O mundo em tempos de pandemia: certezas, dilemas e perspectivas/The world in pandemic times: certainties, dilemmas and perspectives.

AutorVommaro, Pablo

Faz muitos meses de que o mundo está dominado pela pandemia de COVID-19 ou SARS-CoV-2. Não se fala outra coisa, tudo parece tomado por essa situação que poucos hesitam em denominar de crise generalizada. Dezenas de milhões de contagiados em mais de 180 países, dos quais quase 4 milhões morreram e quase 150 milhõesse recuperaram, mostram sua dimensão em pouco mais de quatro meses.

Trata-se de uma situação nova, que eclodiu de forma inesperada ou é apenas mais uma crise que, como tantas, passará em alguns meses, mas não sem deixar estragos? Muitos intelectuais falaram sobre isso. Alain Badiou (2020), por exemplo, insistiu em que essa pandemia não implica a emergência de algo radicalmente novo ou inaudito. Nesse sentido, sabemos agora que em 2007 um artigo de cientistas de Hong Kong advertia que uma situação como essa poderia ser desencadeada pela mutação de algumas cepas de coronavírus hospedadas em animais com os que os seres humanos tinham contato frequente (Vincent C. C. Cheng, Susanna K. P. Lau, Patrick C. Y. Woo, Kwok Yung Yuen, 2007). Mas ninguém considerou o aviso a sério. Muitos outros, pelo contrário, sustentam que acontece algo novo que, juntamente com seu caráter imprevisto, produz medos generalizados, confusão e até paralisia.

Eu proponho aqui compreender e interpretar as dimensões sociais, políticas e econômicas dessa pandemia, para poder refletir sobre as diversas arestas da crise e as disputas que existem em torno a suas possíveis superações. O texto apresentará certezas, dilemas, paradoxos e hipóteses propostas como disparadores da reflexão coletiva.

Primeira certeza. A potência e a importância do acesso aberto.

Pouco depois de que a sequência do genoma do COVID-19 ter sido identificada por um laboratório do estado chinês, ela foi publicada de forma aberta (Alonso, 2020). Isso acelerou as descobertas dos modos de transmissão, métodos de detecção e tratamento. Além disso, setenta organizações científicas, incluindo revistas como Nature e Cell, que geralmente cobram pelo acesso aos artigos que publicam, concordaram que os artigos sobre coronavírus estejam disponíveis de maneira aberta e livre. O consenso é generalizado: o acesso aberto, livre e gratuito à informação sobre o novo coronavirus acelerou as investigações e possibilitou que, em poucas semanas, fossem obtidos avanços que levariam meses se as restrições mercantis prevalecessem. Nesse plano, a cooperação e o acesso aberto funcionaram. De qualquer forma, o interrogante é se os conhecimentos, testes, tratamentos e vacinas produzidos graças a esse acesso aberto também estarão disponíveis de forma aberta e pública. Acesso aberto não é o mesmo que ciência aberta e aqui as políticas públicas e os comportamentos da comunidade científica serão decisivos.

Primeiro dilema. Distanciamento social ou processamento coletivo da crise.

Nesse ponto, os debates se multiplicam. Byung-Chul Han (2020) afirma que o vírus isola e individualiza. No entanto, os aplausos coletivos, a arte nas varandas, as cantinas sociais ou os espaços comunitários nos bairros que tentam continuar funcionando sem romper as medidas do distanciamento ou de isolamento parecem contradizer o caráter absoluto dessa afirmação. Como parte do mesmo fenômeno, teria que se mencionarem os grupos e chats que se multiplicam e a intensificação do uso das redes sociais como forma de nos comunicar com outras pessoas em estado de isolamento.

De qualquer modo, parece que, diante de uma crise com fortes dimensões subjetivas e emocionais, o discurso de distanciamento ou isolamento não seria o mais apropriado, e seria preciso apostar em espaços de reflexão, encontro e tratamento coletivo da situação. Como fazer isso mantendo medidas de prevenção que evitam a propagação dos contágios e preservem aos grupos mais vulneráveis ao vírus?

Podemos vislumbrar que as políticas públicas e as relações sociais frente à pandemia expressam uma crise do individualismo e forçam a relação entre o individual e o coletivo. As liberdades individuais estão acima ou são compatíveis com a preservação da saúde coletiva? Em um mundo tão desigual, que segrega e aniquila identidades e pessoas (migrantes, pobres, dissidentes), uma pergunta possível seria quem são os beneficiários dessas liberdades individuais. Talvez essa seja mais uma expressão da crise do indivíduo que, como sujeito político e cidadão, emergiu da Revolução Francesa (Rudé, 1971).

Segundo dilema. A economia ou a vida?

Esta encruzilhada foi abordada por muitos governos e economistas e reproduzida na mídia e em artigos de vários tipos. Diante disso, poderíamos nos perguntar: é possível pensar e desenvolver uma economia para a vida?

Parece que a incompatibilidade entre economia e vida é flagrante hoje. Seja porque o capitalismo sempre fora uma tecnologia da morte ou um modo de controle sobre a vida, os corpos e as populações, a crise do COVID-19 não apenas evidencia esta contradição, mas, pelo menos para alguns, a torna insuportável.

Tem se falado muito que uma economia em crise se recupera, mas que uma vida perdida não volta. De ser assim, deverá se disputar como e sob quais lógicas esta recuperação é feita.

Claro que o dilema entre economia e vida é expresso com as lógicas dominantes: se produz uma demanda excessiva para a maioria das trabalhadoras e dos trabalhadores, com o consequente aumento das condições de exploração e precarização.

Ao mesmo tempo, sabemos que todos os países que enfrentaram a pandemia com relativo sucesso adotaram o isolamento social preventivo e a quarentena obrigatória como políticas gerais e sustentadas ao longo do tempo.

Diante do isolamento, o teletrabalho aparece como uma solução tanto para manter as atividades em um cenário de reclusão quanto para garantir certa produtividade mínima para as empresas. Mas todos os trabalhadores podem teletrabalhar? Evidentemente não, e isso depende tanto do tipo de atividade quanto das condições de trabalho e de habitat que esses trabalhadores possuem. Assim, o teletrabalho é apresentado como um elemento que pode aumentar a precarização e as desigualdades sociais e trabalhistas.

Franco Bifo Berardi (2020) sustenta que o principal efeito econômico (e social) do vírus radica na paralisia relacional que ele propaga. Nesta situação, a economia não explode, mas está implodindo.

A esse respeito, e não considero que seja uma simples expressão fatalista, Bifo garante que a recessão econômica que já existe entre nós poderá nos matar, gerar conflitos violentos e até desencadear epidemias de racismo e guerra. E será assim, pois, para este autor, não estamos preparados culturalmente para pensar na estagnação como uma condição de longo prazo, não estamos preparados para pensar a frugalidade, o compartir. Não estamos preparados para dissociar o prazer do consumo (Berardi, 2020). Será essa uma crise econômica que provoque que isso mude? Isso dependerá das disputas contingentes da história em nível social, político e econômico.

Em contraste com o panorama descrito por Bifo, Srecko Horvat (2020) sustenta que essa pandemia é funcional para a reprodução e o fortalecimento do capitalismo. Segundo este filósofo, a pandemia seria o sonho de um capitalismo totalitário e de controle: os bens podem ficar circulando, as pessoas não. Ou seja, os bens fluem, mas as pessoas devem ficar nas suas casas, distanciadas, isoladas.

Fica claro, e nisso estou de acordo com Badiou (2020), que a maioria dos estados nacionais tenta enfrentar a situação epidêmica, seguindo ao máximo os mecanismos (ou a lógica?) do capital. Por si só, a pandemia não parece provocar mudanças econômicas radicais. Mais uma vez, como afirma Byung-Chul Han (2020), isso dependerá das lutas e os conflitos que daí decorram.

No entanto, e volto aqui ao dito por Bifo (2020), podemos sustentar que as políticas implementadas diante da expansão do vírus bloqueiam o funcionamento abstrato da economia; mas eles fazem isso porque remove dela os corpos. Ou seja, essa conjuntura volta a colocar no centro do debate, de uma maneira talvez impensada e um tanto sinuosa, a discussão sobre o trabalho vivo e o trabalho morto que escreveu de maneira muito sugestiva Holloway no O capital se move (2001). Também atualiza os debates sobre o valor-trabalho, o valor-afeto, as subjetividades como produtoras de valor e o capitalismo semiótico.

Mas o poder dos estados nacionais não é tudo neste capitalismo financeiro e com crescentes lutas sociais. David Harvey (2020) mostra como as respostas políticas e econômicas a essa pandemia não só foram guiadas pelas lógicas de cada governo (atingindo ao paroxismo da negação ou mesmo ou até o cinismo sinistro do suposto sacrifício de idosos nos Estados Unidos ou na Inglaterra), mas também a explicitação de sua...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT