Na contemporaneidade: economics

AutorNathália Lipovetsky
Páginas80-134
torna um poder alheio, operado pelas leis da oferta e da procura e
dispondo das pessoas como um “destino cego, inconsciente”, de
forma que o sistema adquire uma dinâmica própria em que a
riqueza, abstraída da posse imediata de objetos de uso, tende a
gerar mais riqueza, o que se converte em dominação de uma classe
pela outra. Assim, extremos de riqueza e refinamento de gosto do
consumidor são sinônimo de relegação das massas à pobreza e sua
condenação a um trabalho “embotante, insalubre, inseguro e que
limita a habilidade”.245
A semelhança dos escritos do jovem Hegel com a obra de Marx,
segundo Taylor, é uma convergência de posições, não uma
continuidade de trabalho, pois Marx nunca teria tido acesso aos
manuscritos System der Sittlichkeit e Jenaer Realphilosophie, mas
apenas às publicações da Filosoia do Direito. De todo modo, a
concepção de sociedade moderna que tinha Hegel não se alterou e
a mão invisível continuou a ser encarada como instrumento da
astúcia da razão mesmo que reconhecidamente inadequada para
gerar uma sociedade justa.246 Abolir a economia burguesa não é
uma possibilidade, pois sua estrutura é manifestação do espírito
objetivo e deve ser suprassumida na figura do Estado, ético, ponto
alto da Eticidade e da liberdade.
A atualidade da concepção de sociedade civil é inquestionável e
poderia ser apontada como uma das evidências para os defensores
de que a Modernidade ainda não acabou por completo.247 Nossa
sociedade permanece, cada dia mais, plasmada nas características
da sociedade civil burguesa conceituada por Hegel, como que num
prelúdio da posição de destaque que teria a economia num futuro
próximo: “Hegel, intérprete lúcido do seu tempo, é nosso
contemporâneo, por não havermos sabido, ou querido, resolver o
conflito, o crítico, em que para ele começava o futuro e que é o
nosso presente.”248
CAPÍTULO 3
Na contemporaneidade: economics
Aristóteles já apresenta em sua obra os fundamentos de uma
teoria econômica de forma bastante completa, antecipando na
Política uma análise perfeitamente cabível para o mercado e o
capital atuais no que chamou de crematística ruim. Apesar dos
esforços de algumas escolas de pensamento ou autores
isoladamente para manter a economia próxima às demais ciências
sociais, a troca como categoria econômica, desde o surgimento do
mercantilismo, se encontrava muito distante da crematística
natural de Aristóteles.
Ainda assim, embora frequentemente não o reconheça, a
economia como ciência contemporânea ou mesmo em sua
concepção Moderna pertence à linhagem da teoria aristotélica,
apoiada quase exclusivamente na crematística não natural e
deixando de lado a crematística natural e a noção de fim da
comunidade como bem viver.
O processo de separação entre economia e ética se deu
segundo diversos fatores, todos eles ligados, direta ou
indiretamente, aos processos por que passou a sociedade moderna
ao substituir seus paradigmas tradicionais de entender e organizar o
mundo ao seu redor.
A libertação da moral religiosa foi um elemento importante
nessa virada da sociedade moderna. Quando o lucro deixa de ser
algo maléfico e passa a ser aceito como natural e moralmente
justificado, surge um impulso para o desenvolvimento econômico e,
consequentemente, para o surgimento de um novo modelo de ser
humano no imaginário coletivo, o homoeconomicus: “as pessoas vão
se entendendo cada vez mais como indivíduos, egoístas racionais,
calculadores de vantagens e benefícios, e aparentemente
insensíveis aos argumentos morais”.249
Essa dessacralização total do cosmos, segundo Mircea Eliade250
(1907-1986), é característica da sociedade moderna, que descobriu
o profano. Mas, talvez, tenha ocorrido apenas uma substituição do
sagrado religioso da sociedade arcaica por um novo sagrado, que
se consubstanciou moderna e contemporaneamente no econômico,
pois a afirmação de que o ser humano moderno se despiu da
necessidade de viver no sagrado parece ser questionável. Tendo em
vista que permanece sendo reproduzido o padrão de perseguição e
intolerância por parte de grupos dominantes em nome da
manutenção de seu status, inclusive por meio da apropriação
jurídico-política do aparato estatal para alcançar essa finalidade, o
que parece ter mudado é o objeto da adoração humana e não a
necessidade humana de viver próximo àquilo que considera sagrado
ou adora.
Arendt nos oferece os conceitos de animallaborans e homofaber
e a análise da relação que esses dois perfis de ser humano travam
ao longo do tempo, especificamente na passagem do mundo Antigo
para o mundo Moderno. O surgimento do homo economicus é
estreitamente ligado ao fenômeno abordado por Arendt em A
condição humana, a respeito das diferentes atuações entre animal
laborans como produtor daquilo que atende às necessidades
biológicas da humanidade, consumíveis de imediato, e homo faber
como fabricante daquilo que modifica o mundo e lhe imprime
resultados perenes251. Se antes do surgimento do mercado esses
dois conceitos opunham-se ao de ação, a única atividade livre e que
se entre pessoas iguais, na polis, sem intermediações materiais
(compondo, essas três atividades humanas fundamentais, o termo
vita activa)252, relegando o trabalho, seja manual ou intelectual, a
uma posição inferiorizada e atrelada a saciar necessidades, após o
mercado, o trabalho, segundo Arendt, foi absorvido pelo labor para
atendimento dos interesses de um mundo em que tudo é
rapidamente consumível.
O utilitarismo é a filosofia do homofaber por excelência, por sua
incapacidade de distinguir entre utilidade e significância, ou seja,
“utilidade estabelecida como significância gera insignificância” e o
mercado é o reino público do homo faber, que deseja exibir seu
produto e receber elogios por ele.253 Assim, como destaca Ferraz Jr.,
a troca de produtos passa a ser a atividade política principal na
sociedade em que o homo faber atua e é valorado segundo a
utilidade daquilo que produz.254
O significado político de vita activa se perdeu com o
desaparecimento da Cidade-estado Antiga (vigorou, portanto,
durante a primeira fase do mercado) e o termo passou a ser
sinônimo de qualquer tipo de envolvimento com as coisas do

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