A Conciliação na Esfera Trabalhista - Função, Riscos e Limites

AutorJosé Roberto Freire Pimenta
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho, Doutor em Direito Constitucional pela UFMG e Professor de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho (graduação e pós-graduação) da Faculdade de Direito da PUC-MG
Páginas22-73

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Considerações iniciais sobre a conciliação na esfera trabalhista

Todo operador do Direito que se disponha a meditar mais profundamente sobre a efetividade do Direito do Trabalho no Brasil, ao longo da História e, mais particularmente, nos dias atuais, não pode deixar de reconhecer a existência, ainda hoje, de uma grande e lamentável distância entre as generosas promessas de avanço e de justiça social feitas no campo normativo (ou do dever-ser), em numerosas normas trabalhistas editadas de forma diferenciada em favor dos trabalhadores, seus destinatários naturais, enquanto ramo autônomo do Direito, e a dura realidade empírica - no campo do ser - que se constata ainda haver nos locais de trabalho (mesmo quando devidamente formalizada a relação de emprego) e na esfera, ainda significativa, da economia informal (onde a precarização das relações laborais e o descumprimento dos mais elementares direitos fundamentais sociais ainda são, infelizmente, a regra).

O principal desafio de sempre e ainda de hoje, portanto, é de concretizar, na esfera decisiva do mundo real, aquilo que o direito material do trabalho já estabelece, por meio das normas estatais e das normas coletivas de trabalho: os direitos e deveres recíprocos dos empregados e dos empregadores, como partes da relação jurídica e econômica que constitui a coluna vertebral do sistema capitalista praticado em nosso país (e que, sob a denominação de sistema da livre-iniciativa, é, ao lado do trabalho, um dos fundamentos da República constituída em Estado Democrático de Direito, na expressa dicção do art. 1º, caput e inciso IV, da Constituição brasileira em vigor).

Ocorre, no entanto, que o número extraordinário de processos trabalhistas em andamento em nosso país (e que não para de crescer de forma exponencial a cada ano), nos quais notoriamente a maioria das decisões definitivas de mérito são favoráveis, no todo ou em parte, aos trabalhadores reclamantes, revela que, no campo da realidade empírica, há um número excessivo de violações perpetradas pelos empregadores que também são destinatários das normas trabalhistas1. É elementar, portanto, a

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conclusão de que a Justiça do Trabalho, em quadro tão dramático, tem um papel essencial e indelegável a desempenhar, como órgão jurisdicional, nos casos em que as normas trabalhistas não tenham sido espontaneamente cumpridas por seus destinatários: assegurar o cumprimento forçado, a tempo e a modo, da vontade concreta da lei (naturalmente após o decurso regular de um processo, com a de-vida observância do due process of law e das demais garantias processuais fundamentais dos litigantes, constitucionalmente previstas de forma específica).

Paralelamente, é comum um sentimento de frustração a todos os magistrados trabalhistas brasileiros que, com sacrifício de sua vida particular e familiar, desdobram-se sete dias por semana, em número de horas de trabalho diário acima do normal, para solucionar o excessivo número de processos trabalhistas submetidos à sua apreciação (boa parte deles versando, de forma repetitiva, sobre lesões reiteradas dos mais elementares e fundamentais direitos trabalhistas dos reclamantes2 por parte de demandados "habituais"3, em casos em que a existência da obrigação nem sempre é seriamente contestável, embora seja sempre contestada em defesas e recursos de duvidosa procedência)4.

A principal e decisiva razão para tão lamentável estado de coisas é, a nosso ver, de uma simplicidade dolorosa: o excessivo número de reclamações trabalhistas anualmente ajuizadas no Brasil, o qual, por sua vez, acarreta o estrangulamento da Justiça do Trabalho em todos os seus graus de jurisdição (inclusive na fase de execução, destinada exclusivamente à satisfação dos créditos trabalhistas já reconhecidos, em definitivo, como devidos). Nesse estado de coisas, a consequência é natural e inevitável: uma Justiça assoberbada por um número excessivo de processos é, necessariamente, uma Justiça lenta e de baixa qualidade.

É esse o pano de fundo à vista do qual deve ser vista e examinada a questão da conciliação no âmbito da Justiça Laboral, como técnica indispensável, a um só tempo, de pacificação social e de condução à ordem jurídica justa5, bem como de racionalização da atividade jurisdicional, para torná-la mais efetiva. É indispensável, em primeiro lugar, afastar as concepções ultrapassadas, burocráticas, elitistas e correspondentes a concepções privatísticas do processo civil hoje já abandonadas até mesmo em sua

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disciplina de origem, as quais produzem uma atitude preconceituosa em relação à conciliação promovida em Juízo, como se esta fosse uma faceta menor da função jurisdicional e, como tal, merecedora de menor aprofundamento doutrinário e de menos prioridade. Para tanto, será preciso relembrar o significado e a função da conciliação no quadro maior da ordem jurídica como um todo e, mais especificamente, no âmbito do funcionamento do sistema processual de solução dos conflitos intersubjetivos de interesses. A seguir, será útil verificar também qual o significado que hoje os ordenamentos jurídicos dos países mais avançados atribuem à conciliação, para extrair de suas experiências aquilo que possa ser útil para a solução de nossos próprios problemas.

Sucessivamente, a partir da ideia de que, nos casos, infelizmente ainda muito frequentes, em que os destinatários das normas trabalhistas não as cumprirem espontaneamente, em tempo oportuno e em sua plenitude, os seus reais significado e efeitos, na prática, corresponderão exatamente ao conteúdo não apenas das decisões judiciais definitivas (que, por definição, têm o escopo jurídico de dar efetividade ao ordenamento jurídico substancial6), mas também das conciliações que puserem fim aos processos trabalhistas decorrentes daquele descumprimento, procurar-se-á compreender como se compatibilizam os princípios da proteção dos empregados e da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, essenciais e específicos do Direito do Trabalho, com a ênfase dada à conciliação pelo Direito Processual do Trabalho e pela própria Justiça Laboral. A seguir, serão expostos quais são, na prática e em casos específicos relevantes, os limites que a doutrina e a jurisprudência hoje dominantes estabelecem para essa solução alternativa dos dissídios individuais e coletivos do trabalho.

A partir desse quadro, será por fim examinado o papel essencial desempenhado pelos magistrados do trabalho e a respectiva técnica a ser por eles adotada na condução e na celebração das conciliações judiciais, bem como os problemas práticos daí decorrentes.

A função primordial da conciliação na esfera trabalhista, como instrumento de acesso à justiça e de efetividade da função jurisdicional

Desde as últimas décadas do século XX e neste início de um novo século, todas as sociedades civilizadas e democráticas têm como uma de suas preocupações centrais assegurarem o acesso à Justiça a todos os seus cidadãos, com efetividade e sem discriminações de qualquer espécie. Tanto o Direito Constitucional quanto o Direito Processual contemporâneo têm se debruçado intensamente sobre esse problema, de modo a garantir, de um lado, que os direitos materiais a todos prometidos (em grande parte, direitos fundamentais) sejam mais que meras promessas legitimadoras do exercício do poder por seus eventuais ocupantes mas, sim, sólida realidade e, de outro lado, que seja possível aos destinatários dessas normas jurídicas de primeiro grau, em caso de seu não cumprimento espontâneo por seus destinatários, fazer uso de instrumentos processuais (judiciais ou extrajudiciais) capazes de lhes assegurar a mesma vantagem específica que lhes adviria caso os desígnios do direito material houvessem sido respeitados, a tempo e a modo7.

Em outras palavras, trata-se, em primeiro lugar, de democratizar, na esfera decisiva da realidade (ou do ser) o exercício efetivo dos direitos materiais a todos assegurados pelas normas jurídicas ainda no plano abstrato do dever-ser e, também, de desestimular o descumprimento dos preceitos contidos

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em todo o ordenamento jurídico e de garantir que, mesmo que isto ocorra, a necessidade de recorrer aos mecanismos processuais para a efetivação do direito subjetivo lesado ou ameaçado não cause dano a quem tem razão.

Cumpre reiterar, no entanto, que a distância entre tão generoso quanto essencial objetivo e o dia a dia de nossa realidade social e de nossos tribunais ainda é grande: os inter-relacionados mas não coincidentes problemas da existência dos denominados vazios de tutela nos sistemas jurídicos contemporâneos e da chamada litigiosidade contida desafiam a criatividade dos legisladores e dos aplicadores do Direito em todo o mundo. Daí a grande importância que os operadores do Direito em geral ainda hoje conferem à questão da efetividade da solução judicial e extrajudicial dos conflitos intersubjetivos de interesses, individuais e coletivos. Vale dizer, ao tema da efetividade da tutela dos direitos.

A complexidade desse problema não deixa margem a dúvidas: a reconhecida crise da Justiça, ou seja, a crescente incapacidade do aparato Judiciário de absorver e resolver, com celeridade e justiça, todos os dissídios...

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