A não-cumulatividade tributária

AutorAndré Mendes Moreira
Páginas99-144
59
III
A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA
3.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Quando se fala em cumulação de tributos, há três realida-
des possíveis e distintas, a saber:
(a) exigência de dois ou mais tributos sobre o mesmo
fato, que pode consistir em:
(a.1) bitributação; ou
(a.2) bis in idem;
(b) inclusão de tributos na base de cálculo de outras exa-
ções, majorando artificialmente a riqueza tributável;
(c) incidência do tributo em dois ou mais estádios da ca-
deia produtiva.
Vejamo-las, uma a uma.
A primeira hipótese – incidência de tributos idênticos so-
bre o mesmo fato gerador – pode caracterizar a bitributação
(se dois entes distintos exigirem gravame idêntico sobre uma
só realidade) ou o bis in idem (se ambas as exações forem co-
bradas pelo mesmo ente estatal).
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ANDRÉ MENDES MOREIRA
Tem-se bitributação, verbi gratia, quando dois Estados so-
beranos intentam cobrar imposto de renda sobre os mesmos
valores (ex.: executivo alemão, residente e domiciliado naquele
país, que se desloca temporariamente para o Brasil e aqui au-
fere rendimentos, prestando consultoria a empresa sediada em
solo pátrio). O conflito entre os princípios da fonte e da renda
mundial (que orientam a tributação internacional das rendas)
faz surgir tais questões, solucionadas, muitas vezes, pelos trata-
dos contra a dupla tributação internacional. À míngua de con-
venção entre países ou de soluções unilaterais eventualmente
adotadas pelos Estados (como isenções, outorga de créditos
presumidos, et caterva), a bitributação será inevitável. Não obs-
tante, existe orientação mundial no sentido de se evitar essa
dupla incidência, criadora de barreiras para o desenvolvimen-
to das nações. Tanto é que a Organização das Nações Unidas
(ONU) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) possuem modelos de convenção, contra a
dupla tributação internacional, destinados a orientar os Esta-
dos que pretendam eliminar esse entrave ao livre comércio.
No plano interno de um Estado federado, a bitributação
ocorre quando dois Estados ou Municípios intentam gravar a
mesma realidade (o exemplo mais característico, no Brasil, é o do
ISSQN, no qual existe constante conflito entre as municipalida-
des na exigência do imposto sobre serviços – cada qual adotando,
conforme seus próprios interesses, o critério da situação do esta-
belecimento prestador ou o do local da prestação dos serviços).
O bis in idem, a seu turno, é menos usual. Afinal, o ente
federado pode exercer livremente sua competência para gra-
var determinada situação fática, desde que respeite os princí-
pios constitucionais tributários. Havendo interesse em incre-
mentar a receita, basta ao ente público aumentar a alíquota
do tributo existente. Por essa razão, o bis in idem ocorre, em
regra, quando a carga tributária já é muito elevada sobre cer-
tas realidades e, mesmo assim, o Estado pretende majorá-la.
Para evitar a caracterização do confisco – mais claramente vi-
sualizável quando um único tributo é utilizado com alíquotas
excessivas – o ente estatal se utiliza do subterfúgio de criar
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A NÃO-CUMULATIVIDADE
DOS TRIBUTOS
outra exação para gravar a mesma realidade. Essa situação é
repelida pelo Direito Tributário.133
A segunda hipótese de superposição contributiva ocorre
quando se incluem, na base de cálculo das exações, o valor de
outros tributos. Essa prática, pouco comum noutras plagas, tem
sido adotada amiúde pelas leis tributárias brasileiras, como ocor-
re com o “cálculo por dentro” do ICMS.134 Para além deste, tem-
-se ainda cumulação de incidências com a inclusão do ICMS nas
bases de cálculo do IPI e do PIS/Cofins (ainda que, neste último
caso, a jurisprudência do STF tenha corretamente impedido a
cumulação, modificando entendimento anteriormente sumulado
do STJ); a inclusão da CSLL na base tributável pelo IRPJ, inter
alii. Com isso, a alíquota real do tributo torna-se superior àquela
nominalmente constante da lei, pois a exação passa a gravar uma
base majorada. Inobstante os equívocos de tal sistemática, a ju-
risprudência pátria tem admitido inclusões de valores tributários
no cálculo do quantum debeatur de outras exações.135
133.
Caso paradigmático, que já foi analisado pelo STF, referia-se à suposta ocorrência
de bis in idem pela exigência de imposto sobre a renda (cuja alíquota chega a 27,5%),
contribuição previdenciária fixa (alíquota de 11%) e um adicional de contribuição previ-
denciária variável (entre 9% e 14%, a depender do valor do salário) sobre os vencimen-
tos dos servidores públicos federais.
Embora não reconhecendo a existência de bis in idem, dado o caráter autônomo e espe-
cífico das contribuições previdenciárias, o STF afastou a contribuição progressiva (entre
9% e 14%) ao argumento de que a soma desta ao IR e à contribuição previdenciária já
cobrada (alíquota de 11%) determinaria, em alguns casos, a recolha de quase metade do
salário do servidor aos cofres públicos federais.
Em outras palavras: apesar de, em tese, não se ter reconhecido o bis in idem, na prática
os tributos cobrados pelo mesmo ente foram somados (mesmo sendo de espécies diver-
sas, na visão do STF), autorizando a conclusão pela existência do confisco. (STF, Primei-
ra Turma, RE-AgR nº 414.915/PR, Relatora Min. ELLEN GRACIE, DJ 20.04.2006, p. 31).
134. Consoante predica a LC nº 87/96, o ICMS é calculado “por dentro”, integrando
a sua própria base, em procedimento já legitimado pelo STF (Pleno, RE nº 212.209/
RS, Relator p/ acórdão Min. NELSON JOBIM, DJ 14.02.2003, p. 60).
135. As Súmulas nºs 258/TFR e 68/STJ admitiam que o ICMS integrasse a base de
cálculo do PIS (conclusão extensível à Cofins). Contudo, esse entendimento foi su-
perado quando do julgamento, pelo STF, do RE nº 574.706/PR, Relatora Min. CÁR-
MEN LÚCIA, DJE 22.05.2019 que excluiu o valor do ICMS do conceito de fatura-
mento, impedindo a incidência das contribuições sociais sobre o montante relativo
ao imposto estadual.

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