ocidental; contra um tipo de comércio; contra a mente ocidental; contra um tipo de espiritualidade que desperta a ira de Deus, dentre outras coisas. Bem, e daí o que fazer, o que sugerir? Trata-se de uma luta do progresso contra o obscurantismo? Ou simplesmente haveria uma tentativa de impor os padrões ocidentais aos orientais, o que...

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