Não me representa': um olhar sobre junho de 2013 e a crise da concepção democrática hegemônica

AutorBryan Alves Devos - Mark Pickersgill Walker - Pierri Araujo Porciúncula
CargoDoutorando em Direitos Humanos e Democracia (UFPR) - Professor substituto de Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) - Doutorando em Sociologia (UFPEL)
Páginas110-144
“Não me representa”: um olhar sobre
junho de 2013 e a crise da concepção
democrática hegemônica
“Does not represent me”: a look at June 2013 and the
crisis of hegemonic conception of democracy
Bryan Alves Devos*
Universidade Federal do Paraná, Curitiba – PR, Brasil
Mark Pickersgill Walker**
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas – RS, Brasil
Pierri Araújo Porciúncula***
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas – RS, Brasil
“É regra invariável do poder que, às cabeças, o melhor será cortá-las antes
que comecem a pensar, depois pode ser demasiado tarde”.
(Ensaio Sobre a Lucidez – José Saramago)
1. Introdução
A ideia de crise é recorrente e tem se intensificado nos debates sobre a de-
mocracia. É quase um consenso na literatura política o diagnóstico de que
o modelo liberal-procedimental de democracia – vista primordialmente em
sua faceta representativa – demonstra hoje um profundo desgaste, fato que
*Doutorando em Direitos Humanos e Democracia (UFPR). Mestre em Direito e Justiça e Social
(FURG). Advogado. E-mail: bryandevos.prof@gmail.com. Orcid: 0000-0001-7889-441X.
**Professor substituto de Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Doutor em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e bacharel em Direito pela Uni-
versidade de Santa Catarina (UFSC). E-mail: profmwalker@gmail.com. Orcid: 0000-0003-
4415-3060.
***Doutorando em Sociologia (UFPEL). Mestre em Política Social e Direitos Humanos pela Uni-
versidade Católica de Pelotas (UCPEL), especialista em Sociologia pela Universidade Federal
do Rio Grande (FURG). E-mail: pirporciuncula@gmail.com. Orcid: 0000-0001-8272-6136.
Direito, Estado e Sociedade n.59 p. 110 a 144 jul/dez 2021
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cada vez mais aponta para as suas insuficiências de origem. Para além das
análises fornecidas pelos teóricos que se debruçam sobre o tema, nos pa-
rece que a percepção de uma crise da democracia representativa é presente
no próprio cotidiano, isto é, se faz notar enquanto cidadãos e cidadãs,
quaisquer que sejam as suas bandeiras, que já não se sentem representados
pelos governos instituídos, mesmo que necessitem votar periodicamente
para novamente instituí-los e assim completar repetidamente o circuito
democrático. Os índices crescentes de abstenções, votos brancos e nulos
talvez possam ser lidos a partir dessa chave. De um modo geral, pode-se
especular que a crise da democracia em nossa época é devida à incapaci-
dade da narrativa democrática em fornecer uma razão de ser, ou seja, de
demonstrar os pressupostos que assegurariam, ainda hoje, a inclinação do
método democrático para coibir opressões de toda ordem e assegurar a
emancipação social.
Este ensaio busca esboçar alguns aspectos que configuram a crise de
representatividade e as insurgências que ela suscita. Trata-se de perquirir
sobre o papel que revoltas recentes, em especial as manifestações de junho
de 2013, desempenham em um contexto de crise da concepção democrá-
tica hegemônica1.
De início, nos preocuparemos em caracterizar esta concepção liberal
hegemônica de democracia, expressa na democracia representativa. Busca-
remos demonstrar de que modo essa opção de paradigma democrático se
tornou a resposta padrão de organização social a partir da segunda metade
do século XX e como esse modelo representou uma renúncia a qualquer
tendência que pudesse oferecer contraponto aos seus cânones. Cuidare-
mos de explicitar os marcos principais da concepção democrática liberal,
cuja síntese teórica mais aprimorada e mais difundida dentre os juristas,
ao que nos parece, encontra-se na obra de Norberto Bobbio, autor que
desenvolveu este legado de pensamento atrelando o exercício democrático
ao respeito às regras de formação de governos, cujo conteúdo haveria de
se restringir à moldura do liberalismo2. De cara, cumpre alertar que este
1 O presente estudo utiliza a categoria no sentido em que Boaventura de Sousa Santos e Leo-
nardo Avritzer (2002) a conceberam.
2 Importante esclarecer que a noção de liberalismo que sustenta o cânone democrático hege-
mônico, especialmente na síntese que Norberto Bobbio faz dele, vincula-se ao espectro político
do pensamento liberal, não necessariamente ao liberalismo econômico. Para uma síntese desse
conceito, o texto de Nicola Matteucci é fundamental, especialmente por evidenciar, já em seu
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pensador não exerce necessariamente a curadoria da concepção liberal de
democracia, já que esse conjunto de ideias foi trabalhado por inúmeros
teóricos3, sendo descabido falar em termos de monopólio. Pensamos em
Bobbio em termos similares aos que a historiografia das ideias concebe o
papel dos intelectuais: um espelho que reflete a efervescência cognitiva e
as condições materiais de um tempo4.
Chamaremos atenção para a crise da concepção hegemônica e para
a crise de representação, um problema que atinge o cerne da experiência
democrática atualmente. Sustentaremos que a crise da concepção hege-
mônica decorre da redução de seu raio de projeção à pura análise formal
dos regimes democráticos, negligenciando o conteúdo dos governos, ou
seja, de que modo teoria e prática democráticas acabam descuidando da
vinculação entre governantes e governados no momento da tomada de de-
cisões políticas e os efeitos deletérios que daí decorrem, como a descrença
no potencial da própria representação. Seguindo a trilha deixada pela aná-
lise de Marcos Nobre, identificaremos na formação histórica da democracia
brasileira as raízes de uma decepção social com a classe política, especial-
mente após o advento do projeto social-desenvolvimentista cristalizado na
Constituição Federal de 1988.
Por fim, procuraremos demonstrar de que modo as Revoltas de Junho
de 2013 atacam a concepção democrática hegemônica e seus distúrbios
característicos no caso brasileiro – em essência, a sua articulação com
uma cultura política que busca controlar o ritmo e a extensão de trans-
formações sociais relevantes para o incremento da cidadania e da própria
democracia, aqui já não mais entendida segundo a definição hegemônica.
Para fins deste ensaio, a democracia passa a ser um potencial de transfor-
mação social e individual que extrapola significativamente a questão do
respeito às regras do procedimento democrático, ainda que não pretenda
descartá-las. Desse modo, a concepção democrática que guia nossa refle-
xão aproxima-se da abordagem ampliada de Boaventura de Sousa Santos
e Leonardo Avritzer5.
início, a tentativa de acoplamento que a teoria liberal faz entre seus postulados e governos de-
mocráticos (cf. MATTEUCCI, 1998, pp. 686-687).
3 A exemplo de Giovanni Sartori e Robert Dahl (cf. GUGLIANO, 2015).
4 Nesse sentido, cf. BAUMER, 1977, p. 23.
5 Cf. SANTOS; AVRITZER, 2002.
Bryan Alves Devos
Mark Pickersgill Walker
Pierri Araújo Porciúncula

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