Não existe saúde grátis

AutorCaroline Somesom Tauk
Páginas117-143
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CAPÍTULO 4
Não existe saúde grátis
Caroline Somesom Tauk
1.INTRODUÇÃO
Portadora de hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), a artesã D.R.T.C.
obteve, em 2014, uma decisão judicial que lhe permitia receber o medica-
mento Soliris® (princípio ativo Eculizumabe), que custava 1,5 milhão por
ano, conhecido como o fármaco mais caro do mundo e até então não re-
gistrado pela ANVISA. Em 2017, seu tratamento foi suspenso por decisão
judicial, sob o fundamento de que “deve prevalecer o interesse coletivo
sobre o particular, pois tamanha lesão à saúde pública, sem dúvida, coloca
o sistema em colapso, acarretando grave risco de morte à maioria dos pa-
cientes atendidos pelo SUS”.1 É justo que D.R.T.C. f‌i que sem tratamento
em razão da lesão à saúde pública?
As disputas judiciais movidas por particulares em face dos entes fede-
rativos pleiteando a concessão de medicamentos não constantes das listas
1. Caso que tramitou na 13 ª Vara Federal do Di strito Federal e foi objeto de matéria jor nalística
publicada em 24 abr. 2017. Disponível em: htt ps://blog.abramge.com.br/saude-em-geral/ar tesa-
-f‌i ca-sem-remed io-que-custa-r-15-milhao-por-de cisao-judicial/. Acesso em: 10 jan. 2 019.
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REFLEXÕES SOBRE DIREITO E ECONOMIA
elaboradas pelo Poder Público ou para uso fora dos Protocolos Clínicos de
Diretrizes Terapêuticas (PCDT) envolvem escassez de recursos públicos,
controvérsias sobre a f‌ixação de prioridades em saúde e questões de justiça
distributiva. Representam, portanto, casos dif íceis, que causam efeitos que
transcendem a disputa entre os litigantes e repercutem em toda a popula-
ção usuária do SUS, gerando as externalidades, na linguagem econômica.
A repercussão do julgamento para a sociedade exige que se trabalhe
com métodos que vão além da dogmática jurídica tradicional e que ad-
mitam incorporar as consequências da decisão ao raciocínio jurídico.
A resolução desses casos exige que se considerem elementos de ordem
extrajurídica, como os econômicos, que permitirão prever e analisar os
efeitos gerados pelo litígio.
As decisões proferidas em resposta à chamada judicialização da saúde,
em geral, não se debruçam sobre a alocação de recursos públicos de forma
justa para satisfazer as necessidades de saúde de toda a população, litigan-
te ou não, isto é, sobre como estabelecer prioridades diante de um quadro
de escassez. Por isso é tão importante a atenção ao planejamento e ao uso
ef‌iciente dos recursos públicos, evitando desperdícios.
No entanto, o debate sobre o uso ef‌iciente de recursos para a saúde públi-
ca sofre resistência, tanto pelo litigante autor, quanto pelos demais juristas.
É que um dos marcos da CRFB/1988, inovando em relação às anteriores,
foi a consagração do direito fundamental à saúde entre os direitos sociais,
aproximando-se do constitucionalismo democrático-social vigente a par-
tir do f‌im da II Guerra Mundial. Firme na crença do poder transformador
da Constituição brasileira, acredita-se que as autoridades escondem a sua
falta de vontade ou incompetência para prover o direito à saúde por trás do
argumento da escassez de recursos. Esse di scurso, no entanto, é questioná-
vel, já que, ainda que inexistentes as práticas acima, não há sistema de saú-
de que possa prover todas as prestações necessitadas por todas as pessoas.
Propomos, então, uma discussão sob outra ótica, sem prejuízo da ado-
ção das medidas para combater a incompetência, a má gestão e a corrupção

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