O multiculturalismo e a política de reconhecimento de Charles Taylor

AutorLarissa Tenfen Silva
CargoMestre em Direito pela UFSC. Professora do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Cristo Rei - FACCREI
Páginas314-321

Larissa Tenfen Silva1

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1 Introdução

A questão do multiculturalismo e das políticas de reconhecimento são temáticas extremamente importantes para as democracias ocidentais. Entretanto, antes de trabalhar mais profundamente a conexão entre tais pontos é importante esclarecer o que venha a ser o multiculturalismo. Tal noção é hoje cada vez mais utilizada não somente nos meios acadêmicos e políticos como no cotidiano por uma gama variada de pessoas, estando seu significado associado a diversos sentidos, o que faz com que esta proliferação do termo não contribua para estabilizar ou esclarecer seu significado (HALL, 2003, p. 51).

Neste sentido, são possíveis diversas leituras do termo já que associado a contextos específicos e diferenciados de variados Estados Nacionais. Entretanto, via de regra, a noção de multiculturalismo vem sendo entendida em dois principais sentidos: como um fato social e como uma teoria (CÁMARA, 2003, p.163). Enquanto fato, o multiculturalismo diz respeito à convivência de grupos distintos culturalmente num mesmo espaço territorial, o que o torna um fenômeno antigo e que atinge a quase todas as sociedades contemporâneas em virtude das migrações, tanto no nível dos Estados nacionais como no nível global (CORTINA, 2002, s/p.).

Já enquanto teoria de caráter normativo, ela se apresenta como proposta de solução para os problemas provenientes da convivência entre as pessoas e os diferentes grupos culturais que buscam na coexistência conjunta, manter suas pautas culturais e sociais num mesmo território.

Relacionado a este segundo sentido é que o multiculturalismo vem ganhando espaço, especialmente nas áreas de filosofia, teoria política e nas ciências sociais ao longo das últimas décadas, pois busca efetivar estratégias de resolução dos inúmeros conflitos etnoculturais surgidos que apontam pela necessidade de reconhecimento público das minorias discriminadas existentes nos limites territoriais dos Estados.

Por tal motivo, é que se encontra uma variedade de modelos ou projetos multiculturais de cunho político-teórico, realizados tanto por setores conservadores como pelos mais progressistas. Todavia, a resposta para o gerenciamento das demandas culturais e da busca pela integração defendida neste trabalho, parte no caminho contrário às práticas assimilacionistas2 , segregadoras e até mesmo genocidas postas em prática por Estados nacionais.

Assim, é dentro de uma perspectiva democrática e progressiva que se insere o trabalho desenvolvido pelo presente autor que é adepto da corrente filosófica da Teoria da Justiça. Esta vertente trata de formular e justificar ideais de justiça, em especial, de justiça distributiva, dentro de um contexto plural do mundo moderno em busca dos ideais democráticos (CITTADINO,1999, p.2). É justamente dentre de uma das várias linhas que compõem este debate, tais como os liberais3 (John Rawls), comunitários (Michel Walzer) e críticos deliberativos4 (Jürgen Habermas), que se encontra a resposta comunitária de Charles Taylor à questão multicultural.

Ressalta-se que o comunitarismo, que também é formado por uma variada gama de autores que apresentam interpretações e posturas diferenciadas a respeito do tema, visa colocar em xeque a pressuposição de um sujeito universal e não situado historicamente, enfatizando, assim, a multiplicidade de identidades sociais e culturais étnicas presentes nas sociedades contemporâneas e concebendo a justiça como a virtude na aplicação de regras conforme as especificidades de cada meio ou ambiente social. (CITTADINO,1999, p. xviii-xix)

Assim, dentro desta lógica é que Charles Taylor em sua obra O multiculturalismo e a política do reconhecimento (1993) parte na defesa do contexto multicultural, associado à necessidade de uma política legítima de reconhecimento público das diferenças, por parte das instituições públicas, justificando desta forma a defesa da sobrevivência das comunidades culturais presentes nas sociedades multiculturais por estarem vinculadas à formação das identidades humanas, bem como à concessão de direitos especiais aos grupos culturais específicos. Diante disto, subjaz uma noção de cidadania que prima pelo bem estar dos diferentes grupos, diante da conjugação dos direitos fundamentais, que apresentam caráter individual com os direitos de caráter coletivo que levam em conta as particularidades culturais dos grupos, sendo ambos exercidos dentro dos limites territoriais e ideológicos do Estado.

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2 Identidade e reconhecimento

Charles Taylor (1993, p. 43-44) inicia suas considerações com a discussão e o incentivo das possibilidades e formas de realização das políticas públicas que almejem o reconhecimento das diferenças existentes entre os indivíduos e os grupos culturais minoritários presentes nas sociedades. Para isso, começa a analisar os processos de identidades, vinculando a necessidade e exigência de reconhecimento para com as identidades, uma vez que estas são moldadas a partir do reconhecimento, ou por ausência dele, ou ainda por um falso reconhecimento por parte de terceiros, o que pode acarretar ao indivíduo e ao grupo danos, já que isto pode levar alguém a um falso, deformado e reduzido modo de ser5. Diante disso, a questão do reconhecimento passa a ser vista como "uma necessidade humana vital," (TAYLOR, 1993, p. 45)6 já que a formação das identidades individuais e grupais estão ligadas diretamente a ele.

Para melhor analisar a questão da identidade, o autor passa a reconstruir seu trajeto no interior da história das sociedades ocidentais, explicitando que ela surgira diante da ocorrência de duas mudanças. A primeira está relacionada com a substituição do valor da honra até então ligada a uma sociedade hierárquica social que atrelava a identidade à posição social pela noção de dignidade, que passa a ter caráter universal e igualitário no qual todos possam compartilhar. A segunda mudança foi a que possibilitou o reconhecimento de uma nova interpretação do conceito, a partir da noção de autenticidade, que estabeleceu a idéia de "identidade individualizada, que é particularmente minha, e que eu descubro em mim mesmo" (TAYLOR, 1993, p. 47)7 , caracterizando-se como uma nova forma de interioridade, na qual o interior possui respostas para seus questionamentos.

Esta última mudança foi incentivada tanto por Rousseau que apresentou a questão moral como atenção à voz da natureza que existe dentro de nós mesmos, o que denominou de Sentimento de Existência, como por Herder, a qual vinculou o ideal da autenticidade à idéia de que "cada um de nós têm um modo original de ser humano: cada um tem sua própria medida."8 (TAYLOR, 1993, p.49) Este poderoso ideal moral que indica o homem a ser fiel a si mesmo ganha ainda mais relevo quando associado ao princípio da originalidade, no qual "cada uma de nossas vozes têm algo único que dizer [...]"(TAYLOR, 1993, p. 50).9 Assim, o homem e sua identidade devem ser reconhecido por suas particularidades e descobertas internamente, que nas palavras de Taylor (1993, p. 51)

Ser fiel a mim significa ser fiel a minha própria originalidade, que é algo que somente eu posso articular e descobrir. E ao articulá-la, também estou me defendendo. Estou realizando uma potencialidade que é minha propriedade. Esta é a interpretação de fundo do moderno ideal de autenticidade, e dos objetivos de autorealização e autoplenitude que este ideal apresenta. 10

Entretanto, Herder explicita que este ideal de originalidade também se aplica em relação às comunidades e não somente na relação entre indivíduos, o que leva estas comunidades a serem fiéis a si mesmas, ou seja, à sua cultura e às suas características, mesmo diante das trocas com os demais povos, o que pode refletir uma relação cultural de respeito entre elas. É justamente este ideal de autenticidade que pode se reconhecer como a idéia seminal do nacionalismo moderno (TAYLOR, 1993).

Para então melhor entender a conexão entre identidade e reconhecimento, o autor indica que se deve levar em conta a "característica decisiva da vida humana que é o seu caráter fundamentalmente dialógico"11 (TAYLOR, 1993, p.52). É a partir desta condição que o homem se transforma em agente humano pleno, capaz de compreender a si mesmo e de definir sua identidade por meio da aquisição de ricas linguagens humanas, utilizando-as para se expressar. A noção de linguagem abarca tanto as palavras como os modos de expressão com os quais o homem se define através do intercâmbio com os demais. Dessa forma, a identidade se define mediante o "diálogo com as coisas que nossos outros significantes desejam ver em nós, e às vezes em luta com elas. E ainda depois de termos deixado para trás alguns desses outros [...] e desaparecem de nossas vidas, a conversação com eles continuará em nosso interior enquanto nós vivamos"12 (TAYLOR, 1993, p.53), ou seja, a descoberta da identidade ocorre mediante o diálogo em parte aberto, em parte interno com os demais (TAYLOR, 1993, p. 55).

Desta forma, Charles Taylor parte para o desenvolvimento de uma teoria dialógica de caráter intersubjetivo na qual a fundação do sujeito ocorre na interação com o outro. (SEMPRINI, 1999,Page 316 p.101). É mediante esta relação entre autenticidade e originalidade num contexto dialógico que se ressalta a importância da pertença comunitária cultural para formação da identidade. Como afirma Semprini (1999, p.101-102) a percepção que um indivíduo tem de...

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